Correio da Cidadania

Ferrogrão: soja no coração da Amazônia e a contribuição para a mudança climática

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Introdução

Um grupo de senhoras idosas ajuizou uma ação contra o governo da Suíça, na Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), sob a alegação de que as autoridades suíças seriam responsáveis por violar o direito à vida, ao não implementar políticas públicas para mitigar os efeitos da mudança climática (1). A CEDH, em uma decisão inédita, atendeu a denúncia, condenou as autoridades suíças e reconheceu que a Suíça violou a Convenção Europeia de Direitos Humanos (Artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos) ao não implementar as medidas necessárias ao combate à mudança climática.

É um precedente importante e serve de alerta aos países que assinaram a Convenção, pois vincula os direitos humanos ao cumprimento das obrigações ambientais. Garantir aos cidadãos o bem-estar, incluindo políticas públicas para prevenção dos efeitos da mudança climática e o direito à vida é uma obrigação dos países, conforme sustenta o Acordo Climático de Paris (2).

Sobre este Relatório

Este estudo preliminar tem a intenção de despertar uma discussão sobre a possibilidade de que a intenção de construir a EF-170, a Ferrogrão, para ligar o Norte do Mato Grosso ao Arco Norte, usando a hidrovia Tapajós – Amazonas para saída pelo Atlântico, é uma opção descabida, já reafirmada, comprovada e assimilada pelos povos indígenas, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, cientistas, professores e economistas. Diante das questões atuais de ocupação e grilagem de terras públicas (3), com um verdadeiro caos fundiário na Amazônia Legal, construir outro vetor para ocupação do bioma mais importante do mundo é uma declaração do fim da floresta em pé e uma contribuição para a mudança climática.

Ficou provado que a Ferrogrão não se sustenta (4). Estudos econômicos e financeiros (5) mostraram que os números apresentados pela Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) não correspondem à realidade. Todos os indicadores, incluindo as vozes da sociedade, demostram que se o projeto sair do papel provocará ocupação desenfreada, fragilidade social, violência urbana, aumento da criminalidade com intensificação do tráfico de drogas, desassistência, aumento do desmatamento, falta de saneamento, contaminação dos povos indígenas, pressão sobre as Terras Indígenas e Unidades de Conservação, pressão sobre as populações vulneráveis e aumento da contaminação dos rios e indígenas pelo mercúrio usado no garimpo, já descontrolado. Basta entender o que está acontecendo, por exemplo, em Terras Yanomami e Munduruku, na Bacia Hidrográfica do Tapajós, que já têm grande parte da população contaminada pelo mercúrio. A mudança climática está alterando o regime de chuvas na Amazônia e expondo uma realidade maior que um simples alerta. Algo está mudando rapidamente. Os cientistas não brincam com a ciência.

Autoridades governamentais são responsáveis pelas consequências decorrentes de decisões que não levam em consideração a mudança climática e põem em risco a vida dos cidadãos

Até o escoamento das commodities agrícolas e minerais que usa o rio Tapajós e o rio Amazonas para abastecer grandes navios graneleiros está ameaçado pelas secas prolongadas. A calha do rio Tapajós, por exemplo, não comportaria o aumento de calado das barcaças de carga se a Ferrogrão saísse do papel. Mas um dado estarrecedor é o que está acontecendo no Canal do Panamá. As autoridades do Canal do Panamá reduziram drasticamente o tráfego dos navios que já se amontoam em longas filas nos dois lados do canal. Não faltam matérias (6) que alertam para a incapacidade atual e futura do canal em repor a água potável, já escassa, para abastecer as comportas.

O Brasil tem destaque internacional como um dos maiores exportadores de commodities agrícolas do mundo, com tecnologias de ponta, irrigação, solo favorável e biotecnologia. Mas pecou pelo não planejamento da logística de longo prazo e ignorar os efeitos da mudança climática. Apostou na exploração e ataque da Amazônia em detrimento da floresta e dos povos que a habitam. Não há dúvidas de que a demanda mundial é crescente, mas o gargalo logístico deverá inviabilizar essa posição brasileira. As grandes tradings internacionais, idealizadoras da Ferrogrão, pensada em 2014, não imaginavam que a ideia de levar os grãos do norte do Mato Grosso para escoar pelo Arco Norte, poderia estar com seus dias contados. Graças às lutas dos movimentos sociais, dos povos indígenas e do Supremo Tribunal Federal esse “projeto de morte” está morto, por enquanto.

