Correio da Cidadania

Guerra na Ucrânia: Golias versus Golias

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Foto: Manifestação contra a guerra em Madrid. 20 de março de 2022. Creditos: Nemo / Commons Wikimedia

A nossa grande mídia tem sido praticamente unanime em declarar a Guerra da Ucrânia um duelo entre Daví (a Ucrânia) e Golias (a Rússia).

Errado! Não existe nenhum Davi nesse combate.

Atrás dos corajosos ucranianos estão os EUA e seu coadjuvante, a OTAN, que têm fornecido incensantemente a Kiev vasta quantidade das mais avançadas armas, além de apoio logístico e cibernético. Sem falar no apoio político e na propaganda da imprensa internacional, que ajuda a fortalecer o apoio da opinião pública e enfatiza ao máximo a torpe decisão bélica de Putin.

Na verdade, as coisas são outras.

Biden lidera o mundo ocidental numa ofensiva econômica contra a Rússia, usando sanções devastadoras para vulnerar seriamente a economia russa, rebaixar o bem-estar do seu povo e isolar Putin no mundo. O objetivo expresso é forçar Putin a retirar-se da Ucrânia para fugir dessa situação calamitosa.

O objetivo oculto é transformar o feroz urso russo num manso chihuahua, que não morde nem uiva, muito menos se atreva a contestar a hegemonia dos EUA.

Tanto quanto a ficção da identificação com o episódio bíblico, as razões de Putin para lançar a invasão tem recebido interpretações fantasiosas.

Dizem veículos jornalísticos que o ataque comprova o enlouquecido desejo do estadista russo de recriar o antigo império russo, sob seu governo, na qualidade de um czar de territórios que iriam da Sibéria à Europa Oriental.

Se bem que seja inegável a onipotência psicológica de Putin, não há provas de que tudo está acontecendo devido a seus sonhos de grandeza.

Sob clara influência da máquina de propaganda de Tio San, vários analistas sustentam que a Guerra da Ucrânia é uma luta entre as democracias e as autocracias, pelo domínio mundial.

É exatamente a tese maniqueísta de Biden, que divide o planeta em bons e maus e é aceita por quem está completamente alheio à política internacional ou, embora tendo noções a respeito, não tem interesse ou capacidade de interpretá-las.

O líder americano expôs sua doutrina logo após sua posse.

Declarou ser vital a união dos países democratas para evitar que o bloco dos países autocratas impusesse suas brutais ideias ao mundo. Sendo a maior democracia do orbe, cumpriria aos EUA, com ele na presidência, dever de assumir a liderança, segundo suas próprias palavras: “A América voltou, pronta para liderar o mundo (American Conservative, 04/12/2020).”

Posteriormente, em reunião com governantes europeus, Biden insistiu que a luta entre a democracia e autocracia seria : “o desafio decisivo do nosso tempo”.

Formado por países sob influência dos EUA, o grupo dos “good guys” democratas seria constituído pelo Ocidente e mais algumas nações asiáticas e africanas.

Sucede que vários desses países, de democratas não tem nada, ou só tem eleições, sempre firmemente controladas pelos governos.

Na verdade, são autênticas autocracias, embora algumas dizem estar empenhadas na democratização (em geral, nada crível).

Não são poucos: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Hungria, Polônia, Sudão, Mali, Chad, Guiné, Turquia, Filipinas e Vietnam. Se a chamada batalha ideológica mundial não fosse uma piada, seria lógico que esses países integrassem o lado dos “bad guys”.

Sem perder tempo, o governo Biden informou que a China era a líder do campo adversário, secundada pelo seu grande parceiro, a Rússia.

Sendo também uma superpotência, os chineses estavam lutando com os EUA pela hegemonia no planeta, e com chances de vencer.

Seria desastroso, pois os chineses fatalmente imporiam sua ideologia autocrática e desumana a todo o mundo, conforme Biden e seus prosélitos repetem.

