Correio da Cidadania

Biden tenta ser justo e fracassa

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Criança de 8 anos aguarda sua vez para receber comida em Rafah, no sul da Faixa de Gaza
Abed Zagout | Unicef

Do apoio irrestrito a Israel pelo atentado do Hamas, em 7 de outubro, as potências do Ocidente passaram a deplorar as inúmeras mortes de civis palestinos, sob os mísseis e bombas lançados diariamente sobre Gaza.

Indiferente a essa matança, Biden segue enviando com grande frequência munições para Israel não parar de devastar Gaza e seu povo. Além disso, pede ao Congresso mais US$ 14 bilhões em armamentos de última geração, que nada têm de armas defensivas, teoricamente necessárias à proteção dos israelenses contra seus inimigos na região, os quais, na verdade, são alvos dos constantes bombardeios e ameaças por obra das forças armadas de Israel.

A todos estes saborosos bilhões deve-se somar os 3,8 bilhões de dólares, estipêndio anual que os EUA pagam ao regime sionista.

Mas Biden fez mais: vetou três propostas de outros países na ONU, que previam um corredor humanitário, sem bombardeios, para dar alimentos, água e remédios aos civis palestinos.

O “muito, muito amigo Netanyahu” rejeitou essa ideia. Entende-se, quem quer eliminar o maior número possível de palestinos, não tem como aceitar medidas em sentido contrário.

Mas o chefão sionista fez de conta que até aprovaria. Queria mais. Declarou que qualquer proposta humanitária teria de mencionar obrigatoriamente o atentado terrorista do Hamas, além de usar palavras que não atingissem a sensibilidade israelense.

O exército de Israel matou cerca de 40 mil palestinos, 70% dos quais eram crianças e mulheres, sendo a maioria civil. Já os terroristas do Hamas liquidaram 1.200, a maior parte também civis. Quem sofreu um atentado pior?

O mundo está com a Palestina

Enquanto isso, o povo norte-americano (abstraindo quase todos os políticos) manifestava sua com clareza: 77% dos cidadãos democratas apelavam por um cessar fogo permanente, posição compartilhada por 69% dos independentes e 56% dos republicanos.

Quando as mortes palestinas já chegavam aos cinco dígitos, o povo dos EUA, Europa, Austrália e Canadá saiu às ruas em manifestações pedindo um cessar fogo e condenou Israel pela catástrofe humana que construía.

Nos EUA, foram 6.304 manifestações pró-palestinos a exigir o fim da ocupação israelense e um cessar fogo permanente, estatística do Crowd Counting Consortium. No Reino Unido, os protestos públicos se reproduziam, tendo um deles, em Londres, alcançado cerca de 500 mil manifestantes.

Por fim, a maioria dos dirigentes europeus elevou o tom e passou a apelar também por um cessar fogo, admitindo que Israel estava usando de força desproporcional e de forma indiscriminada transformava Gaza num monte de ruínas e pilhas de pedras, as quais até há pouco eram residências de famílias, escolas, hospitais, templos e mercados.

Biden demorou a também fazer o mesmo. Só que, dado seu relacionamento fraternal com Bibi, levou a ele pessoalmente seus reparos aos excessos na retaliação dos civis de Gaza, pelo crime que não cometeram.

Biden também se queixou das barreiras criadas por Israel para obstaculizar o fluxo de caminhões de suprimentos e da ameaça de ataque por terra à cidade de Rafah.
Israel vem aplicando toda a sorte de proibições para impedir a entrada de caminhões com víveres em Gaza. Os que são admitidos precisam atender a inúmeras e complexas exigências burocráticas que os deixam parados por horas, dias, semanas e até meses. Os inspetores rejeitam sempre os bens do chamado uso dual, que terroristas empregariam nos seus sinistros atentados.

Para dar uma ideia, tesourinhas de unhas e brinquedos infantis já foram vetados por se classificarem como objetos de uso dual (The Washington Post, 3/3/2024.)