O aumento da produção de grãos no norte do Mato Grosso e a saída pelo Canal do Panamá

Com a produção de grãos em expansão, prevista para o momento atual na região centro-norte e o escoamento por 1.400 km pela BR163 para Santarém, considerado pelo agro um problema grave, o projeto da Ferrogrão ganhou força a partir da sua proposta em 2014. Porém, as questões mais importantes que envolvem os impactos sociais e ambientais nos seus quase mil quilômetros foram deixadas de lado.

Diante de um futuro que prometia o escoamento pelos portos no Amazonas, Amapá e Pará, mais o de Itaqui no Maranhão, o Canal do Panamá se tornou a forma mais direta, depois da sua ampliação concluída em 2015, para exportar os grãos do norte do Mato Grosso. Mais um elemento que catapultou a ideia da Ferrogrão.

Há a possibilidade de termos sido enganados quanto ao objetivo de construir a Ferrogrão. Erramos em não pensar que o projeto da ferrovia não pretendia só ligar Sinop no MT a Miritituba no Pará. Na verdade, abaixo pretendemos demonstrar como a exploração agrícola e mineral em áreas ainda de floresta em pé, ao longo do eixo da BR-163, na bacia hidrográfica do Tapajós e no Interflúvio do Xingu, pode estar nos planos estratégicos dos sojicultores e das grandes mineradoras. O movimento não seria apenas levar as commodities agrícolas para o Arco Norte, mas explorar o potencial de 436.691 km² de terras ainda florestadas em grande parte, 35% do estado do Pará, ou as chamadas áreas de Consolidação e Expansão.

O governo brasileiro desatento ou apenas escamoteando as notícias internacionais ignora o aumento dos custos de frete praticados, hoje, no Canal do Panamá, que já atingiu patamares inimagináveis. Desde 2020 a crise se agrava. Mais adiante demonstraremos como a Ferrogrão não se encaixa e nunca se encaixou nessa alternativa logística que acabaria como a extinta ferrovia Madeira – Mamoré e destruiria UCs, terras indígenas. Os governos de outros países já se preocupam com a possível inviabilidade atual da ligação do Atlântico ao Pacífico pela hidrovia do Panamá, inaugurada em 1914.

Fatores variados começam a acender um sinal vermelho nas grandes potências para o risco de desabastecimento global e consequente aumento dos preços de alimentos, commodities minerais. O abastecimento da costa leste dos EUA já sente os efeitos negativos do aumento dos fretes; o governo do México está desenvolvendo alternativas para ligar o Atlântico ao Pacífico, por terra, com malha ferroviária e aceleração da conclusão do Corredor Transoceânico.  Alguns países já começaram a discutir alternativas para contornar o problema antes que o mundo entre em colapso (7).

“A soja é a principal commodity produzida no Brasil e tem imensa importância na economia do país. O Brasil é o maior exportador mundial de soja, respondendo por metade do consumo global desse grão”

Porque, então, construir a Ferrogrão se: 

  1. o escoamento de grãos para a Ásia, em especial de soja e carne para a China (maior parceiro comercial do Brasil), necessariamente teria que usar o Canal do Panamá, em risco, para acessar o oceano Pacífico;

  2. a saída pelo Panamá está comprometida, conforme amplamente noticiado (notas 8 e 9);
  3. o objetivo de construir a Ferrogrão é levar a soja do norte do Mato Grosso para o porto de Miritituba, no rio Tapajós (informações no Caderno ou Estudo de Demanda da ANTT) e de lá para escoar parte pelo Canal do Panamá

“Optou-se por Sinop como o centro da zona de origem, pois, de acordo com o Caderno de Demanda (ANTT, 2019a), dentro do estado do Mato Grosso, a principal região produtora é o norte do estado, onde se encontram municípios como Sorriso, Sinop, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, entre outros”

