Correio da Cidadania

Retrospectiva 2015 e prospectiva 2016

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O ano de 2015 foi marcado pelo contraste entre o despotismo imperial-liberal-totalitário dos EUA sobre o mundo e a cada vez mais evidente limitação do poder russo. No ano que está terminando, comprovou-se mais uma vez que não há linhas vermelhas ao poder global estadunidense. Este poder, como já foi dito por inúmeros especialistas em Relações Internacionais, não se sustenta exclusivamente pelas armas e finanças, complementado pela capacidade de impor narrativas por meio da máquina de propaganda de guerra que é a mídia ocidental, da qual a brasileira é vassala.

 

Nem mesmo o esporte escapou da ação totalitária arbitrária e despótica da autoproclamada “nação indispensável”. O ataque ianque à Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) foi aclamado até mesmo entre as hostes ditas progressistas, em maio de 2015. A narrativa construída pela máquina de propaganda da Casa Branca de que estaria combatendo a endêmica corrupção naquela federação esportiva foi facilmente aceita, como se os EUA fossem portadores impolutos da verdade e da Justiça mundial. Mesmo escancaradas as relações, no mínimo, “heterodoxas” entre os dirigentes esportivos regionais, governos, empresas e os diretores daquela instituição esportiva internacional, ainda assim não seriam justificativas para a aceitação de um ataque ianque em nome do combate à corrupção.

 

Até porque se a questão é o combate à corrupção, o FBI, a polícia política dos EUA, teria de prender dirigentes como seu próprio diretor, o ex-vice-presidente sênior da Lockheed, James Comey, empresa do complexo industrial-militar envolvida em inúmeros casos de corrupção nos anos 1970, certamente um hábito que não deve ser fácil de abandonar. Ainda persistindo na crença na narrativa da “missão de combater a corrupção”, o FBI seria obrigado a prender todos os políticos em Washington D. C., a começar pelo próprio presidente da República, cargo que para ser conquistado obriga seus candidatos a arrecadarem mais de US$ 300 milhões, “cifra de corte” que só cresce a cada pleito eleitoral.

 

Grande parte da esquerda aceitou a versão do governo de Barack Obama de ser necessário dar “um cartão vermelho” para as atividades escusas dentro da FIFA, esquecendo-se do fato muito elementar de que o cargo de presidente dos EUA tem, entre outras funções policialescas, a incumbência de exterminar e saquear não apenas pessoas, mas nações inteiras ao redor do mundo.

 

É preciso lembrar que o golpe contra a federação futebolística ocorreu como parte da guerra que os ianques travam contra a Rússia, eleita sede da Copa do Mundo de Futebol de 2018, e contra os palestinos, convidados a integrarem a FIFA como membros plenos. Como objetivos secundários, foi também mais um golpe contra a suposta neutralidade da Suíça, impondo de facto sua suserania sobre os helvéticos, processo iniciado com a intervenção nos bancos suíços sob o pretexto de recuperar os fundos nazistas ali depositados na II Guerra Mundial e indenizar as vítimas judias do Holocausto.

 

Outro objetivo não declarado foi o de garantir o controle ianque sobre o futebol, uma atividade esportiva muito rentável com perspectivas de crescimento tanto de praticantes quanto de público. A FIFA era uma das raras federações esportivas internacionais que não estava sob o domínio da “nação excepcional”.

 

O ataque à FIFA foi um dos motivos pelo ano de 2015 ter consolidado a percepção, para os mais críticos, de que o governo (ditatorial ao estilo romano) Barack Obama, laureado em 2009 com o Prêmio Nobel da Paz, é um dos mais extremistas da história dos EUA, como se fosse possível superar o extremismo dos governos Reagan, George H. W. Bush, Clinton e W. Bush.

 

Na realidade, os EUA são uma nação forjada no extremismo, na defesa do genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Portanto, não deve surpreender o patrocínio ianque, com armas e dinheiro, a governos nazistas no leste europeu (Croácia, Bósnia-Herzegovina e o que resta da Ucrânia), de narco-Estados (Colômbia, México, Kosovo), de governos exclusivistas étnicos e religiosos (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Israel, Mianmar, Kosovo, Albânia, o “Curdistão” iraquiano).

 

Redesenhar fronteiras

 

E, por este mesmo motivo, não podemos nos surpreender com a continuidade das guerras contra governos que não aceitam o exclusivismo como suporte ideológico do Estado, como são os casos do Ba’ath na Síria, ou os bolivarianos na Venezuela. Desde o dia 9 de março, Obama declarou a Venezuela como “uma ameaça à segurança nacional dos EUA”, uma declaração de guerra via sanções econômicas e mercenários colombianos, que atravessam a fronteira colombiano-venezuelana para desestabilizar a república bolivariana.