Por razões de autodefesa, os países democráticos precisariam unir-se sob a liderança do bom Tio Sam, seguindo fielmente suas orientações nas questões internacionais.

Eis que surgiu um problema: e se os interesses dos EUA e dos seus liderados forem opostos?

Bruno Le Maire, o então ministro francês das Finanças (hoje é das Relações Exteriores), apresentou um quadro desta situação:

”Os EUA, país líder do mundo, querem confrontar a poderosa China, que desafia sua liderança. Enquanto a Europa, que não tem nada a ver com isso, deseja relacionar-se com os chineses: ‘Em contraste, a prioridade estratégica da Europa é a independência, que significa ter maior capacidade na defesa, em defender sua própria visão na luta contra a mudança de clima, defender seu próprio interesse econômico, para ter acesso as tecnologias chave e não ser demasiadamente dependente das tecnologias americanas. A questão-chave para a União Europeia agora é tornar-se independente dos EUA, capaz de defender seus próprios interesses, sejam interesses econômicos ou estratégicos (The NewYork Times, 12/10/2021).”

Já um bom par de vezes essa contradição aconteceu.

Em 2015, o ex-presidente Trump retirou os EUA do acordo nuclear com o Irã, que impedia a nuclearização militar de Teerã, lançando duras sanções visando praticamente reduzir a um desastroso mínimo o comércio do Irã com os outros países, os quais seriam indiretamente atingidos caso investissem ou continuassem investindo no país.

O interesse americano era deixar o Irã a pão e água, forçando-o a aceitar um novo acordo nuclear, feito a quatro mãos por Trump e seus amigos de israel.

Além das sanções americanas lesarem o Irã; prejudicavam também alguns países europeus, especialmente a Alemanha e a França, que já tinham consideráveis investimentos no Irã e planejavam ampliá-los, explorando um mercado de 80 milhões de pessoas.

Biden, que prometera na campanha revogar as medidas do antecessor e voltar ao Acordo Nuclear, trouxe exigências imprevistas para honrar sua palavra, forçando negociações que, até fins de março, não chegaram a nada.

Portanto, nesse confronto de interesses, o interesse dos EUA prevaleceu sobre o dos europeus.

No caso 5G, houve novo conflito de interesses, com resultados semelhantes.
A tecnologia 5G é a próxima geração de rede de internet móvel. Prevê-se que seja 50 vezes mais veloz que as atuais redes 4G, oferecendo velocidade de até 5 GBs em condições ideais.

O 5G da Huawei é o mais barato e oferece financiamentos e prazos mais longos do que as rivais.

Estas vantagens aumentam nos países que, em absoluta maioria, já tem instalada a 4G da Huawei, pois a substituição pela 5G dos chineses seria fácil e sem custo, aproveitando a infraestrutura Huawei existente. Como nenhum concorrente tem a estrutura da 4G instalada, a opção por algum deles, consumiria vários anos e novos gastos.

Era do interesse americano brecar a expansão da Huawei chinesa pelo mundo. Donald Trump, primeiro, e depois, Joe Biden, pressionaram os europeus, a proibirem o uso da 5G da Huawei.

Só para dar um exemplo dessa pressão: em Portugal, George Glass, o embaixador dos EUA, em entrevista ao jornal O Expresso, intimou os portugueses a escolherem entre os EUA e a China, ao decidirem sobre o ingresso do 5G Huawei no país. E ameaçou: a opção chinesa poderia acarretar consequências inaceitáveis na questão da defesa nacional.

Sem coragem para encarar os americanos, quase todo o Velho Mundo baixou a cabeça e fez o que Tio Sam exigia.

Os europeus também ganharam outras disputas.

Apesar das duras ameaças de Trump e das exigências firmes de Biden, a Alemanha ainda resiste ao bloqueio do gasoduto Nord Stream2- obra da Rússia- com apoio da opinião pública local.