Além de exigências ridículas como estas, os inspetores israelenses têm, segundo o Médicos Sem Fronteira, “negado a entrada de geradores de força, purificadores de água, painéis solares e outros equipamentos médicos”, nunca usados na fabricação de armas pelo Hamas, mas que seriam extremamente úteis para a povo de Gaza.

E horror: há vários casos de aviões israelenses alvejarem caminhões de víveres, destruir suas cargas, alvejar funcionários encarregados do transporte e até civis palestinos, inteiramente inocentes.

No mais grave desses incidentes, os militares de Israel atiraram contra uma multidão faminta que aguardava a distribuição de suprimentos, matando 150 palestinos e ferindo 760. Foi alegado que os soldados sentiram medo do povo enlouquecido, que, por sinal, não os atacava, sequer os ameaçava...

Ainda em 16 de março, militares de Israel abriram fogo no momento em que os víveres estavam sendo distribuídos na Rotatória Kuwait, na cidade de Gaza, matando 19 palestinos.

Não se sabe se, nestes e em outros casos semelhantes, qualquer soldado foi punido. Como resultado do bloqueio, somente entre 50 e 98 caminhões têm efetivamente chegado aos palestinos, quando 500 seriam necessários, para que houvesse a mínima satisfação das necessidades vitais da população.

Confissões genocidas

O bombardeio de Rafah é outro pomo de discórdia entre os estadistas dos EUA e de Israel.

A cidade de Rafah fica na fronteira com o Egito, sua população de 200 mil habitantes foi multiplicada com a adição de 1 milhão e duzentas mil pessoas que vieram de todo o estreito de Gaza, fugindo dos implacáveis bombardeios.

Netanyahu diz que os últimos milicianos do Hamas, formando 4 batalhões, estão em Rafah. Sua destruição é necessária, ruge Bibi, não importa que, junto com eles, morram muitos milhares de civis palestinos. Afinal, como diz o presidente Herzog e o chefe das forças armadas, Gallant: os palestinos animais humanos.

Como os moradores atuais da cidade estão concentrados num espaço reduzido, onde cada bomba ou míssil teria um efeito multiplicador, mata-se gente em massa. O ataque a Rafah seria algo tão desumano que Biden manifestou-se fortemente contrário, apelando publicamente a Netanyahu para que desista de seu sanguinolento intento.

“Você não pode ter mais outros 30 mil palestinos mortos como consequência de sua perseguição ao Hamas”, disse o presidente. Netanyahu respondeu com bazófias: ninguém manda em Israel, nós fazemos o que queremos, não aceitamos influências externas e por aí foi.

Mais adiante, em uma entrevista na amigável Fox News, o prócer sionista saiu da casinha, assegurando que o desacordo não é apenas entre ele e Biden, mas entre o presidente norte-americano e todo o povo de Israel”.

As conversas entre os dois têm sido difícil. O premiê não arreda um único passo de seu desígnio de trucidar todos os “terroristas do Hamas”. Quanto aos civis palestinos, Israel fazia o possível e o impossível para preservá-los do morticínio. Acredita quem quer.

Todas as ponderações de Biden eram rejeitadas, os especialistas em direitos humanos mentiam, não passavam de amigos do Hamas. Israel respeitava os direitos humanos e as leis internacionais. Os países europeus que criticavam os israelenses, o faziam para agradar um bando de estudantes turbulentos e falsos intelectuais, tendo em vista suas próximas eleições.

Biden costumava ser paciente para apelar à consciência de Bibi, que infelizmente não existe. Natural que ele saia sempre profundamente irritado com o premiê e desabafe para os auxiliares que o cercam. Vários destes, por sua vez, tem amigos na imprensa e acabam lhes revelando em off as expressões de baixo calão usadas por Biden. Os repórteres, é claro, não hesitam em publicar os desafogos do presidente.