 

A sanha golpista do atual presidente ianque, iniciada com a derrubada do presidente hondurenho Manuel Zelaya, em 2009, ganhou ímpeto na América Latina, algo poucas vezes visto desde as décadas de 1960 a 1970. Além da Venezuela, tentativas de desestabilização golpista no Equador, Brasil e Bolívia. Na Argentina, levou à derrota nas eleições presidenciais do partido de Cristina Kirchner, provocando o retorno do liberalismo sem máscaras através da eleição do oposicionista Maurício Macri, que já estabeleceu Estado de Emergência. Não podemos deixar de afirmar que o estabelecimento de relações diplomáticas plenas entre Cuba e EUA é uma estratégia de desestabilização da América Latina, neutralizando um dos países mais empenhados no confronto ao Imperialismo.

 

A guerra na Síria é o foco, no entanto, da principal crise mundial que marca a década de 2010. Em 2015, a destruição deste país árabe que foi, ao lado do Iraque, o principal polo transmissor do nacionalismo árabe no século passado, é reduzida pela mídia ocidental como uma “crise”. A Síria tem hoje mais de 12 milhões de refugiados, dos quais cerca de 7 milhões permanecem dentro do país arrasado e outros 5 milhões se refugiaram majoritariamente em países vizinhos (cerca de 2,2 milhões na Turquia, 1,2 milhão no Líbano, 1,4 milhão na Jordânia e outros 250 mil no Iraque).

 

Estes refugiados dão a dimensão da catástrofe humanitária do processo de implosão do país, pois as cifras representam cerca de 50% da população da Síria. As tropas governamentais que estavam vencendo a invasão terrorista promovida pelos EUA e vassalos regionais (especialmente Turquia, Israel e Arábia Saudita) entre 2012 e 2014, tiveram seus avanços neutralizados com o avanço do falso “Estado Islâmico” (ISIS/ISIL/EIIL/EIIS/DAESH) em 2014, que em meados de 2015 conquistou a cidade histórica de Palmira, na região central do país árabe.

 

O ISIS é, ao mesmo tempo, um grupo de mercenários e um esquadrão da morte com pretensões de criar um “Estado” entre a Síria e o Iraque, a fim de borrar as fronteiras arbitrárias impostas pelos impérios russo, inglês e francês no início do século 20, nos acordos de Sykes-Picot-Sazanov. Neste sentido, seu intento geoestratégico se soma aos esforços neoconservadores dos EUA e de Israel de “redesenhar” o mapa do Oriente Médio (OM), expresso pelo governo George W. Bush na década de 2000, quando ele falou da necessidade de se formar o Grande Oriente Médio (GOM) e quando a então secretária de Estado ianque, Condolezza Rice, congratulou o ataque israelense ao Líbano, que assassinou mais de 1200 árabes, com a frase “são as dores de parto do Novo Oriente Médio (NOM)”.

 

Como visto, o ISIS é um dos rebentos do NOM/GOM a ser “construído” por meio da implosão dos Estados locais, como são os casos da Palestina, Líbano, Iraque e agora a Síria. A destruição de mais um país na área core do Oriente Médio garante aos EUA a implosão de toda a região e cria uma onda de choque que certamente atingirá e desestruturará as fronteiras da Federação Russa, da República Popular da China e da Índia. Isto abriria caminho para a conquista total do espaço euroasiático, garantindo à Casa Branca sua supremacia sobre toda a humanidade, realizando o projeto do “Século (21) americano”.

 

A destruição do OM pelo Ocidente ocorre pelo fomento das forças mais obscurantistas desde o século 19, início do imperialismo europeu, quando testemunhamos a aliança entre a Inglaterra com o clã wahabita-saudita em 1811, com objetivo de impedir os otomanos de controlarem o Golfo de Áden. Esta aliança não foi meramente tática. Na metade do 18, os wahabitas-sauditas formaram um emirado na área central da Península Arábica (Nejd), cujo processo expansionista prosseguiu nos séculos seguintes. Um século e meio mais tarde, os britânicos apoiariam mais uma vez, com armas e dinheiro, o expansionismo do emirado wahabita-saudita, a ponto de expulsar os xerifes (guardiões) de Meca e Medina, santas do islã, o clã dos Hachemita.

 

Estas cidades se localizam na região litorânea sul da Península Arábica, o Hedjaz, com uma cultura adversa à da zona central, o Nejd. Com a expulsão dos Hachemitas, patrocinada pelos ingleses, os wahabitas-sauditas formaram o reino da Arábia Saudita, unificando o Hedjaz com o Nejd. Nos estertores da II Guerra Mundial, os EUA forjaram uma aliança com os sauditas, consolidando a marginalização dos Hachemitas e a subordinação do Hedjaz ao Nejd. Desta forma, a Casa Branca deu continuidade à política britânica na Península Arábica. Isto demonstra que a questão central desta aliança não foi meramente o petróleo; decorre de motivações mais profundas.

