Correio da Cidadania

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (2)

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2º. O regime do Partido Ba’ath, liderado por Saddam Hussein, foi uma cruel ditadura sunita que massacrava curdos e “xiitas”

 

Desde a Revolução Iraquiana de 1958, de caráter nacionalista e socialista, portanto, esquerdista, que derrubou a monarquia hachemita pró-Ocidente, sobretudo, pró-britânica, os EUA iniciaram a guerra contra o Iraque, perdurando até os dias atuais. Esta guerra por procuração se deu por intermédio do Irã, sob a autocracia do (imperador em persa) Reza Pahlevi, de Israel, dos curdos iraquianos e, hoje, do ISIS.

 

Com a derrubada da monarquia hachemita, proclamando-se a República, o general e então presidente Abdul Karim Kassem convocou comunistas e os curdos para participarem do governo. Porém, quando Kassem promoveu a reforma agrária, desagradou os grandes latifundiários curdos, dando início à “revolta curda”, em 1961, liderada pelo clã Barzani, fundadores do Partido Democrático Curdo (PDC), que passou a ser armado, treinado e financiado por Israel e Irã, sob os auspícios dos EUA.

 

Em 1970, reconhecendo a derrota militar frente aos curdos e iranianos, Saddam Hussein ofereceu o mais amplo acordo que nenhum outro governo já tinha oferecido aos curdos: o reconhecimento de uma das línguas curdas como oficial (lembrando que existem quatro línguas distintas entre si), o reconhecimento oficial da bi-nacionalidade árabe-curda do Estado iraquiano, um parlamento próprio e ministros em Bagdá. Turquia e Irã jamais fizeram propostas de tamanha envergadura.

 

Em 1974, a União Patriótica Curda (UPC), liderada pelo clã Talabani, apoiada pelas classes médias curdas de Bagdá, foi convidada a participar do Conselho do Comando Revolucionário (CCR), órgão executivo máximo do Iraque, que nomeou um vice-presidente curdo Taha Maaruf. Porém, quando o Irã deixou de apoiar momentaneamente o PDC, com o Acordo de Paz de Argel, em 1975, para a fúria do secretário de Estado ianque Henry Kissinger, os EUA e Israel prosseguiram no financiamento à guerrilha curda contra Bagdá.

 

Durante a guerra Irã-Iraque, entre 1980 e 1988, novamente o Irã, agora uma República Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini, deu continuidade ao apoio aos curdos iraquianos, a ponto de, em 1986, unir as duas principais milícias curdas do Iraque, o PDC e o UPC, para combater e derrubar o governo do Ba’ath, ao mesmo tempo em que massacrava os curdos iranianos. Não há sombra de dúvidas de que tais eventos eram conhecidos e consentidos pelos EUA.

 

Quanto à acusação de que Saddam Hussein usou armas químicas contra os curdos iraquianos no vilarejo de Halabja, denunciada primeiramente pelo então secretário de Estado dos EUA George Schultz, sob o governo Reagan, em 1988, ela foi desmascarada pelo ex-analista da CIA Stephen Pelletiere, que escreveu um artigo desmentindo categoricamente a acusação dos EUA contra o Iraque. A acusação de Schultz contra Saddam Hussein foi brandida como a grande prova incomensurável da brutalidade, sadismo e selvageria de como o líder iraquiano tratava sua própria população. Ela serviu como o mais forte pretexto para as invasões ianques do Iraque em 1991 e até mesmo em 2003.

 

O ataque com gás não foi realizado pelo Iraque, mas sim pelo Irã, que cometeu um erro durante a batalha pela cidade de Halabja, onde ambos os lados usavam armas químicas (um professor de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro afirmou, no entanto, que toda bomba é uma arma química). Como é muito difícil controlar estes gases, a população curda foi atingida. A prova de que não foram os iraquianos é que o gás utilizado neste ataque era o cianeto, justamente o usado pelo Irã. O Iraque utilizava gás mostarda.

 

Na época, a própria CIA averiguou o fato. Como as provas apresentadas por Pelletiere não podiam ser refutadas, a mídia ocidental passou a ignorá-lo. O inacreditável, no caso, foi como amplos setores da esquerda aceitaram a acusação do então secretário Schultz, que jamais acusou Israel de promover o Massacre de Sabra e Chatila no Líbano, como verdadeira e inconteste.

