Correio da Cidadania

Quando o silêncio também é uma forma de bullying

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O machismo que silencia – CartaCapital
Toda a minha vida sofri bullying, tanto na escola, como em casa, quando criança e depois como adolescente e finalmente como adulta e na maturidade. É incrível como a gente só percebe isso depois quando ficamos mais velhas e o problema continua. No ginásio, no curso Normal e na Faculdade de Pedagogia eu anotava tudo que os professores falavam, hábito que trago até hoje quando me deparo com notícias, vídeos, podcasts. No entanto, no ginásio, meus colegas de classe riam do meu hábito e chegaram a levar gravador para que o desprezo por mim fosse mais evidente. Eu era a melhor aluna da classe, aliás desde o curso primário e até a faculdade.

Ser a melhor é um fardo em qualquer momento da vida de uma mulher obcecada pela verdade, pela perfeição e pelo amor ao que faz. O tempo passou. Quando me vi adulta, depois de casada sofri bullying no casamento, na família e nas amizades. Até minha vontade de aprender a falar perfeitamente o inglês foi destruída porque quando eu errava em público era corrigida imediatamente. Acabei por desenvolver um medo atroz de falar errado e assim parei de tentar, nunca mais tentei aprender inglês. Hoje me arrependo por não ter insistido, mas aprendi e ainda fico travada.

Sei que na mídia moderna é possível nos depararmos com autoridades, professores, advogados, profissionais em geral que falam um inglês bem sofrível, mas suficiente para ser compreendido. Isso não me servia, eu tinha que ir à perfeição. E é assim até hoje.

Quando comecei o meu ativismo, na década de 1980, ainda como empresária do ramo de moda, comecei a questionar a política, a discriminação que sofriam as micro e pequenas empresas, o trabalho de mulheres. Fui líder de uma associação de pequenas empresas e com isso despertei a ira de gente mais poderosa ainda. Mais uma vez o bullying aparecia, mas por parte dos homens, principalmente, pois além de empresária eu comecei a aparecer em jornais e revistas. Dei entrevistas e acabei sendo crucificada por pequenos empresários que achavam que mulheres não deveriam se meter em assuntos políticos e empresariais.

O tempo passou. E então numa nova versão de mim mesma, o ativismo ambiental me pegou e não me deixou até hoje. No entanto, o bullying continuou. Numa esfera que só homens atuavam, como era o caso em que me envolvi, enfrentando uma empresa como Furnas Centrais Elétricas, onde os homens eram maioria absoluta. Para atuar no âmbito da justiça ambiental pesquisei, estudei e me identifiquei desta feita com as questões ambientais num mundo masculino. E aí o bullying foi ainda pior. Me debrucei nos estudos sobre energia elétrica, transmissão e geração, questões técnicas, econômicas e ambientais. Aprendi muito mais do que deveria, pois foi a conta para que os homens começassem a me discriminar e falar da minha ousadia de discutir e escrever sobre o assunto.

Com isso, fui a primeira ativista ambiental, voltada para o tema energia elétrica, a criar um blog sobre o assunto. Um homem, jornalista, descontente com um artigo meu, me chamou de “blogueira”, para me ofender, termo que aqui era usado no mal sentido, o que não ocorria fora do Brasil, onde ser blogueira era elogio na época. Mas quero ressalvar que no decorrer de todos esses anos encontrei uns poucos homens que me respeitaram. Uns, infelizmente, morreram precocemente, outros são meus amigos de outros tempos e outros são atuais. Eu os reverencio!

A partir daí forcei minha participação em grupos de discussão ambiental voltados principalmente para as questões de energia elétrica. O bullying passou a ser ainda maior, pois eu era discriminada e impedida de participar das discussões e meus artigos não eram apreciados e nunca mencionados. Eu era e ainda sou outsider. Eu não recebia os créditos quando usavam meus artigos, textos e pesquisas para suas palestras nas ONGs ou fora delas. O auge aconteceu durante minha atuação no processo de licenciamento ambiental da Linha de Transmissão Itaberá-Tijuco Preto de 750 kW. Mesmo participando de uma organização local, não consegui apoio e sequer respeito pelo meu empenho e trabalho. Cheguei até a ser expulsa da organização presidida por um homem “dono” e que se indispôs comigo quando percebeu que a política local parara de apoiar a ONG e o protagonismo era muito mais meu do que dele.