 

Os Hachemitas são muçulmanos sunitas e eram um clã apoiado pelo Império Otomano, enquanto os wahabitas-sauditas são seguidores de uma seita exclusivista, extremista e herética, originários de uma região marginal da Península Arábica, do mundo árabe e do OM, o Nejd. Esta região marginal esteve por milênios longe do contato mais direto com os grandes impérios médio-orientais, asiáticos e euroasiáticos que dominaram o OM. Jamais foi conquistada pelo fato de ser predominantemente desértica e contar com poucos oásis. Somente no século 18, com o surgimento da seita wahabita, o clã saudita aderiu à nova fé, selando a aliança com o fundador da heresia, Abdel Wahhab, através do casamento com a filha dele.

 

Este pregador defendia um monoteísmo obscurantista que foi rechaçado pelos muçulmanos sunitas naquele momento. Os fanatismo e exclusivismo dos wahabitas-sauditas causou profunda repulsa em todo o mundo muçulmano quando destruíram a tumba do profeta Mohammed e atacaram as cidades sagradas do xiismo de Najaf e Karbala, durante o processo de expansão, no início do século 19. Imediatamente, os otomanos enviaram expedições para contra-atacar os wahabitas-sauditas, vitoriosas momentaneamente.

 

Desta forma, a aliança dos EUA com os wahabitas-sauditas, em 1945, não pode deixar de ser vista como uma maneira de os ianques controlarem a região através do extremismo religioso em detrimento do nascente nacionalismo árabe e de um ataque às tradições de convivência, coexistência e sincretismo do Islã tradicional. É preciso ressaltar que o wahabismo não prega o retorno à tradição islâmica, que é o pluralismo, mas, sim, a “regressão” do Islã. E esta longa aliança anglo-saxã-saudita, iniciada pelos ingleses e continuada pelos ianques, foi forjada em decorrência, sobretudo, das afinidades e paralelos entre as duas culturas, especialmente entre as elites wasp e saudita, quais sejam: o culto às armas, o puritanismo religioso, culto às mitologias da liberdade dos cowboys e dos beduínos, individualismo, apreço pelos negócios, segregacionismo e exclusivismo étnico e religioso; culto ao luxo, consumismo e hedonismo pervertido. Tais foram e são os elementos que unem os EUA e a Inglaterra ao reino saudita e à seita herética do wahabismo.

 

Com este apoio anglo-saxão, os sauditas disseminaram seu extremismo religioso para os demais protetorados britânicos e deram origem às monarquias exclusivistas e segregacionistas do Bahrein, Kuwait, Emirados Árabes Unidos (EAU) e o Catar. Disseminação favorecida pela geografia por estes países serem extensões do deserto saudita. As barreiras montanhosas que separam os sauditas emirados do Omã e do Iêmen refrearam esta disseminação, fez com que estas duas civilizações árabes mantivessem suas culturas livres da influência wahabita e pelo menos diminuíssem sua pressão.

 

Este exclusivismo wahabita-saudita, fomentado pelos EUA e Inglaterra, ganhou um forte aliado com a fundação de Israel, a destruição da Palestina em 1948 e a vitória do exclusivismo étnico-religioso judaico-sionista. Assim sendo, a aliança entre Israel, Arábia Saudita e EUA/Inglaterra criaram uma espécie de triângulo racista, cujo impacto se faz sentir nos dias de hoje, através da destruição da Líbia, do Iraque, da Somália, do Iêmen e da Síria, que eram sociedades marcadas pelo pluralismo étnico-religioso. Estes Estados raciais, sectários, segregacionistas e racistas, patrocinados pelo poder anglo-saxão, são modelos para se forjar novas estruturas estatais na Ásia, na África e no Leste Europeu, sobretudo como meios para cercar, desestabilizar e implodir a Rússia e a China.

 

A Síria tem servido, portanto, um campo de batalha para estas forças sectárias exclusivistas pró-ocidentais, que têm comprometido a soberania conquistada pelo processo de libertação nacional iniciado em 1955. No presente momento, as perspectivas para a resistência liderada por Bashar al-Assad não são das mais promissoras. O governo de Damasco controla menos da metade do território sírio e mais da metade da população está deslocada de seus lugares de origem. As forças terroristas são também separatistas, como os curdos kurmanjis do Rojave, o ISIS, a al-Qaeda (Frente al-Nusra) e o Exército Livre da Síria (ELS), que recebem apoio militar e financeiro direta ou indiretamente dos EUA. A Rússia arrisca-se numa estratégia controversa de apoiar grupos terroristas para combater os terroristas do ISIS. Apoia até mesmo o separatismo curdo kurmanji, no nordeste sírio.