 

Não há dúvidas de que Saddam Hussein usou a força bruta contra os curdos, mas qual chefe de Estado aceitaria o desmembramento de seu país? Qual líder socialista, como era o caso de Saddam Hussein, aceitaria a formação de um Estado liberal e racista? Saddam Hussein não fez menos pelo Iraque que o presidente Abraham Lincoln, que rasgou a Constituição dos EUA e promoveu a mais sangrenta guerra da História estadunidense contra o direito dos Estados Confederados da América de se separarem da União.

 

Lincoln, um defensor do segregacionismo racial, é até hoje aclamado como herói dentro e até mesmo fora dos EUA e entre alguns esquerdistas. A única verdadeira diferença entre Saddam Hussein, assassinado durante a invasão anglo-americana, e Lincoln é o fato de o projeto político nacionalista e socialista para o Iraque do partido Ba’ath ter sido destruído junto com o próprio país, por uma combinação de forças militares incomensuráveis (EUA, Israel e Irã), enquanto o líder dos EUA, que também foi assassinado, acabou vitorioso tanto na guerra quanto no projeto político para o seu país.

 

Quanto ao esmagamento da insurreição dos “xiitas” no sul do Iraque, como denomina a mídia ocidental, os EUA fomentaram tanto o “levante” curdo quanto o “xiita”, logo após a primeira grande invasão estadunidense do Iraque (chamada “Guerra do Golfo”), em 1991, que exterminou cerca de 150 mil iraquianos. Este “levante” foi insuflado no sul do país por líderes religiosos iranianos que viviam em Karbala e Najaf e exerciam forte influência no partido iraquiano al-Da’wah (O Chamado, em árabe), patrocinado pelo Irã desde o governo do . Como todo líder político que percebe um movimento separatista armado, patrocinado por potências estrangeiras, agiu militarmente. Mesmo tendo uma forte presença “xiita” nas forças armadas e no aparelho estatal, inclusive nos altos escalões do poder e na área de segurança de repressão interna, não houve defecções dentro do governo iraquiano durante a repressão ao separatismo “xiita”. Mais ainda, não existiram vendettas de “sunitas” contra a população “xiita”, como se espera de um conflito sectário típico.

 

Assim sendo, o governo de Saddam Hussein, ao atacar os curdos ao norte, também visava acabar com a infiltração estrangeira (sobretudo, israelense e iraniana, patrocinada pelos EUA), que era permanente. Isto pode ser constatado pelo fato de o líder iraquiano jamais promover a limpeza étnica contra a população curda que habitava multi-secularmente Bagdá. Reconhecer a independência do Curdistão, isto é, um Estado soberano exclusivamente curdo, abria caminho para a limpeza étnica das populações árabe, turcomena, assíria, yazedita que viviam ali também há séculos, muito antes até do surgimento do Império Otomano. Nenhuma destas comunidades étnicas aceitava o domínio curdo e jamais se solidarizaram com a “independência” curda, que, como já era de conhecimento de todos, atendia apenas aos interesses dos EUA, de Israel e do Irã.

 

Durante a segunda grande invasão anglo-americana de 2003, os curdos, assessorados militarmente pelos israelenses, não apenas apoiaram os invasores, como também deram início à limpeza étnica contra árabes, yazeditas, assírios e especialmente contra a população turcomena, que apelou ajuda ao governo de Bagdá, mas cujo colapso fez os turcomenos pedirem socorro à Turquia.

 

Quanto aos iraquianos “xiitas”, como toda comunidade religiosa é heterogênea, era fortemente laicizada. Somente uma pequena minoria religiosa e sectária no sul do Iraque, atrelada ao partido direitista al-Da’wah e ao Irã, chefiada pelo grande aiatolá (sic) Ali al-Sistani, colaborou com a invasão de 2003, que exterminou 1,5 milhão de iraquianos. A feroz repressão de Saddam não foi direcionada contra os iraquianos xiitas, até porque seria impossível, eles estavam plenamente integrados à sociedade, mas, sim, contra um partido atrelado aos interesses de potências regionais e internacionais.

 

Por ser uma sociedade profundamente laicizada, era comum o casamento entre iraquianos de fé xiita e sunita, e, claro, entre as diversas etnias que ali viviam (curdos e árabes, por exemplo). “Xiitas” e “sunitas” não são, portanto, etnias e muito menos comunidades religiosas apartadas uma da outra. É neste sentido que temos de entender que, se havia de facto uma ditadura no Iraque, ela jamais adotou uma política sectária, e nem podia ser assim.

