Correio da Cidadania

América Latina: entre balas, cárceres e drogas

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Existe um costume ao fazer uma análise de conjuntura em simplesmente ligar dispositivos que são ‘visíveis’ e vitais para uma mudança de curso do cotidiano, sejam eles os partidos, o executivo, o judiciário, as corporações multinacionais, os movimentos sociais, os sindicatos, as comunidades indígenas ou as empresas extrativistas. Mas o que acontece quando novos (e nem tão novos assim) personagens entram em cena e se tornam agentes fundamentais de levar em consideração ao fazermos um estudo dessa magnitude? O tráfico de drogas mais globalizado deixa um rastro de violência na América Latina e é um fio condutor para entender cada vez mais a nossa realidade e como a região está cada vez mais ligada a uma economia ilegal do narcotráfico.

O consumo de fentanil e os cartéis mexicanos

É difícil mensurar quando o fentanil começa a chegar às ruas norte-americanas, porém, a droga começa a se espalhar rapidamente pelo território e com isso deixa o seu rastro de destruição. A glamourosa Los Angeles, que foi a capital mundial do cinema durante o mês de março com a entrega do Oscar, enfrenta, longe dos holofotes dos estúdios, a epidemia dos opioides. “Skid Row”, apelidada de cracolândia americana pelos jornais brasileiros, possui 50 quarteirões e 13 mil pessoas em situação de rua que improvisam as suas residências com lonas e barracas. O espaço é disputado entre ONGs, gangues e pessoas viciadas em drogas. No local, o uso do fentanil e outras drogas é feito a qualquer hora e por qualquer tipo de pessoa.

Já na Filadélfia, overdoses são vistas a todo momento. Autoridades locais de saúde dizem que o número de crises fatais aumentou de 15 em 2015, para 434 em 2021, o que reflete o tamanho do problema. Nas ruas do bairro de Kensington, o mercado de drogas flui a céu aberto enquanto usuários se dividem na compra e no consumo.

O fentanil é uma droga sintética cujo uso tem serventia na medicina para um procedimento de tratamento analgésico de curta duração, ou seja, usado em casos de dor e anestesia severas. Em termos comparativos, a substância tem 100 vezes a potência da morfina. O fentanil tem variantes mais baratas, não menos perigosas, como o tranq, que possui outras misturas em sua composição.

Para identificar como essa droga chega aos Estados Unidos, é preciso ir ao sul da fronteira. No México, o fentanil é tratado como a droga do momento por alguns cartéis. Diferente da cocaína vinda dos países andinos, o fentanil não necessariamente precisa de um cultivo em um lugar específico, o que já economiza no transporte, uma vez que a droga não deve transitar por grandes distâncias. Um outro ponto que pode chamar atenção é justamente o seu manejo. A cocaína exige um espaço agricultável, um local para que possam funcionar os laboratórios e, na hora do transporte, uma série de acordos financeiros que precisam ser feitos com terceiros até chegar ao destino final.

No caso do fentanil, uma das rotas suspeitas é justamente a relação dos cartéis com negociantes químicos chineses. Como porta de entrada para o produto aos Estados Unidos, esses comerciantes fazem negócios com as facções mexicanas que tratam de fazer a sua distribuição ao norte da fronteira. Em outra hipótese, traficantes mexicanos começam a produzir a droga em seu território e, como forma de deixá-la menos letal, existe um mercado laboratorial em Mexicali e Tijuana, na fronteira com os Estados Unidos, onde novas mortes são contabilizadas.

Os efeitos colaterais do fentanil são sentidos na América Central

Como dito lá no início do texto, o mercado ilegal na América acompanha o compasso da globalização e, por isso, é totalmente conectado. No caso da cocaína, a plantação é feita em um país, a transformação da folha para pasta base em um outro, o transporte é realizado por outros organismos de outra nacionalidade e o destino final em grandes quantidades nem sempre está localizado nos países cujas atividades anteriores foram descritas. Isso ocorre porque o mercado de drogas é uma atividade capitalista ilegal. Perceba que o adjetivo (ilegal) não pode alterar o substantivo (mercadoria).