 

O enfraquecimento russo

 

Por este motivo, a entrada da Rússia na Síria para atacar o ISIS, com a permissão dos EUA, não pode deixar ilusões sobre a limitada capacidade militar do país euroasiático frente ao projeto racista anglo-saxão. Ele conseguiu barrar o avanço do terrorismo no país árabe, mas não foi o suficiente para dissuadir a ação da Casa Branca. O veto russo ao ataque ianque à Síria em agosto de 2013 foi neutralizado pelo contra-ataque dos EUA na Ucrânia, o que certamente foi um elemento importante para Teerã continuar as negociações de rendição com Washington D.C. Este acordo foi finalmente selado em agosto de 2015, garantindo aos EUA e seus vassalos as condições legais para destruir o Irã, algo que não ocorreu no ataque ao Iraque em 2003 e desgastou profundamente a imagem da Casa Branca.

 

Assim, o eixo da resistência mundial ao projeto de poder global anglo-saxão, liderado pela Rússia e a China, ainda que involuntariamente, ganhou um forte impulso em 2015. E tudo indica que este avanço continuará 2016 em decorrência das deficiências destas duas grandes potências asiáticas. O atual grupo dominante na Rússia, liderado pelo presidente Vladimir Putin, é ainda oriundo da Era Yeltsin e está atrelado, por meio de negócios e ideologias, ao Ocidente e Israel. O que certamente só aumentará a hostilidade à ação dos russos no mundo árabe.

 

No que se refere à China, uma grande parte de seus engenheiros, administradores e intelectuais é formada nos EUA, ao contrário do período maoísta, quando sua elite dirigente havia sido formada na antiga URSS.

 

Portanto, as prospectivas para 2016 não são as mais positivas. Tudo indica que a destruição da Síria prosseguirá e aprofundará. O acordo de paz (sic) já votado no Conselho de Segurança da ONU no final de dezembro de 2015 prevê eleições na Síria no segundo semestre de 2016, sem levar em consideração a questão dos refugiados e o fato de que grande parte do país não é controlada pelo governo central.

 

O discurso de eleições livres e democráticas mal escamoteia a ingerência dos EUA, por meio de suas agências de propaganda, tais como organizações não-governamentais e dos Direitos Humanos e da Democracia, no processo eleitoral. Este discurso omite as eleições presidenciais na Síria em 2014, que deram vitória a Bashar al-Assad. Houve quem acusasse que elas foram fraudulentas, como se existissem eleições “limpas” no Ocidente.

 

O fato de a Rússia ter aceito esta imposição ocidental de eleições para um governo de transição na Síria é mais um sinal da limitação das ações de Moscou e de Pequim na arena internacional, que buscam não confrontarem os EUA. Por este motivo, ex-secretário do Tesouro dos EUA do governo Reagan, Paul Craig Roberts, já afirmou que o respeito às leis internacionais e a moderação por parte da China e da Rússia só alimentam o expansionismo e o extremismo belicista dos EUA.

 

Como todo projeto de libertação nacional do domínio anglo-saxão, em qualquer parte do globo, depende dos apoios russo e chinês para ser bem-sucedido, as forças de resistência ao redor do mundo, armadas ou não, ficam comprometidas e constrangidas. Não nos surpreende as rendições da Eritreia, do Sudão, Mianmar e do Irã neste cenário de aparente aproximação e moderação entre Rússia e EUA na Síria.

 

Desta forma, como o Brasil jamais esboçou qualquer reação mínima a este projeto anglo-saxão desde o golpe promovido pelos EUA em 1964, a desestabilização do governo liberal do Partido dos Trabalhadores tornará o país importante polo de reação às resistências bolivarianas, numa coalizão formada pela Argentina de Macri, o Paraguai, o Chile e a Colômbia. Isto levará, no médio e longo prazos, ao aprofundamento do Liberalismo na região e a disseminação de narco-Estados-policiais pelo esgarçamento do tecido social e à destruição dos sistemas públicos de saúde e de ensino como consequências das políticas liberais.

 

Assim, podemos afirmar que há uma grande chance de 2016 ser um ano muito feliz para Barack Obama. Seu legado para o próximo presidente dos EUA será o mais positivo possível, pois ele criou condições concretas para a destruição da Rússia e da China e, claro, por isto mesmo, de grande parte da Humanidade.

 

 

Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana pela USP.