Mudança climática e os reflexos no Canal do Panamá e no centro da América do Sul

Aproximadamente 14.000 navios usam o Canal do Panamá a cada ano, conectando 1.700 portos em 160 países, segundo o último relatório anual da ACP, referente ao ano de 2015. As rotas mais importantes em termos de movimentação de carga pelo canal, segundo a Georgia Tech Panama, são: 

  1. Costa leste dos Estados Unidos e leste asiático
  2. Costa leste dos Estados Unidos e costa oeste da América do Sul
  3. Europa e costa oeste da América do Sul
  4. Costa leste dos Estados Unidos e costa oeste da América Central (10)

Além da expansão do plantio da semente pela região Norte, o escoamento da produção do centro oeste, principal produtor de soja, pela rodovia Santarém-Cuiabá até o porto de Santarém, no Pará, aqueceu a economia do estado, elevando a sua importância no cenário nacional da exportação do produto (11).

Assim como no estado do Amazonas, a proximidade em relação ao Mar do Caribe faz do estado do Pará um potencial ponto de partida para rotas com destino à Ásia, passando pelo Canal do Panamá. Os portos com terminais importantes de exportação do grão no estado são o Porto de Santarém, o Terminal de Barcarena e o Terminal de Vila do Conde, que correspondem a 96% da exportação no local.

O Porto de Santarém possui um berço para atendimento de embarcações exportadoras de grãos (12).

The Economic commitment of climate change (13)
Maximilian Kotz, Anders Levermann & Leonie Wenz
Potsdam Institute for Climate Impact Research

Uma grande seca assola a América do Sul, e a tendência é de se tornar mais grave. Um estudo científico do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático, da Alemanha, escrito pelos professores Maximilian Kotz, Anders Levermann & Leonie Wenz e publicado pela Revista Nature – (O impacto econômico da mudança climática, em tradução livre) (14), em 17 de abril de 2024, faz projeções dos prejuízos macroeconômicos das alterações climáticas que devem comprometer a economia mundial em 19% (queda permanente da renda média em todas as regiões do planeta, equivalente a uma perda global de 38 trilhões de dólares anuais até 2049) independente das futuras escolhas de emissões.

O Acordo Climático de Paris tem uma política de mitigação climática para equilibrar os custos de sua implementação com os benefícios, ao evitar os danos projetados. Esse estudo expõe a necessidade de afastar os preconceitos humanos com relação aos resultados de longo prazo, que é um grande desafio, segundo os cientistas. Então, avaliar esses danos econômicos, previamente, é uma questão de sobrevivência do mundo. Os cientistas estimaram a relação entre os custos médios de mitigação e os danos climáticos médios num horizonte até 2050. “Esses danos são seis vezes maiores do que os custos de mitigação necessários para limitar o aquecimento global a dois graus (15)”.

Segundo os cientistas, danos pelo aumento da temperatura média são negativos em quase todos os lugares, globalmente, e são maiores nas baixas latitudes, em regiões cujas temperaturas já são mais altas – zona equatorial e tropical – e onde a vulnerabilidade econômica aos aumentos da temperatura é maior.

Mudanças futuras, com aumento na precipitação anual, podem trazer benefícios econômicos exceto em regiões que estão secando: Mediterrâneo e Centro da América do Sul. Porém, os benefícios se anulam em decorrência do aumento do número de dias chuvosos que vão causar danos negativos. Alterações nas chuvas diárias intensas produzirão danos em todas as regiões em termos globais.

O estudo estima que danos econômicos até 2049, resultantes da mudança climática, já são conhecidos da economia mundial: os custos desses danos são muito maiores dos que os custos para mitigação das emissões conforme o Acordo de Paris. Ou seja, os países que sofrerão mais com os danos já cometidos (que já ocorreram) são os com a menor responsabilidade pela mudança climática e os que também têm menos recursos para a adaptação, esclarecem os cientistas.