Com a entrada do fentanil no mercado estadunidense, o preço da folha de coca despencou 50% na Colômbia, cuja produção se destinava aos Estados Unidos. Essa medida envolve outras nações no xadrez político latino-americano. A falta de compradores alegada pelos colombianos significa que menos droga passa por rotas antes consideradas fundamentais para a chegada do pó aos Estados Unidos. Em um contraponto, a Colômbia atingiu novo recorde de produção de cocaína em 2022. Mas afinal, para onde vai essa cocaína?

Para dar dois passos para frente é necessário, antes, regressar. Diretamente impactados por essa política estão alguns territórios da América Central. Guatemala, Honduras e El Salvador convivem com a delinquência das pandillas. Os moradores literalmente vivem entre os confrontos entre os próprios pandilleros, mas também da polícia com as facções. Os faccionados utilizam a prática de extorsão de moradores e comerciantes dos bairros que as mesmas controlam como forma de renda e caixa das maras. Outro modo de angariar fundos é por meio do pequeno comércio doméstico de drogas.

Servindo como rota de passagem aos Estados Unidos, a aliança de gangues locais com cartéis mexicanos e a utilização dos respectivos territórios como rota de passagem da cocaína para os Estados Unidos também são uma forma de levantar o caixa dos grupos. Aliança essa que funciona e, como resultado, acarreta em problemas às populações locais. Na corrida por dominar territórios, urbanos ou não, em Honduras a rota do narcotráfico virou uma coisa incontornável para os povos indígenas, por exemplo. Além de lutar contra empresas extrativistas, megaprojetos turísticos, as populações lenca e garífuna também são alvos do assédio de narcotraficantes que desejam controlar esses locais.

Em 2022, a sociedade hondurenha conheceu o quanto a sua política e economia podem estar ligadas ao narcotráfico. O ex-presidente do país, Juan Orlando Hernandez (JOH) foi preso por ter ligações com a pandilla Los Cachirros, por sua vez responsável pelo envio de mais de 150 toneladas de cocaína aos Estados Unidos.

Se as pandillas pareciam nadar de braçadas dentro de seus países, a redução do fluxo de caixa das organizações pode ter sido um baque. Se por um lado a falta de entrada de capital alterou a influência monetária dos faccionados, o remédio contra o veneno atende pela extrema-direita, mais especificamente em Nayib Bukele, presidente salvadorenho. O golpe sentido pelas facções se traduz no avanço de políticas de encarceramento em massa e empoderamento das polícias. Acontece que veio a público que o governo de El Salvador mantinha acordos com as pandillas do Barrio 18 e a Mara Salvatrucha (e outras menores também) para manutenção da baixa taxa de homicídios no país.

El Salvador vive momentos de tensão quando o acordo é rompido por parte da polícia, que prendeu integrantes das gangues. Em uma demonstração de força, os faccionados cometeram 62 homicídios em um período de 24 horas na semana do dia 27 de março de 2022. A contrarreação veio em forma de Estado de Exceção, decretado pelo presidente salvadorenho na mesma semana, seguida de uma caça aos pandilleros. Busca essa que rendeu a elaboração de um megapresídio, o Cecot (Centro de Confinamento Contra o Terrorismo), com capacidade para 40 mil detentos.

Dado tudo isso, uma pergunta pode ser feita: o que ruiu no acordo entre pandillas e os políticos salvadorenhos? Sabemos que vínculos desse tipo não são apenas verbais e envolvem toda uma rede de proteção. Podemos pensar no seguinte esquema: a comunidade extorquida sabe quem são os pandilleros, os comerciantes sabem onde esses indivíduos operam, menos os policiais saberiam desses indivíduos, e por isso não os prendiam?