O ano de 2015 foi marcado pelo contraste entre o despotismo imperial-liberal-totalitário dos EUA sobre o mundo e a cada vez mais evidente limitação do poder russo. No ano que está terminando, comprovou-se mais uma vez que não há linhas vermelhas ao poder global estadunidense.

Ramez Philippe Maalouf

O ano de 2015 foi marcado pelo contraste entre o despotismo imperial-liberal-totalitário dos EUA sobre o mundo e a cada vez mais evidente limitação do poder russo. No ano que está terminando, comprovou-se mais uma vez que não há linhas vermelhas ao poder global estadunidense. Este poder, como já foi dito por inúmeros especialistas em Relações Internacionais, não se sustenta exclusivamente pelas armas e finanças, complementado pela capacidade de impor narrativas por meio da máquina de propaganda de guerra que é a mídia ocidental, da qual a brasileira é vassala.

Nem mesmo o esporte escapou da ação totalitária arbitrária e despótica da autoproclamada “nação indispensável”. O ataque ianque à Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) foi aclamado até mesmo entre as hostes ditas progressistas, em maio de 2015. A narrativa construída pela máquina de propaganda da Casa Branca de que estaria combatendo a endêmica corrupção naquela federação esportiva foi facilmente aceita, como se os EUA fossem portadores impolutos da verdade e da Justiça mundial. Mesmo escancaradas as relações, no mínimo, “heterodoxas” entre os dirigentes esportivos regionais, governos, empresas e os diretores daquela instituição esportiva internacional, ainda assim não seriam justificativas para a aceitação de um ataque ianque em nome do combate à corrupção.

Até porque se a questão é o combate à corrupção, o FBI, a polícia política dos EUA, teria de prender dirigentes como seu próprio diretor, o ex-vice-presidente sênior da Lockheed, James Comey, empresa do complexo industrial-militar envolvida em inúmeros casos de corrupção nos anos 1970, certamente um hábito que não deve ser fácil de abandonar. Ainda persistindo na crença na narrativa da “missão de combater a corrupção”, o FBI seria obrigado a prender todos os políticos em Washington D. C., a começar pelo próprio presidente da República, cargo que para ser conquistado obriga seus candidatos a arrecadarem mais de US$ 300 milhões, “cifra de corte” que só cresce a cada pleito eleitoral.

Grande parte da esquerda aceitou a versão do governo de Barack Obama de ser necessário dar “um cartão vermelho” para as atividades escusas dentro da FIFA, esquecendo-se do fato muito elementar de que o cargo de presidente dos EUA tem, entre outras funções policialescas, a incumbência de exterminar e saquear não apenas pessoas, mas nações inteiras ao redor do mundo.

É preciso lembrar que o golpe contra a federação futebolística ocorreu como parte da guerra que os ianques travam contra a Rússia, eleita sede da Copa do Mundo de Futebol de 2018, e contra os palestinos, convidados a integrarem a FIFA como membros plenos. Como objetivos secundários, foi também mais um golpe contra a suposta neutralidade da Suíça, impondo de facto sua suserania sobre os helvéticos, processo iniciado com a intervenção nos bancos suíços sob o pretexto de recuperar os fundos nazistas ali depositados na II Guerra Mundial e indenizar as vítimas judias do Holocausto.

Outro objetivo não declarado foi o de garantir o controle ianque sobre o futebol, uma atividade esportiva muito rentável com perspectivas de crescimento tanto de praticantes quanto de público. A FIFA era uma das raras federações esportivas internacionais que não estava sob o domínio da “nação excepcional”.

O ataque à FIFA foi um dos motivos pelo ano de 2015 ter consolidado a percepção, para os mais críticos, de que o governo (ditatorial ao estilo romano) Barack Obama, laureado em 2009 com o Prêmio Nobel da Paz, é um dos mais extremistas da história dos EUA, como se fosse possível superar o extremismo dos governos Reagan, George H. W. Bush, Clinton e W. Bush.

Na realidade, os EUA são uma nação forjada no extremismo, na defesa do genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Portanto, não deve surpreender o patrocínio ianque, com armas e dinheiro, a governos nazistas no leste europeu (Croácia, Bósnia-Herzegovina e o que resta da Ucrânia), de narco-Estados (Colômbia, México, Kosovo), de governos exclusivistas étnicos e religiosos (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Israel, Mianmar, Kosovo, Albânia, o “Curdistão” iraquiano).

Redesenhar fronteiras

E, por este mesmo motivo, não podemos nos surpreender com a continuidade das guerras contra governos que não aceitam o exclusivismo como suporte ideológico do Estado, como são os casos do Ba’ath na Síria, ou os bolivarianos na Venezuela. Desde o dia 9 de março, Obama declarou a Venezuela como “uma ameaça à segurança nacional dos EUA”, uma declaração de guerra via sanções econômicas e mercenários colombianos, que atravessam a fronteira colombiano-venezuelana para desestabilizar a república bolivariana.