Bem, mesmo assim, com o apoio do MPF de São Paulo, conseguimos parar a construção da LT por quatro anos, até que Furnas cedeu e fez as compensações ambientais exigidas no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e acabou beneficiando uma aldeia indígena no sul da cidade de São Paulo, em Parelheiros, e os municípios afetados. Esse caso emblemático deu origem ao meu primeiro livro onde contei a história da LT sem omitir nada. Furnas pagou pelos 3 mil exemplares e eu os distribui para escolas, organizações e pessoas.

A partir daí não parei mais. Em 2005 comecei a participar de um grupo chamado GTEnergia e tentava me enquadrar entre outros ativistas e organizações não governamentais. Tratava-se de discussões sobre licenciamento ambiental em parceria com o então Ministério do Meio Ambiente, para monitorar os processos de licenciamento. Foi bastante estressante para entrar no GTEnergia. Em uma das minhas buscas localizei uma troca de mensagens em que os responsáveis pelo GT colocaram minha candidatura para aprovação e um membro do GT, advogado de uma grande ONG, se saiu com a seguinte justificativa para não aprovarem meu nome: “ela é apenas uma dona de sítio na região da linha de transmissão”. Pois é dr. Marcelo, descobri o que você fez no verão passado!

Mas, para minha sorte havia uma outra mulher no grupo que era a coordenadora e que aceitou a minha participação. Despois disso, minha insistência e tenacidade me trouxeram até aqui. Não sem antes ter sido alvo do bullying dos integrantes masculinos do GTEnergia, que desconsideravam minhas intervenções, ignoravam meus artigos, nos eventos não me acolhiam e sequer me permitiam a palavra.

Meus artigos sobre linhas de transmissão e geração de energia foram todos desconsiderados e, depois de algum tempo eu descobri mais uma vez que o fato de eu não estar na academia era a razão para não ser digna de estar ali ou escrever sobre o assunto. Mas, curiosamente, a justiça se fez, pois apesar da minha “falha” na participação acadêmica, muitos dos meus artigos foram citados em teses nas universidades do Brasil e de outros países.

Tudo bem, acostumada aos fatos como: o bullying, a discriminação em eventos, ser mulher e fora da academia, eles acabaram me granjeando mais tenacidade, mais força para enfrentar um mundo masculino, misógino e machista. Eu só era uma pedagoga, ex-professora, “dona de um sítio” na Grande São Paulo, mas sem vínculo algum com as questões “masculinas” de energia elétrica. Foi assim com a luta contra Furnas, empresa 99% masculina, misógina e machista, também. Se eu não tivesse tido o apoio do MPF na pessoa da Dra. Maria Luiza Grabner, para a causa contra Furnas, jamais teria conseguido ascender ao Olimpo dos acadêmicos machistas.

Continuou sendo assim, depois de mais de 20 anos de atuação. Nesse tempo, todos aqueles homens continuaram sendo os mesmos, me ignorando até hoje, apesar da convivência obrigatória, por dever de ofício, com muitos deles, ainda não há interação. E, mudou o milênio, o século, a tecnologia da informação, mas os machistas continuam os mesmos. Apenas envelheceram e ainda me ignoram nos eventos, como aconteceu nos Diálogos Amazônicos, em agosto de 2023, em Belém, Pará, durante duas oficinas que criei em nome da organização internacional que representei.

Hoje o silêncio fala mais alto. Os grupos de discussão têm maioria de homens, ainda, principalmente na minha área de atuação – energia, obras de infraestrutura, Amazônia. É verdade que agora já há muitas mulheres atuando, mas não são todas em funções de liderança, principalmente nessas áreas. Os homens continuam ostensivos e quando você consegue colocar a cabeça para fora, sendo mulher, só ecoa o silêncio das vozes masculinas. E na maioria dos eventos eles são supremacia e deixam isso bem claro quando passam por cima do seu trabalho, usam suas conclusões e seus artigos, menosprezam suas oficinas e desprezam suas participações em entrevistas.

Por incrível que pareça, ainda é assim. E quando o sucesso chega para a uma mulher, num ambiente machista, essencialmente, a maioria dos homens tenta desconstruir, desvalorizando o seu trabalho com argumentos depreciativos ou o silêncio.

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Telma Monteiro

Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora

Telma Monteiro
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