 

Saddam Hussein, como um verdadeiro líder nacionalista de esquerda, nunca reprimiu opositores em decorrência da etnia ou fé professada, mas, sim, exclusivamente, em decorrência do embate político. Do contrário, jamais teria sentenciado a morte de seus próprios parentes que passaram a colaborar com o Ocidente. Além disto, dos 55 altos dirigentes do partido Ba’ath oficialmente perseguidos pelos EUA, durante a invasão de 2003, 33 eram iraquianos de fé xiita, provando a integração desta comunidade no maior partido laico e nacionalista árabe do país.

 

3. Saddam Hussein era um déspota, um ditador, e por isso merecia ser derrubado

 

Temos de levar em consideração o que o pensamento liberal, a ideologia por excelência do sistema capitalista, cujo centro de poder são os EUA, considera como um governo como despótico. No século XVII, o pensador britânico John Locke, em seu livro clássico Dois Tratados Sobre o Governo, define como despótico todo governo que atenta contra a propriedade privada e, portanto, a liberdade dos homens de negócio. Ainda que não seguissem os preceitos do pensamento marxista strictu sensu, os governos formados após a Revolução Iraquiana de 1958 eram verdadeiramente esquerdistas, pois, além de nacionalizarem o petróleo, promoveram a reforma agrária, a emancipação das mulheres, a criação do sistema previdenciário para os trabalhadores e as classes médias e a educação pública universal.

 

Como o partido Ba’ath não era de origem burguesa, mas, sim, originário das classes médias urbanas, não era anticomunista e não favoreceu o surgimento de uma grande classe burguesa. Pelo contrário, a classe burguesa era pequena em tamanho e em poder político, sendo submetida ao poder do Estado iraquiano. Por este motivo, dentro de uma leitura liberal lockeana, os governos do Ba’ath eram certamente despóticos, ditatoriais, tirânicos, pois não asseguravam a “liberdade” para a burguesia (especialmente a anglo-saxã) em se apropriar do Estado.

 

Sendo assim, segundo Locke, cabe aos homens livres, os senhores proprietários, os escolhidos por Deus, o dever sagrado de garantir o livre acesso à propriedade, tendo o direito de castigar da forma mais brutal possível o governo despótico, pois a verdadeira tirania é aquela que veda o acesso à propriedade. Portanto, as duas invasões anglo-americanas do Iraque, em 1991 e 2003, foram verdadeiramente uma guerra para promover a “democracia da casta racial/classe dos proprietários brancos anglo-saxões protestantes e pós-protestantes” no Iraque, mesmo que para isto tivessem que exterminar mais de 2,5 milhões de iraquianos.

 

Somente no Liberalismo é que se pode justificar o genocídio promovido pelos EUA e Inglaterra no Iraque. De fato, George W. Bush e Anthony Blair não mentiram sobre suas intenções no Iraque, foi o profundo eurocentrismo de grande parte da esquerda que não permitiu entender o caráter genocida do discurso liberal em favor da “democracia dos senhores” no Iraque.

 

Desde o golpe de Estado de 1968, perpetrado pela ala civil do partido Ba’ath (diferentemente do golpe ba’athista da Síria de 1970, quando a ala militar tomou o poder), até a invasão anglo-americana de 2003, a instância máxima do poder executivo foi o CCR, que foi formado não apenas por ba’athistas, mas também por integrantes do PCI e do UPC. O CCR era órgão executivo que realmente fiscalizava os atos do presidente da República e dos ministros de Estado, portanto, o poder do presidente da República jamais poderia ser despótico.

 

Ainda sobre o caráter ditatorial dos longos 35 anos de poder de Saddam Hussein, pode ser medido pelo fato de ter sido alvo e resistido a duas grandes invasões e ocupações militares promovidas pela maior e mais poderosa máquina de extermínio já construída por mãos humanas, os EUA, que revelaram o quanto eram sólidas as bases sociais de sustentação dos governos do Ba’ath. Por muito menos, ditaduras extremamente repressivas, como a da Junta Militar da Argentina, entre 1976 e 1983, e a dos “coronéis” da Grécia, entre 1967 e 1974, que sofreram derrotas militares em guerras travadas fora de seus territórios nacionais, foram derrubadas pelas próprias populações e seus líderes, humilhados, julgados e presos.

 

Saddam Hussein, o “déspota do Iraque”, segundo liberais e muitos esquerdistas, não foi deposto pelo povo e nem por um golpe de Estado, mas, sim, por duas ferozes invasões estadunidenses imperialistas, que destruíram o Estado e exterminaram mais de 2,5 milhões de iraquianos, quase 10% da população total do país.

 

 

Leia também:

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (1)

 

Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana – USP.


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