A sanha golpista do atual presidente ianque, iniciada com a derrubada do presidente hondurenho Manuel Zelaya, em 2009, ganhou ímpeto na América Latina, algo poucas vezes visto desde as décadas de 1960 a 1970. Além da Venezuela, tentativas de desestabilização golpista no Equador, Brasil e Bolívia. Na Argentina, levou à derrota nas eleições presidenciais do partido de Cristina Kirchner, provocando o retorno do liberalismo sem máscaras através da eleição do oposicionista Maurício Macri, que já estabeleceu Estado de Emergência. Não podemos deixar de afirmar que o estabelecimento de relações diplomáticas plenas entre Cuba e EUA é uma estratégia de desestabilização da América Latina, neutralizando um dos países mais empenhados no confronto ao Imperialismo.

A guerra na Síria é o foco, no entanto, da principal crise mundial que marca a década de 2010. Em 2015, a destruição deste país árabe que foi, ao lado do Iraque, o principal polo transmissor do nacionalismo árabe no século passado, é reduzida pela mídia ocidental como uma “crise”. A Síria tem hoje mais de 12 milhões de refugiados, dos quais cerca de 7 milhões permanecem dentro do país arrasado e outros 5 milhões se refugiaram majoritariamente em países vizinhos (cerca de 2,2 milhões na Turquia, 1,2 milhão no Líbano, 1,4 milhão na Jordânia e outros 250 mil no Iraque).

Estes refugiados dão a dimensão da catástrofe humanitária do processo de implosão do país, pois as cifras representam cerca de 50% da população da Síria. As tropas governamentais que estavam vencendo a invasão terrorista promovida pelos EUA e vassalos regionais (especialmente Turquia, Israel e Arábia Saudita) entre 2012 e 2014, tiveram seus avanços neutralizados com o avanço do falso “Estado Islâmico” (ISIS/ISIL/EIIL/EIIS/DAESH) em 2014, que em meados de 2015 conquistou a cidade histórica de Palmira, na região central do país árabe.

O ISIS é, ao mesmo tempo, um grupo de mercenários e um esquadrão da morte com pretensões de criar um “Estado” entre a Síria e o Iraque, a fim de borrar as fronteiras arbitrárias impostas pelos impérios russo, inglês e francês no início do século 20, nos acordos de Sykes-Picot-Sazanov. Neste sentido, seu intento geoestratégico se soma aos esforços neoconservadores dos EUA e de Israel de “redesenhar” o mapa do Oriente Médio (OM), expresso pelo governo George W. Bush na década de 2000, quando ele falou da necessidade de se formar o Grande Oriente Médio (GOM) e quando a então secretária de Estado ianque, Condolezza Rice, congratulou o ataque israelense ao Líbano, que assassinou mais de 1200 árabes, com a frase “são as dores de parto do Novo Oriente Médio (NOM)”.

Como visto, o ISIS é um dos rebentos do NOM/GOM a ser “construído” por meio da implosão dos Estados locais, como são os casos da Palestina, Líbano, Iraque e agora a Síria. A destruição de mais um país na área core do Oriente Médio garante aos EUA a implosão de toda a região e cria uma onda de choque que certamente atingirá e desestruturará as fronteiras da Federação Russa, da República Popular da China e da Índia. Isto abriria caminho para a conquista total do espaço euroasiático, garantindo à Casa Branca sua supremacia sobre toda a humanidade, realizando o projeto do “Século (21) americano”.

A destruição do OM pelo Ocidente ocorre pelo fomento das forças mais obscurantistas desde o século 19, início do imperialismo europeu, quando testemunhamos a aliança entre a Inglaterra com o clã wahabita-saudita em 1811, com objetivo de impedir os otomanos de controlarem o Golfo de Áden. Esta aliança não foi meramente tática. Na metade do 18, os wahabitas-sauditas formaram um emirado na área central da Península Arábica (Nejd), cujo processo expansionista prosseguiu nos séculos seguintes. Um século e meio mais tarde, os britânicos apoiariam mais uma vez, com armas e dinheiro, o expansionismo do emirado wahabita-saudita, a ponto de expulsar os xerifes (guardiões) de Meca e Medina, santas do islã, o clã dos Hachemita.

