Correio da Cidadania

Acordo Nuclear: com a estratégia do avestruz, Biden põe a paz em risco no Oriente Médio

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Foto:  Assinatura do Acordo Nuclear em 2015.  Iran Talks / Commons Wikimedia.

Em Doha, sob coordenação da União Europeia, começaram em 28 de junho as negociações entre americanos e iranianos sobre o Acordo Nuclear do Irã.

Assinado em 2015 pelo Irã e grandes potências, ele visa impedir que os iranianos produzam uma bomba atômica.

Em 2018, o presidente Trump retirou os EUA do acordo, reestabelecendo sanções contra a república islâmica e adicionando mais algumas, igualmente devastadoras.

Como resultado, a economia do Irã entrou em crise, chegando a cair 55% em maio-junho deste ano, em relação ao mesmo período de 2021 (JLYIran, 6/6/2022).

Embora, ensaiando sair da recessão (crescerá 3,7% em 2022, diz o World Bank), o Irã precisa livrar-se das sanções para poder sair do buraco e voltar a crescer, beneficiando o povo, sacrificado pelos altos preços, a falta de produtos necessários e o crescente desemprego.

Premido por essa realidade sinistra, o governo conservador de Raisi estaria agora se abrindo para concessões aos EUA, o que o força a enfrentar poderosos grupos de linha dura.

Parece que Raisi está mesmo determinado a seguir este caminho porque informa-se (anonimamente) que ele topou restringir a exigência iraniana de que os EUA retirassem a Guarda Revolucionária Islâmica (GRI) da sua lista de terroristas. Nas recentes negociações, o governo islâmico pediu que fossem canceladas somente as sanções contra a Khatam-al Anbiya Construction Headquarters, o braço econômico dos guardas islâmicos (Middle East Eye, 19/6/2022).

Nada feito.

O governo Biden foi irredutível. E também um tanto incoerente. Recentemente admitiu que colocar o GRI na lista dos terroristas seria apenas simbólico, pois, falando sério, isso não teria impacto real.

Em 2017, antes mesmo da eleição de Biden, Anthony, Blinken, Secretário de Estado dos EUA, publicara um editorial, dizendo-se contrário a listar os guardas islâmicos iranianos de maneira tão afrontosa como foi.

Para justificar este e outros vetos a reivindicações do Irã, Biden repetiu seu mantra: condições não relacionadas ao acordo nuclear são inaceitáveis. Talvez esqueceu de que sequer mencionara esse importante detalhe nas vezes que, durante a campanha eleitoral presidencial, jurava que faria os EUA voltar ao Acordo Nuclear com o Irã.

Sabe-se que as sanções de Trump foram uma armadilha para impedir, ou ao menos tumultuar, o provável retorno americano ao acordo, no caso de algum democrata o vencer nas eleições de 2018.

Fazia parte da campanha Trump de “máxima pressão” contra o Irã

O presidente Biden continua, de fato, empenhado em lhe dar continuidade, como na sua resposta aos negociadores iranianos, que pediam garantias de que os EUA jamais voltariam a abandonar o acordo nuclear.

Embora pareça bizarro, esse pedido tem suas razões de ser.

Caso um republicano viesse a ser eleito presidente, não vacilaria em emular Trump, deixando Teerã na mão, outra vez.

Como o próximo pleito presidencial acontecerá em 2024, portanto, daqui há dois anos e meio, que empresa investiria no Irã, arriscando-se a precisar fechar num prazo tão curto, devido a possíveis (ou prováveis) sanções?

Biden argumentou que não pode atender a Teerã porque seria impossível comprometer futuros presidentes (especialmente republicanos) com um acordo do qual não participaram.

Ele está correto, só que, assim como Trump deliberadamente sabotou uma eventual volta americana ao acordo de 2015, o presidente democrata também poderia tomar medidas para sabotar qualquer saída futura.

Alguns pontos ainda não estão claros pois as negociações foram secretas e os cidadãos que deram com a língua nos dentes não o fizeram de forma completa.
Mas, acredito que o fundamental foi revelado: Raisi parece estar muito mais a fim de restaurar o Acordo Nuclear do que Biden.

As razões destas posturas diferentes, basicamente, devem ser duas:

1- O Irã tem muito mais benefícios a conquistar numa volta dos EUA ao acordo nuclear, e a consequente revogação das sanções. A retirada das sanções permitiria ao país voltar a exportar em volumes substanciais, além de receber investimentos europeus na sua economia, saindo assim da crise que o assola, para voltar a crescer.

2- Biden tem muito menos interesse numa solução positiva do acordo. Para mim, não passariam dos seguintes: honrar seus compromissos eleitorais, fortalecer sua liderança internacional e assegurar a paz no Oriente Médio, ameaçada por uma possível guerra detonada por Israel para evitar que seu inimigo número 1 tenha condições de produzir uma bomba nuclear.

Já Raisi teria muito a ganhar. Apesar da oposição manifestada pela linha dura iraniana a concessões aos EUA, por ela invariavelmente rotulada de covardes, convém ao presidente do país conseguir que as negociações terminem bem, atendendo à maioria da população, ansiosa por esse desfecho, conforme o expresso nas mídias sociais.