Algumas dessas críticas privadas a Bibi saíram no Político: “bad fucking guy”, “ass hole” (deixo em inglês porque são palavras bem conhecidas).

Estas explosões internas presidenciais refletem o sentimento de culpa de Biden pelo apoio que ele dá às ações israelenses em Gaza, e seu cortejo de devastações, morticínios e consequências tenebrosas.

Entre o fim de fevereiro e o mês de março, novos fatos e estatísticas mostram claramente as chocantes dimensões da catástrofe de Gaza: 14 mil crianças já foram assassinadas pelos bombardeios israelenses com bombas guiadas e mísseis fornecidos por Biden.

Michael Fakhiri, relator especial da ONU em Direito à Alimentação, informou que: “a velocidade da desnutrição de crianças pequenas é terrível. Os bombardeios de pessoas mortas diretamente são brutais, mas a morte pela fome – e a desnutrição e retardamento do desenvolvimento das crianças é tortuoso e vil (The Guardian, 19/3/2024)”.

Conforme a UNICEF, 4,5% das crianças que vivem em abrigos ou centros de saúde no norte de Gaza estão sofrendo de “extrema desnutrição”, a forma mais mortal de má nutrição que expõe a criança a outras doenças.

Com Gaza sob cerco total por seis meses, o ministro da Saúde da Palestina disse que entre três crianças, uma está gravemente desnutrida e entre 10 mil estão morrendo de fome.

E, fato chocante: o correspondente de guerra do Middle East Eye viu crianças colhendo grama para comer, forçadas pela falta de qualquer alimento ou ajuda humanitária (Middle East Eye,19/3/2024).

As respeitadas organizações internacionais de direitos humanos, Oxfam e HRW, denunciam com documentos que Telavive “impôs punição coletiva na população palestina privando-a de bens indispensáveis a sua sobrevivência” e usou a inanição de civis como arma de guerra (The Libertarian Institute, 21/3/2024).

Impedindo a entrada de alimentos e água; destruindo armazéns e plantações; proibindo ou retardando por muito tempo a entrada de caminhões com víveres, Israel obriga os palestinos a passarem fome (starvation), para enfraquecê-los profundamente e assim destruir sua resistência a doenças, inclusive letais.

Esta má intenção de Telavive em relação a Gaza foi revelada por Gallant, ministro da Defesa, que, ainda em outubro publicou em vídeo: “estamos impondo um cerco total à Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem gás, nem tudo”.

Para o aguerrido cabo de guerra o motivo seria óbvio: “Estamos lutando contra animais humanos e os tratamos como tal”. Em fins de março, esta política apresentava consequências, de acordo com Volker Turk, Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos. Gaza poderia em breve comtemplar “mais do que 200 pessoas morrendo diariamente vítimas da fome (The Times of Israel, 19/3/2024).

Todos cansados de Israel

Joseph Borrell, o chefe de relações exteriores da União Europeia, afirmou: “Em Gaza, não estamos mais na beira da fome em massa. Nós estamos em um estado de fome em massa. Não é uma enchente, não é um terremoto. Trata-se totalmente obra dos homens... Israel está provocando a fome em massa”.

E a fome em massa está chegando. Diz a Organização de Alimentos e Agricultura da ONU que ela deve se espalhar pelo norte de Gaza entre março e maio. Não dá para imaginar os horrores causados por esta doença. Ela assolou a Irlanda no século passado, forçando a emigração de mais de um milhão de pessoas, principalmente para os para os EUA. Gaza pode sofrer uma fome do nível da irlandesa, caso não se faça nada para alimentar seu povo.

Claro, será também necessário que o regime sionista pare de bombardear alvos civis.
Talvez Biden tivesse, afinal, sentido a injustiça dos terríveis sofrimentos impostos ao povo de Gaza pelo regime sionista e resolvido que deveria agir em defesa dos direitos humanos universais, como prometeu nos primeiros tempos de seu governo.