Para concluir: a Ferrogrão vai contribuir para a mudança climática

A construção da Ferrogrão durante 25 anos implica em altos custos econômicos, na destruição da maior floresta do mundo, contribui com a mudança climática e sequer considerou o custo do NÃO FAZER, como uma forma de mitigação. O estudo da Potsdam nos faz pensar, portanto, que a Ferrogrão pode aumentar a contribuição do Brasil com o agravamento da mudança climática, considerando que a construção da ferrovia aumentaria as emissões dos gases de efeito estufa com a derrubada da floresta, com o incremento da produção de commodities agrícolas e minerárias, com a ocupação e a interferência nas terras indígenas.

Para o governo federal, governos estaduais e os ministérios envolvidos na construção da Ferrogrão, diminuir o custo do frete para escoar a produção do agronegócio para o Arco Norte é justificativa suficiente para contribuir com o aquecimento global. Melhor não esquecerem que hoje ainda é possível produzir grãos para o mundo numa região que, segundo os cientistas citados, está na parte central da América do Sul, uma das duas regiões globais em que o aumento da temperatura e a seca inviabilizarão a produção econômica. 

Mudanças de rendimento projetadas em 2049 em comparação com uma economia sem alterações climáticas. (Imagem: Kotz et al., Natureza)


“Figura acima: Redução (-30 a 0) e aumento (0 a 30) da renda per capita projetados para 2049, considerando todas as alterações climáticas, cumulativamente. Zero equivaleria à situação sem alterações climáticas (Imagem: Kotz et al., Natureza)” (16).


Assim, essa situação de clima extremo, com aumento das temperaturas do planeta, já se faz sentir na dinâmica da passagem de navios pelo Canal do Panamá (17), que liga os oceanos Atlântico e Pacífico. Os reflexos já estão nos custos dos fretes dos grandes navios que levam grãos, minérios e mercadorias para o mundo inteiro e que têm de fazer a travessia para o Oceano Pacífico e vice-versa.

Algumas grandes empresas de frete já começam a cancelar a passagem pelo Canal do Panamá. A crise da seca no canal teve início em 2020 e vem criando sérias dificuldades para o escoamento de commodities agrícolas, minerais e mercadorias, afetando o comércio mundial. A Autoridade do Canal do Panamá já acendeu o alerta vermelho ao reduzir o número de navios que cruzam o canal para menos da metade por dia e, assim, tentar conservar a água suficiente para abastecer as comportas (18).

No seu ponto mais crítico

“Imagens recentes – cortesia do Observatório Terrestre da NASA e do criador de imagens Wanmei Liang – mostram o Canal do Panamá no seu ponto mais crítico. A baixa pluviosidade reduziu drasticamente os níveis dos lagos artificiais que alimentam as eclusas do canal, atingindo níveis quase recordes. Já em 2019, a região registou uma redução de 20% na precipitação em comparação com a média, tornando-o o quinto ano mais seco desde a década de 1950” (19).

Como funciona o Canal do Panamá? Qual o papel da água doce, nesse contexto?

A água doce é fundamental para o funcionamento do canal que tem 80 km de extensão e é indispensável para o transporte de carga entre os continentes. No entanto, as mudanças climáticas agravadas pelo El Niño (20), já há algum tempo, tem transformado essa passagem num pesadelo para grandes embarcações que podem chegar a 350m de comprimento. Para cruzar o canal cada navio pode utilizar 200 milhões de litros de água doce que acabam perdidos para o mar, na maior parte.

A hidrovia do Canal do Panamá facilitou o tráfego de produtos do mundo todo e evitou a perigosa passagem pelo sul da América do Sul, pelo cabo Horn. Para se ter uma ideia da sua importância 14 mil navios cruzaram o canal em 2022. No entanto, esse número está sendo reduzido. O tráfego entrega mercadorias e insumos comercializados entre a Ásia e as Américas, principalmente para a costa leste dos Estados Unidos.

A espera na fila, para cruzar o canal, tem chegado a semanas, o que torna os fretes incrivelmente mais caros e o prazo de entrega mais longo. A crise já começa a afetar o abastecimento de alimentos e causar prejuízos e escassez dos produtos no mundo inteiro. O Brasil precisa se preparar para superar mais essa dificuldade que poderá afetar os resultados de seu crescimento. O governo já detalhou a iniciativa para criar rotas entre o Brasil e países da América do Sul (21) para integração regional (22) e entre elas está construir a Rota de Capricórnio (23): um corredor bioceânico, desde os estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, ligado, por múltiplas vias, ao Paraguai, Argentina e Chile, e ter uma saída no oceano Pacífico.