É claro que isso não tem pé nem cabeça, e nos leva a crer que os pandilleros tinham acordos que eram regados a dinheiro. Poderíamos tentar investigar a origem deste dinheiro, se vem das extorsões, remessas ou das alianças com os cartéis mexicanos. As extorsões não pararam de acontecer, as migrações e remessas feitas por membros ou familiares que estão nos Estados Unidos continuam sendo enviadas, apenas a droga parou de passar pelo território. Isso poderia explicar que a ascensão da política de encarceramento em massa foi aplicada quando os acordos não tinham mais como ser honrados por parte dos pandilleros.

O resultado disso foi a projeção internacional de Nayib Bukele, que inclusive ganhou admiradores e políticos a fim de levar à frente o modelo salvadorenho de se fazer política. Em um desses exemplos, entendendo que o movimento bukelista puxa mais a corda da ideologia à direita, a medida tenta ser empreendida também por Xiomara Castro, presidenta hondurenha de centro-esquerda, mas ainda sem sucesso.

No outro país do triângulo norte, na Guatemala, candidatos já acenaram positivamente para a linha bukelista. Foi o caso de Sandra Torres, que concorreu no último pleito a presidente, e que em uma de suas promessas de campanha política é a construção de uma megaprisão.

Entre a espada e a parede, uma pergunta ronda não só a América Central, mas o continente como um todo: existe um modo de se pautar uma segurança pública à esquerda ou esse seria o carro-chefe de uma ascensão de uma extrema direita que resolve o problema da violência com um banho de sangue e construções de megapresídios? Nayib Bukele é popular, não sem motivos ele venceu as últimas eleições para presidente com folga: 83% dos votos a seu favor.

Nayib não enfrenta resistências e a sua popularidade se explica em uma equação simples: onde vemos esquerda ou direita, as pessoas que estão fincadas no chão da materialidade e observam que a vida delas está melhor. Elas conseguem transitar pelos bairros tranquilamente, coisa que seria impossível quando as pandillas dominavam os territórios. A forma como foi conduzido o trunfo da política bukelista pode ser questionável do ponto de vista de direitos humanos, já que acarretou em prisões de inocentes e desaparecimentos. No entanto, me parece que essas questões passam batidas em um país como El Salvador, em que seus trabalhadores possuem rifles como ferramenta de trabalho e as feridas dos anos de guerra civil (1980-1992) estão em cicatrização.

O que o futuro reserva para a América Central? Uma massificação da política extremada, ou, a partir da vitória de Bernardo Arévalo, atual presidente da Guatemala e filho do ex-presidente Juan José Arévalo Bermejo, líder da revolução guatemalteca da década de 1950, há uma alternativa?

Territórios em disputa

Se a epidemia de fentanil e opiáceos nos Estados Unidos pode estar ligada com a economia da América Central, como isso poderia impactar a parte sul do mapa? Para traçar esse panorama, é importante notar um balanço: se na América Central o enfrentamento às facções está sendo pautado, colocado em vigor e vitorioso como política, é possível que esses confrontos sejam replicados e vencedores na América do Sul? Os últimos acontecimentos mostram que os líderes sul-americanos devem ter um ponto de atenção.

Se o fentanil e suas variantes dividem o mercado norte-americano das drogas, para onde poderia ir parte da droga? A resposta pode estar na América do Sul, Europa e outros destinos. A decisão econômica de adotar o fentanil como produto a ser exportado aos estadunidenses mexe com toda uma geopolítica da droga. A preferência pelas rotas ao sul ao invés do norte, destinos incomuns e que não eram palcos de violência narcotraficante começam a estampar as páginas policiais.

São os casos de Equador e Uruguai. Um importante questionamento: a escalada da violência nesses países se deve ao comércio interno ou em outro caso, essas localidades também servem de passagem para outros destinos? O caso equatoriano estampou as páginas policiais nos últimos meses. Antes disso, o Equador viu a taxa de homicídios aumentar. Moradores das grandes cidades, como Guayaquil, vivem uma sensação de insegurança.