E não como um reles caudatário de um governo que desrespeita as leis internacionais e agride os povos vizinhos costumeiramente.

Foi então que Biden surpreendeu o mundo: depois de vetar três propostas de cessar fogo na guerra de Gaza, apresentou ao Conselho de Segurança da ONU um texto que defendia a interrupção imediata das ações bélicas, além da libertação dos judeus sequestrados pelo Hamas.

Obteve 13 votos contra 3 contrários, mas a China e a Rússia vetaram. Vários defeitos foram indicados. Seria errado vincular o cessar fogo à libertação das vítimas do sequestro pois os bombardeios continuariam enquanto as negociações da liberdade dos reféns demorassem, eventualmente.

Depois do veto à proposta, os 10 estados não-membros do Conselho propuseram uma solução, aparentemente sem defeitos, que foi aprovada por todos. Menos os EUA, que se abstiveram.

Só o fato de o país não vetar já é uma demonstração de que tinham chegado a seu limite na tolerância, fato que os demais países saudaram com palmas.

Biden ficou feliz pois melhorava a imagem norte-americana, encardida por seu apoio incondicional a Israel e a cumplicidade nos crimes de guerra, praticados em Gaza.

Bibi viu a falta do veto estadunidense como um desafio, uma traição da parte de quem sempre protegera Israel. Imediatamente ordenou que uma delegação de alto nível a caminho de Washington para uma discussão sobre o ataque a Rafah voltasse para casa.

EUA voltam à sua programação normal

Parece que Biden arrependeu-se da sua decisão. Ficou inseguro. Como reagiriam os congressistas republicanos, os bilionários judeus americanos - doadores das campanhas do Partido Democrata, a Fox, os pastores fundamentalistas e a AIPAC, todos eles fãs de carteirinha de Israel?

Eram terríveis dúvidas que teriam assolado o sono presidencial, sob a forma de pesadelos malignos, onde Trump era eleito e Biden despejado da Casa Branca.
Enquanto ele sofria, muitos comentaristas saudavam a virada que se desenhava, ameaçando a prepotência de Bibi e seus vassalos.

Estavam enganados. Biden achou mais garantido prostrar-se diante de Israel, como costumava fazer, retomando o discutível hábito de mandar armamentos para matar civis palestinos, a mesma gente que há alguns dias o fazia censurar Bibi por tratá-la com desumanidade.

Por enquanto, já foi aprovado um lote de bombas, até de 2 toneladas, capazes de arrasar um quarteirão, abrindo uma cratera de dezenas de metros. Os militares raramente as usam em locais densamente povoados, pelas imensas perdas humanas que causa. O que causariam na hiperlotada Rafah?

E Biden não vai ficar nisso. OS EUA já estão preparando uma nova remessa, desta vez de bombas guiadas, no valor aproximado de US$ 1 bilhão. Além de planejarem uma transferência de caças F-35, os mais modernos e letais do mundo, que vão custar cerca de US$ 2,5 bilhões.

Em 2 de abril, a Associated Press anuncia que o rival de Trump acaba de dar seu ok para uma nova remessa de armamentos, que vão praticar um crime internacional dos mais vis: o assassínio de civis indefesos.

Serão mais 50 bilhões de armas das mais mortíferas, que inclui 50 caças F-15. Durante um mês esse tipo de negócio depende da aprovação do Congresso. Embora os progressistas do Partido Democrata pressionem para que os EUA defendam o respeito internacional aos direitos humanos, não se pode esperar muito dessa Câmara de Deputados, cuja maioria está comprometida com Israel.

Para Biden, urge saciar a sede de sangue palestino do governo Netanyahu. Até que ele tentou se comportar como um presidente dos EUA, do qual se espera submissão à justiça, não a Bibi e seus áulicos. Mas, em vez de assumir esta posição, preferiu ser cúmplice da catástrofe humana, engendrada pelos cérebros de Telavive.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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