A crise no Canal do Panamá, hoje (24)

O Lago Gatún, artificial, que abastece a cidade do Panamá, está abaixo do seu nível normal. A falta de chuvas tem agravado ainda mais a situação no canal, fato que preocupa as autoridades. A revista Nature publicou um estudo que dá um alerta sobre a seca extrema que afeta o Panamá. Não há dúvida sobre como um colapso pode atingir e inflacionar o transporte marítimo de mercadorias no mundo inteiro. A crise hídrica do canal precisa ser resolvida. Mas, quais as alternativas disponíveis a curto prazo? Os Estados Unidos já começaram a planejar o seu futuro (25).

“Como alternativas reais e viáveis estão a otimização do sistema ferroviário e rodoviário dos Estados Unidos, bem como a construção no México do Corredor Interoceânico no Istmo de Tehuantepec”, afirma Roberto Durán, professor e pesquisador da Escola de Governo e Transformação Público do Tecnológico de Monterrey (TEC) no México.

E se o Canal do Panamá, longe de poder ampliar essa capacidade, é limitado, aí temos um problema”, afirma Durán.

Os panamenhos também são vítimas dessa grave crise que pode impactar o mundo todo. São 4,2 milhões de habitantes, metade da população do Panamá, que também dependem da bacia hidrográfica e que disputam a água usada pelo canal. Desde 2017 há um projeto para criar 16 eclusas por dia. Mas a execução requer condições especiais como reformas legais e aprovações políticas num momento em que o governo atual está prestes a terminar.

A solução do impasse no Canal do Panamá (26), também passa por outras questões como impactos sobre populações tradicionais no caminho do projeto de ampliação do canal. Indenizações, política, eleições e custos se somam à consulta aos habitantes do Rio Índio necessário para a construção de uma das barragens. Diante de todos os entraves a resolução do problema pode levar muitos anos e afetar a oferta de produtos, commodities agrícolas e minerais na economia mundial (27).

O GT Ferrogrão criado pelo Ministério dos Transportes

O projeto da EF-170 ou Ferrogrão, criado há 20 anos (2014), por tradings do agronegócio: ADM, Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi), passou a ser tratado de forma diferente, diante da sentença judicial do Ministro Alexandre de Moraes, no STF, que decidiu pela retomada dos estudos.

O Ministério dos Transportes, para superar a pressão do agronegócio e a crise que atrasa o objetivo do atual governo de leiloar a concessão da ferrovia, que consta no Novo PAC, decidiu cumprir a determinação do Ministro Alexandre de Moraes e criou, em novembro de 2023, um Grupo de Trabalho, o GT Ferrogrão (28). O objetivo seria colher subsídios para atualização dos estudos e ouvir todos os atores: integrantes de áreas do governo como o ministério da infraestrutura, dos transportes, do meio ambiente, dos direitos humanos; dos povos indígenas, do ICMBIO, do IBAMA, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, IPHAN, FUNAI, MPI, ANTT, e a academia. O GT ouviu os convidados sobre os impactos esperados se a Ferrogrão saísse do papel (29).

Três reuniões foram realizadas com o GT Ferrogrão, inicialmente, com apenas uma participação restrita da sociedade civil e representantes dos povos indígenas. Em 7 de março de 2024 o MT ampliou a participação da sociedade civil com o objetivo de receber mais subsídios para a discussão. Nessa reunião as manifestações foram contundentes e ficou patente, na unanimidade dos movimentos sociais, representantes indígenas, da academia, até de economistas, o repúdio ao projeto e a recusa em aceitar uma ferrovia que criaria impactos irreversíveis no já abalado equilíbrio do ecossistema amazônico.