É preciso se levar em conta que Biden enfrenta pressões mais poderosas da linha dura americana.

São contrários à volta dos EUA ao Acordo Nuclear quase todos os congressistas republicanos e uma boa porção de conservadores do Partido Democrata, para os quais o Irã é um inimigo capital da ordem terrestre, senão da planetária.

Certamente, os congressistas progressistas do Partido Democratas dos EUA vão ficar furiosos diante de mais uma vacilada de Biden, negando promessas de avanços na área internacional (muito caros a esse pessoal), que o presidente jurou de pés juntos realizar.

Biden sabe que essa ala esquerda do seu partido, por mais ressentida que se sentir, terá de continuar o apoiando, pois uma grande votação republicana no pleito parlamentar de novembro pinta como uma ameaça concreta à maioria democrata nas duas casas legislativas. As pesquisas mostram o presidente mal avaliado, o que fatalmente se refletiria nas escolhas dos eleitores no pleito parlamentar de novembro próximo.

Segundo a mais recente – da Reuters/Ipsos – apenas 38% dos americanos aprovavam o governo Biden, enquanto 58% o desaprovavam.

E a FiveThirtyEight praticamente repetiu esse placar: 38% x 57%.

A posição americana nas negociações tem, certamente, muito a ver com a posição de Israel.

Desde o longínquo abril, quando começaram as discussões sobre a volta dos EUA e do Irã às regras do Acordo Nuclear, o regime sionista sibilou que Teerã estaria trabalhando clandestinamente num programa nuclear militar, portanto, só um acordo tremendamente restritivo bloquearia essa malfeitoria. Não havendo tal acordo, Israel não iria ficar nas condenações verbais, agiria até militarmente para impedir os aiatolás de pôr as mãos na “arma do fim do mundo”.

O presidente Bennett, o ministro Lapid e diversos generais foram a Biden para reiterar que a volta dos EUA ao Acordo Nuclear seria vista como licença para o Irã produzir bombas atômicas para as lançar sobre Israel.

O regime sionista não toleraria de forma alguma tal perspectiva apocalíptica.

Em junho, Israel encenou uma demonstração de suas intenções bélicas, com dezenas de caças-bombardeios, simulando um ataque devastador contra as instalações nucleares iranianas(The Times of Israel, 25/6/2022).

Ninguém duvida que a pressão das autoridades israelenses possa contribuir fortemente para convencer Biden a frustrar as tão esperadas negociações de Doha.

O governo de Jerusalém conta ainda nos EUA com a ajuda de indivíduos e organizações que o apoiam incondicionalmente.

Com o perigo de derrota nas eleições de novembro, Biden e o establishment partidário não podem se arriscar a perder o respaldo deles.

Não estou me referindo aos cidadãos americanos de origem judaica.

É fato comprovado que a maioria deles, embora defendam Israel, o fazem de forma selecionada, rejeitando posições que violam leis internacionais e/ou direitos humanos.

Segundo pesquisa, 69% dos judeus americanos são favoráveis ao Acordo Nuclear com o Irã.

Eles costumam sufragar candidatos democratas. Não será por discordarem de Biden no caso dele manter os EUA fora do Acordo Nuclear que irão preferir os reacionários do Partido Republicano.

No entanto, as organizações americanas pró-Israel, a maioria da massa de evangélicos e alguns bilionários de direita, financiadores do Partido Democrata, já estão em campanha para influenciar Biden a conter a ousadia do apelo iraniano.

Não convém desagradá-los.

Bilhões de ‘motivos’ pesam a favor de uma eventual decisão contrária à finalização positiva das negociações da volta dos EUA ao Acordo Nuclear com o Irã.

E agora?

Os iranianos já estão enriquecendo urânio a 60%. Se continuar nesse pique, alcançarão até o fim do ano um enriquecimento de 90%, o necessário para a produção de uma bomba nuclear.

Em várias ocasiões, Israel declarou que impedirá os iranianos de realizar esse objetivo. Não irá esperar que o Irã chegue a ter urânio enriquecido a 90% para atacar seu grande inimigo.

Seria então inevitável uma guerra no Oriente Médio, justamente em outubro ou novembro, mês das eleições, levando os EUA a formar diretamente ao lado de Israel, seu grande aliado.

Esse fato poderia prejudicar ainda mais os eleitores de Biden e seu Partido Democrata, pois há muitos anos o povo americano tem se mostrado radicalmente contrário a arriscar a vida dos our boys em guerras externas.

A possibilidade de um Partido Republicano obter maioria nas duas casas do Congresso, com poder de barrar os projetos do governo democrata, tornando-o inócuo, deve estar protagonizando os pesadelos de Biden.

Aparentemente ele tenta resolver esse assustador problema fazendo de conta que ele não existe, ao adiar sine die uma negociação realmente séria da volta dos EUA ao Acordo Nuclear com o Irã.

Quando se sentem ameaçados os avestruzes costumam enfiar a cabeça na terra.

Não acho que essa estratégia seja conveniente ao presidente dos EUA. Nem para a paz.

 

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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