Estas cidades se localizam na região litorânea sul da Península Arábica, o Hedjaz, com uma cultura adversa à da zona central, o Nejd. Com a expulsão dos Hachemitas, patrocinada pelos ingleses, os wahabitas-sauditas formaram o reino da Arábia Saudita, unificando o Hedjaz com o Nejd. Nos estertores da II Guerra Mundial, os EUA forjaram uma aliança com os sauditas, consolidando a marginalização dos Hachemitas e a subordinação do Hedjaz ao Nejd. Desta forma, a Casa Branca deu continuidade à política britânica na Península Arábica. Isto demonstra que a questão central desta aliança não foi meramente o petróleo; decorre de motivações mais profundas.

Os Hachemitas são muçulmanos sunitas e eram um clã apoiado pelo Império Otomano, enquanto os wahabitas-sauditas são seguidores de uma seita exclusivista, extremista e herética, originários de uma região marginal da Península Arábica, do mundo árabe e do OM, o Nejd. Esta região marginal esteve por milênios longe do contato mais direto com os grandes impérios médio-orientais, asiáticos e euroasiáticos que dominaram o OM. Jamais foi conquistada pelo fato de ser predominantemente desértica e contar com poucos oásis. Somente no século 18, com o surgimento da seita wahabita, o clã saudita aderiu à nova fé, selando a aliança com o fundador da heresia, Abdel Wahhab, através do casamento com a filha dele.

Este pregador defendia um monoteísmo obscurantista que foi rechaçado pelos muçulmanos sunitas naquele momento. Os fanatismo e exclusivismo dos wahabitas-sauditas causou profunda repulsa em todo o mundo muçulmano quando destruíram a tumba do profeta Mohammed e atacaram as cidades sagradas do xiismo de Najaf e Karbala, durante o processo de expansão, no início do século 19. Imediatamente, os otomanos enviaram expedições para contra-atacar os wahabitas-sauditas, vitoriosas momentaneamente.

Desta forma, a aliança dos EUA com os wahabitas-sauditas, em 1945, não pode deixar de ser vista como uma maneira de os ianques controlarem a região através do extremismo religioso em detrimento do nascente nacionalismo árabe e de um ataque às tradições de convivência, coexistência e sincretismo do Islã tradicional. É preciso ressaltar que o wahabismo não prega o retorno à tradição islâmica, que é o pluralismo, mas, sim, a “regressão” do Islã. E esta longa aliança anglo-saxã-saudita, iniciada pelos ingleses e continuada pelos ianques, foi forjada em decorrência, sobretudo, das afinidades e paralelos entre as duas culturas, especialmente entre as elites wasp e saudita, quais sejam: o culto às armas, o puritanismo religioso, culto às mitologias da liberdade dos cowboys e dos beduínos, individualismo, apreço pelos negócios, segregacionismo e exclusivismo étnico e religioso; culto ao luxo, consumismo e hedonismo pervertido. Tais foram e são os elementos que unem os EUA e a Inglaterra ao reino saudita e à seita herética do wahabismo.

Com este apoio anglo-saxão, os sauditas disseminaram seu extremismo religioso para os demais protetorados britânicos e deram origem às monarquias exclusivistas e segregacionistas do Bahrein, Kuwait, Emirados Árabes Unidos (EAU) e o Catar. Disseminação favorecida pela geografia por estes países serem extensões do deserto saudita. As barreiras montanhosas que separam os sauditas emirados do Omã e do Iêmen refrearam esta disseminação, fez com que estas duas civilizações árabes mantivessem suas culturas livres da influência wahabita e pelo menos diminuíssem sua pressão.

Este exclusivismo wahabita-saudita, fomentado pelos EUA e Inglaterra, ganhou um forte aliado com a fundação de Israel, a destruição da Palestina em 1948 e a vitória do exclusivismo étnico-religioso judaico-sionista. Assim sendo, a aliança entre Israel, Arábia Saudita e EUA/Inglaterra criaram uma espécie de triângulo racista, cujo impacto se faz sentir nos dias de hoje, através da destruição da Líbia, do Iraque, da Somália, do Iêmen e da Síria, que eram sociedades marcadas pelo pluralismo étnico-religioso. Estes Estados raciais, sectários, segregacionistas e racistas, patrocinados pelo poder anglo-saxão, são modelos para se forjar novas estruturas estatais na Ásia, na África e no Leste Europeu, sobretudo como meios para cercar, desestabilizar e implodir a Rússia e a China.

A Síria tem servido, portanto, um campo de batalha para estas forças sectárias exclusivistas pró-ocidentais, que têm comprometido a soberania conquistada pelo processo de libertação nacional iniciado em 1955. No presente momento, as perspectivas para a resistência liderada por Bashar al-Assad não são das mais promissoras. O governo de Damasco controla menos da metade do território sírio e mais da metade da população está deslocada de seus lugares de origem. As forças terroristas são também separatistas, como os curdos kurmanjis do Rojave, o ISIS, a al-Qaeda (Frente al-Nusra) e o Exército Livre da Síria (ELS), que recebem apoio militar e financeiro direta ou indiretamente dos EUA. A Rússia arrisca-se numa estratégia controversa de apoiar grupos terroristas para combater os terroristas do ISIS. Apoia até mesmo o separatismo curdo kurmanji, no nordeste sírio.