Para os representantes da sociedade não restam dúvidas quanto aos impactos sociais e ambientais – em unidades de conservação (em especial no Parque Nacional do Jamanxim), na bacia hidrográfica do Tapajós, na ocupação ilegal de terras, na infraestrutura dos municípios, na violência e criminalidade, no aumento do garimpo e contaminação dos rios e igarapés, no desmatamento e nas Terras Indígenas -  que se somariam aos impactos produzidos pela BR-163 (construída nos anos 1970, em plena Ditadura), herdados pelos povos da região, considerando que o traçado previsto para a Ferrogrão é paralelo ao da rodovia. As reuniões do GT Ferrogrão forçaram o governo a dar a enxergar a verdadeira dimensão do descontentamento, da revolta dos povos indígenas e dos movimentos locais que participaram das discussões.

Ferrogrão e seus idealizadores condenados pelo Tribunal Popular

No início do mês de março, um grande Tribunal Popular (30), em Santarém, PA, promovido pelos indígenas Munduruku, Kayapó, Panará, Apiaká, Kumaruara, Tupinambá e Xavante, quilombolas e comunidades tradicionais, agricultores familiares, assentados, e movimentos sociais da região do Tapajós e Xingu, julgou a ferrovia e as grandes tradings internacionais que criaram o projeto. O julgamento resultou numa sentença condenatória (31) - Tribunal Popular “Ferrogrão no banco dos réus” - que elenca os impactos sociais e ambientais que fariam sucumbir a Amazônia e seus povos originários. Os estudos foram considerados falhos e a ideia da construção da ferrovia foi definitivamente rechaçada. Definitivamente não aceita pelos povos indígenas e movimentos sociais.

Dias 7 e 8 de maio de 2024, o Ministério dos Transportes realiza um Seminário do GT Ferrogrão, em Santarém (PA), em que ouvirá indígenas e movimentos sociais e apresentará as manifestações finais, e conclusões do GT, além de apresentações dos convidados e dos integrantes dos ministérios, com o objetivo de concluir as discussões sobre a viabilidade da Ferrogrão. O governo certamente apresentará uma revisão dos estudos de viabilidade econômica, ambiental, técnica e social, que teve a última atualização em 2020.

Muito recurso já foi investido para manter esse projeto sob os holofotes da sociedade, principalmente com a força das tradings Cargill, Amaggi, Louis Dreyfus, acompanhados da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), indústrias ligadas ao agro e à pecuária. Já chega dessa inversão de valores. Até no Panamá uma comunidade, a do Rio Índio, tem o poder constitucional de recusar a construção de qualquer projeto que possa prejudicar suas vidas.

No entanto, não pode haver conclusão favorável sobre construir uma obra na Amazônia com os comprometimentos já amplamente apresentados, que vão desde a falta de Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos indígenas conforme a Resolução 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, até as questões mais subjacentes que levariam à destruição do bioma mais importante do planeta. Nesses meses em que o GT Ferrogrão funcionou ficou amplamente constatada, pelas manifestações apresentadas, a inexequibilidade econômica, financeira, ambiental e estratégica do projeto que nasceu morto.

Projetos de lei que ameaçam áreas de floresta na amazônia

Neste 20 de março de 2024, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados votou o PL 364/2019 que põe em risco a integridade de todos os biomas brasileiros: mais de 50% do Pantanal, 32% dos Pampas e 7% do Cerrado, além de ameaçar diretamente 15 milhões de hectares na Amazônia (32). Esses “números representam mais de 16 vezes a última taxa de desmatamento do bioma (2022-2023), de 900 mil hectares” (33).  

Leia A NOTA TÉCNICA E JURÍDICA da SOS Mata Atlântica.



“Os municípios afetados em mais de 50% de seu território por UCs de domínio público e Terras Indígenas devem ser beneficiados com a redução da Reserva Legal, não apenas para fins de recomposição, pois já contribuem expressivamente com a conservação ambiental e sofrem em demasia com as restrições de ordem econômica que essa contribuição impõe” (Texto PL 3334/2023 sobre redução Reserva Legal na Amazônia Legal).

E sem a Ferrogrão?

