Correio da Cidadania

Guerra da Ucrânia: o desvio de atenção das grandes potências

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Foto: Boris Yeltsin e Bill Clinton em 1995. Créditos: ITAR-TASS / Commons Wikimedia.

Na última década do século vinte, a transição da União Soviética (URSS) para Rússia ocorreu de maneira arrebatada: com ciência e tecnologia avançada, recursos naturais fartos, mão de obra relativamente qualificada se comparada com a dos Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão, e mercado consumidor amplo, a sociedade local acreditou que em poucos anos o país poderia ombrear-se com seus vizinhos ao oeste quanto ao alto padrão de vida.  

O norte seria encerrar de modo definitivo a longa fase comunista e abraçar sem restrição a aparente moderna ordem democrática neoliberal; assim, poder-se-ia extrair das palavras do presidente Bill Clinton diante da abertura da assembleia-geral da Organização das Nações Unidas (AG-ONU) em setembro de 1993 a classificação de Moscou como democracia de mercado.

Anos se passariam e a tão aguardada transformação concernente ao bem-estar coletivo jamais chegaria ao povo. Ao invés de progresso, emergiria uma diferença social tão realçada a ponto de os ascendentes bilionários da região serem chamados de oligarcas, muitos dos quais com proximidade política inadequada com dirigentes do pós Guerra Fria, espraiados em mais de uma dezena de nações recém-nascidas.  

Nenhum dos países oriundos do antigo império soviético logrou atingir grau de desenvolvimento similar ao dos da faixa norte-atlântica: a culpa do fracasso, todavia, seria atribuída ao provincianismo político da nova classe de mandatários e à decrepitude econômica da estrutura herdada, não ao ideário recomendado sem filtro pelo Ocidente, de sorte que história ou cultura seria menosprezada na passagem de um regime ao outro.   

Destarte, a nascente Rússia se associaria à população de maneira frustrada, não de recomposição da grandeza de outrora, mesmo tendo sido ela assinalada na realidade por marcante desigualdade durante o período monárquico.

Mais bem sucedida até o momento teria sido a recuperação da autonomia de diversas nacionalidades como a letã, lituana, estoniana, armênia ou georgiana, por exemplo, embora para outras, como a ucraniana ou bielorrussa, os russos manifestem menor aceitação, ao ter em vista a existência de vínculos mais tradicionais.

Cerca de três decênios depois da conversão inicial do socialismo real para o capitalismo ultraliberal, Moscou segue rumo distinto há bons pares de anos desde a substituição da administração sem rei nem roque de Boris Yeltsin pela de Vladimir Putin: nem tão adepta da estatização como no século passado, porém não tão entusiasta da democracia.

A perspectiva de progressiva decomposição territorial também seria posta de lado, a começar pela interrupção do processo de separação da Chechênia ainda em meados dos anos noventa. Com o tempo, sacramentada a manutenção das fronteiras a datar de então, viria a expectativa do Kremlin de recompor o país em extensões parecidas com as da época de governos predecessores.  

A península da Crimeia teria sido o primeiro passo para isso, como alerta a antigos territórios da fase soviética próximos ou da União Europeia (UE) ou da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como era a questão da própria Ucrânia, fixação da política externa do Kremlin.

No quinto mês de duração do conflito, a Rússia avança de forma lenta, porém inexorável, sobre áreas do leste ucraniano, após o malogro de conquistar Kiev. São dezenas de milhares de mortes estimadas até agora, mas a atenção das principais potências já se desloca para seus problemas internos urgentes como é o caso dos Estados Unidos, preocupados com a denominada eleição do meio do mandato daqui a algumas semanas.

 

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Virgílio Arraes

Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

Virgílio Arraes
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