A violência chegou ao seu auge quando, em 2023, o candidato à presidência, Fernando Villavicencio, foi assassinado com três tiros na cabeça enquanto saía de um compromisso da campanha eleitoral. Enquanto o país se recuperava do luto, Daniel Noboa era eleito presidente do Equador. Em meio a sua primeira crise no governo, Noboa enfrentou altas taxas de criminalidade e, em sequência, decretou um Estado de Exceção, no dia 9 de janeiro de 2024. O discurso de “guerra contra as facções” ganha mais força após o episódio em que homens encapuzados invadem um programa ao vivo. 

Os territórios estão em disputa no Equador, e não restam organizações para tentar controlá-los, o que ocasionalmente implica no aumento da mortalidade. Assim como no Brasil, o Equador teve um ‘Carandiru’ para chamar de seu. No dia 28 de setembro de 2021, conflitos na penitenciária de Guayaquil resultaram na morte de mais de 116 pessoas e 80 feridos. As mortes foram causadas por conflitos entre facções rivais. Nas últimas semanas, mais um capítulo dessa história foi escrito. Adolfo Macias, o Fito, um dos líderes da facção ‘Los Choneros’, fugiu da prisão.

A diversificação de rotas faz com que cidades como Guayaquil, que tem um importante porto marítimo, sejam visadas e disputadas por grupos rivais. Condição essa que também possui a cidade de Rosário, na Argentina. Uma rota alternativa ao porto de Buenos Aires, a cidade de Messi aos poucos se torna conhecida não só por ser o lar do craque argentino, mas também pela violência. Em Santa Fé, os grupos locais medem forças com as autoridades governistas, Maximiliano Pullaro, governador da província, e Patricia Bullrich, ministra da Segurança. No final de semana de 10 de março de 2024, Rosário viu mais um capítulo de violência, quando assassinatos foram cometidos contra inocentes, o que deixava um recado claro aos governantes.

Se no Equador e na Argentina a cocaína deixa um rastro de sangue com a disputa de facções, no Brasil não seria diferente. A milhares de quilômetros de onde grupos do Sudeste têm a sua base, é no Norte do país que a violência deixa muitas vítimas mortais. Tanto o Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, quanto o Primeiro Comando da Capital, de São Paulo, observam a Amazônia como uma espécie de escoamento da droga e rotas menos policiadas, além de fazer fronteira com países produtores da cocaína.

No cinema, o impacto da chegada das grandes facções à Amazônia brasileira é mostrado no filme ‘Noites Alienígenas’. A produção em questão retrata de forma artística a situação no estado do Acre, o que não é muito diferente na cidade de Barcarena, perto de Belém, capital paraense. A cidade é de suma importância para o Comando Vermelho, já que o território possui um porto e tem saída para o Atlântico.

A logística dos grupos criminosos vai além. Na diversificação de produtos, facções já operam com a extração de ouro, casas de prostituição, pistas de pouso para transporte da droga e o controle do comércio ilegal perto de áreas do garimpo. No meio do fogo cruzado estão as comunidades indígenas, já que ora podemos enxergar como vítimas de grupos que as expulsam dos seus respectivos territórios, ora como colaboradores, já que as comunidades podem observar o garimpo como alternativa econômica

Quanto à Bahia, possui sei das dez cidades mais violentas do país. Encabeçando a lista está Jequié, a 370 km de Salvador. A cidade convive com disputas de facções e também com a letalidade policial, elementos que fazem subir o número de mortes na cidade.

Resgatando o comecinho do texto, o escrito não passa de uma hipótese, e como uma boa hipótese, ela precisa ser testada. Fato é que no xadrez político, as peças estão se movimentando e precisamos ficar atentos aos movimentos que virão a seguir.

Gabriel Rocha é jornalista e pesquisador vinculado ao Programa de Pós-gradução em Integração Latino-Americana (Prolam) da USP.

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