O enfraquecimento russo

Por este motivo, a entrada da Rússia na Síria para atacar o ISIS, com a permissão dos EUA, não pode deixar ilusões sobre a limitada capacidade militar do país euroasiático frente ao projeto racista anglo-saxão. Ele conseguiu barrar o avanço do terrorismo no país árabe, mas não foi o suficiente para dissuadir a ação da Casa Branca. O veto russo ao ataque ianque à Síria em agosto de 2013 foi neutralizado pelo contra-ataque dos EUA na Ucrânia, o que certamente foi um elemento importante para Teerã continuar as negociações de rendição com Washington D.C. Este acordo foi finalmente selado em agosto de 2015, garantindo aos EUA e seus vassalos as condições legais para destruir o Irã, algo que não ocorreu no ataque ao Iraque em 2003 e desgastou profundamente a imagem da Casa Branca.

Assim, o eixo da resistência mundial ao projeto de poder global anglo-saxão, liderado pela Rússia e a China, ainda que involuntariamente, ganhou um forte impulso em 2015. E tudo indica que este avanço continuará 2016 em decorrência das deficiências destas duas grandes potências asiáticas. O atual grupo dominante na Rússia, liderado pelo presidente Vladimir Putin, é ainda oriundo da Era Yeltsin e está atrelado, por meio de negócios e ideologias, ao Ocidente e Israel. O que certamente só aumentará a hostilidade à ação dos russos no mundo árabe.

No que se refere à China, uma grande parte de seus engenheiros, administradores e intelectuais é formada nos EUA, ao contrário do período maoísta, quando sua elite dirigente havia sido formada na antiga URSS.

Portanto, as prospectivas para 2016 não são as mais positivas. Tudo indica que a destruição da Síria prosseguirá e aprofundará. O acordo de paz (sic) já votado no Conselho de Segurança da ONU no final de dezembro de 2015 prevê eleições na Síria no segundo semestre de 2016, sem levar em consideração a questão dos refugiados e o fato de que grande parte do país não é controlada pelo governo central.

O discurso de eleições livres e democráticas mal escamoteia a ingerência dos EUA, por meio de suas agências de propaganda, tais como organizações não-governamentais e dos Direitos Humanos e da Democracia, no processo eleitoral. Este discurso omite as eleições presidenciais na Síria em 2014, que deram vitória a Bashar al-Assad. Houve quem acusasse que elas foram fraudulentas, como se existissem eleições “limpas” no Ocidente.

O fato de a Rússia ter aceito esta imposição ocidental de eleições para um governo de transição na Síria é mais um sinal da limitação das ações de Moscou e de Pequim na arena internacional, que buscam não confrontarem os EUA. Por este motivo, ex-secretário do Tesouro dos EUA do governo Reagan, Paul Craig Roberts, já afirmou que o respeito às leis internacionais e a moderação por parte da China e da Rússia só alimentam o expansionismo e o extremismo belicista dos EUA.

Como todo projeto de libertação nacional do domínio anglo-saxão, em qualquer parte do globo, depende dos apoios russo e chinês para ser bem-sucedido, as forças de resistência ao redor do mundo, armadas ou não, ficam comprometidas e constrangidas. Não nos surpreende as rendições da Eritreia, do Sudão, Mianmar e do Irã neste cenário de aparente aproximação e moderação entre Rússia e EUA na Síria.

Desta forma, como o Brasil jamais esboçou qualquer reação mínima a este projeto anglo-saxão desde o golpe promovido pelos EUA em 1964, a desestabilização do governo liberal do Partido dos Trabalhadores tornará o país importante polo de reação às resistências bolivarianas, numa coalizão formada pela Argentina de Macri, o Paraguai, o Chile e a Colômbia. Isto levará, no médio e longo prazos, ao aprofundamento do Liberalismo na região e a disseminação de narco-Estados-policiais pelo esgarçamento do tecido social e à destruição dos sistemas públicos de saúde e de ensino como consequências das políticas liberais.

Assim, podemos afirmar que há uma grande chance de 2016 ser um ano muito feliz para Barack Obama. Seu legado para o próximo presidente dos EUA será o mais positivo possível, pois ele criou condições concretas para a destruição da Rússia e da China e, claro, por isto mesmo, de grande parte da Humanidade.

Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana pela USP.

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