Enfrentando as reprimendas do governo Biden, Scholtz, o novo premier alemão mantém suas boas relações com os chineses. Desde 2016, a China vem sendo o parceiro comercial mais importante da Alemanha.

Em agosto de 2021 o governo Macron já havia fechado a venda de 12  submarinos, um negócio de 66 bilhões de dólares já acertado com a Austrália.

Enquanto as partes discutiam detalhes e os franceses já trabalhavam no projeto, EUA e Austrália acertaram o seu cancelamento e substituição por um contrato de a venda de 8 submarinos nucleares americanos ao país dos cangurus.

E assim, enquanto a indústria americana de armas vai faturar algumas dezenas de bilhões, a França sai tungada por Biden, seu autoproclamado líder de todas as democracias, inclusive, é claro, a francesa.

Macron, tocado pela traição de um país amigo, apelou aos europeus para que “deixassem de ser ingênuos” e afirmassem sua independência dos EUA, enviando-lhe um sinal dos mais fortes de que a crise diplomática desencadeada pelo acordo dos submarinos rompido poderia ter” uma longa repercussão nas relações transatlânticas (Washington Post, 28/09/2021).”

Enquanto o secretário de Estado, Blinken, considerava o caso um mero erro de comunicação, Biden derramava-se em desculpas. E assegurou a Macron que tal descortesia jamais se repetiria (The Guardian, 19/10/2021).

Na reunião convocada pelo presidente americano para que na luta ‘democracia x autocracias’, as potências da Europa deveriam limitar sua parceria com a China a acordos ambientais, surgiram obstáculos.

Muitos desses governos não gostaram da ideia de rejeitar as propostas econômicas vantajosas da China, e da reaproximação com a Rússia, com quem só decretaram sanções depois das pressões de Obama (conforme disse Biden, quando vice-presidente).

Alemanha insistira em patrocinar a finalização do gasoduto NordStream 2; a Turquia insistiu em novas compras do sistema antimíssil russo, o S-400, rejeitando o americano Patriot. E o tratado de comércio da China com a União Europeia continuou na pauta dos interesses da Europa, especialmente dos alemães.

A tentativa de Biden de unir os europeus no barco capitaneado por ele ameaçava começar a fazer água.

Foi quando a Rússia instalou um exército de mais de 100 mil homens perto da fronteira com a Ucrânia.

Toda a Europa protestou contra essa ameaça injusta.

Biden não perdeu a chance. Ao lado do seu coadjuvante, a OTAN, acusou Putin de planejar um ataque ao território ucraniano.

Algum tempo depois, anunciou sanções de alcance inimaginável, caso os russos avançassem.

Mas, a invasão da Ucrânia pelos russos se consumou. Toda a Europa mostrou-se indignada com a brutalidade de Putin, emitindo ásperas censuras por essa ilegal violação da soberania ucraniana.

Na ONU, a condenação do chefão russo foi apoiada em massa por quase todos europeus. Já quanto às sanções de Biden, a grande maioria aprovou, excluindo-se apenas a rejeição dos aliados tradicionais do binômio China-Rússia. E 35 abstenções, em geral inesperadas.

Acho que boa parte dos apoios espelha a busca dos países da Europa pela proteção de Tio Sam, no temor de que, um dia, poderia chegar sua vez.

Foi assim que a liderança global americana, que andava claudicando, fortaleceu-se. Era o seu momentum e Biden assumiu a defesa da Ucrânia contra o autocrata das estepes, convocando os países da OTAN para auxiliar os ucranianos com armas, munições e equipamentos militares. E deu o exemplo, enviando inicialmente 300 milhões de dólares em armamentos modernos e, mais recentemente, anunciando mais 800 milhões de dólares em mísseis antiaéreos, drones armados e os devastadores mísseis anti-tanques,  para tornar o exército ucraniano um poderoso adversário dos russos.