Diante dos cenários apresentados abaixo, a Ferrogrão, na Amazônia, é perfeitamente dispensável, a menos que estejam considerando induzir a ocupação de áreas de floresta nas regiões dos portos do Arco Norte, na bacia do Tapajós, ao longo da BR-163, até Sinop no MT.

Conforme o Caderno de Demanda dos estudos atualizados em 2020, temos os seguintes cenários, com o andamento da construção de outras ferrovias

Cenário 1 (2030): Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO) e sua extensão até Porto Velho (RO), a extensão da Rumo Malha Norte (RMN) de Rondonópolis/MT até Sinop/MT, a extensão da Ferrovia Norte-Sul (FNS) de Açailândia/MA até Barcarena/PA, a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL, Caetité a Ilhéus) e FNS (Porto Nacional a Estrela d’Oeste) prevista para 2030;

No Cenário 2 (2035): FIOL (Caetité-Figueirópolis); FICO (Lucas do Rio Verde-Campinorte); TLSA (Transnordestina Logística SA); FNS (Açailândia-Barcarena);

No Cenário 3 (2045): a Extensão FICO (Lucas do Rio Verde-Porto Velho); Extensão FNS (Panorama-Rio Grande);

A Ferrogrão, se construída, teria o potencial de induzir a ocupação e destruição da Amazônia na região dos portos do Arco Norte e em seu traçado no rumo Sul.

Diante disso, está mais claro ainda, que a demanda teria origem ao longo da BR-163 e que já tem um projeto de duplicação no trecho do Estado do Pará.

A cidade de Sinop, no Mato Grosso, apesar de ser considerada o início ou zona de origem, de acordo com o Caderno de Demanda (ANTT, 2019a), na verdade, estaria mais para zona de destino (cenários 2035 e 2045). A Ferrogrão, na realidade, intensificaria a exploração de commodities agrícolas e minerárias nas Zonas de Expansão e Consolidação do Pará, desde o Arco Norte, diante do incremento da região na zona do traçado previsto.

As demais ferrovias seriam complementos para escoar a produção transportada pela Ferrogrão. Commodities agrícolas e minerárias em expansão de norte para o sul em terras nas Zonas de Consolidação e Expansão no Pará. Na hipótese de que grande parte das exportações brasileiras em direção à Ásia e costa oeste do EUA estaria comprometida devido às dificuldades para transpor o Canal do Panamá.

O fim da economia da floresta em pé e a questão fundiária nas Zonas de Consolidação e Expansão no Estado do Pará.

"Com 144 municípios distribuídos em um território de 1.247.689,6 km2, tem-se que 65% da área total (810.998,18 km2) correspondem à zona de conservação ambiental; e os 35% (436.691,33 km2) restantes correspondem à zona de consolidação e expansão da economia do Pará” (CARVALHO et al., 2014).

“Em resumo, o ZEE prevê 65% da área do Estado do Pará para conservação e uso florestal e 35% para a consolidação de atividades produtivas, principalmente a agropecuária. Dos 14 polígonos florestais identificados, 10 polígonos (77% da total estudada) estão total ou parcialmente situados na zona destinada às Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Por outro lado, os outros quatro polígonos florestais estão totalmente localizados em zonas destinadas à consolidação do desenvolvimento de atividades produtivas (somando 23% da área estudada)” (IMAZON, 2006).

O Decreto 1164/1971 pode ser apresentado como o AI 5 fundiário da Amazônia, pois autorizou o general Emílio Garrastazu Médici, presidente na ditadura, a praticar o genocídio dos povos indígenas da Amazônia, ao declarar que a floresta e os indígenas seriam empecilho ao “desenvolvimento” da pecuária e da produção de commodities agrícolas, na região, em substituição à floresta nativa.



Esse Decreto foi a base da política genocida instituída pelos ditadores militares no Brasil, pois autorizou o contato forçado, a retirada desses povos de seus territórios tradicionais, além de expor, propositalmente, essas comunidades às doenças desconhecidas de seu sistema imunológico e que exterminaram grupos indígenas.

Além disso, a estrutura fundiária que induzia a uma falsa ideia de colonização, repassou milhares de hectares de terras públicas, por meio de contratos de concessão, para grupos políticos e econômicos apoiadores do regime da época.