Os Estados da OTAN aderiram prontamente ao chamado americano.

Os poucos países que preferiram tentar realizar reuniões de paz com Putin, foram constrangidos a entrar na cruzada.

Até mesmo a Alemanha, que vinha se negando a enviar armamentos à ucrânia, acabou cedendo, prometendo eficaz ajuda militar.

Inicialmente ignorando o clima bélico, Macron preferiu focar na busca de um acordo com a Rússia. Mas desistiu, também aderiu ao diktat de Biden.

Enquanto isso, vitaminada pelos recursos bélicos recebidos de Biden e da União Europeia, a Ucrânia resistiu, obrigando a ofensiva russa a moderar e depois interromper seu ritmo de expansão. E Putin passou a concentrar suas forças numa estratégia de desgaste do inimigo, privilegiando os bombardeios aéreos e terrestres, através de canhões e mísseis terra-a-terra.

Sem avanços da infantaria russa, a guerra pintou como mais demorada do que o previsto pela estratégia inicial de Putin.

Enquanto o tempo passa, embora os países da OTAN continuem a reforçar o poderio das forças ucranianas, as sanções de Biden, visando arruinar a economia russa, começaram a gerar objeções entre eles.

Por mais que respeitassem a hegemonia americana, seriam seriamente prejudicados se contribuíssem para o boicote das principais fontes de  rendimentos internacionais russas: o gás natural e o petróleo.

Sem a importação do gás russo, vários países ficariam em situação precária.

50% das necessidades alemãs em gás são supridas pelo produto russo. Na  Áustria, Hungria, Eslovênia, Servia e Eslováquia esse número é maior: 60%. E, na Polônia, maior ainda: 80%.

Prontamente, Biden lançou um Plano Estratégico para substituir a dependência ao gás russos, pelo o gás liquefeito americano e o gás natural produzido por algumas potências aliadas.

Para sua decepção, o gás americano sozinho não resolveria o problema. E pior: o regime fraternal da União dos Emirados Árabes disse ”não” ao apelo da Casa Branca, o Qatar seguiu seu exemplo e até mesmo o dócil Canadá negou colaborar pois precisava de todo o gás que produzia.

Em pleno inverno e fortemente dependente do fornecimento de Moscou, diversos países europeus se recusaram a aceitar o plano de Biden. Continuariam comprando gás da Rússia.

O petróleo é outra causa do crescimento de cabelos brancos em Biden.

25% do petróleo consumido por muitos países europeus vem da Rússia. Eles têm razões para recear as consequências do boicote americano ao petróleo russo.

“A pressão interna já cresce entre os membros da União Europeia, enquanto alguns membros falam da imposição de um embargo na Rússia. A iniciativa de Biden foi rapidamente minimizada pelos alemães, com a nação reclamando que qualquer redução na dependência russa deva ser gradual (Oil Price– 22/3/2022).”

Eles se negam a cortar abruptamente suas compras do ouro negro do país de Dostoiévski. Eventualmente, aceitariam um plano de longo prazo.

Por sua vez, a Áustria e a Finlândia advertiram que, caso funcionasse o boicote proposto por Biden, a produção petrolífera da Rússia seria reduzida a um tal ponto que desencadearia a maior crise de abastecimento em décadas.

Os preços do produto subiriam de forma gigantesca. Derivados, seguiriam o mesmo padrão. Os fertilizantes, por exemplo, inflacionariam alimentos de todos os tipos.

A guerra econômica dos EUA contra a Rússia começa a empacar, aparecem fendas na força de comando americana sobre a Europa.

Na Ásia, alguns países violam as sanções antes de muitas delas serem concretamente aplicadas.

A Índia, com quem Biden contava em sua luta contra a China, mantém relações econômicas e políticas cada vez mais fortes com os russos, por sua vez, cada vez mais ligados à China.

Em março último, Nova Delhi já importou 360.000 barris de petróleo russo por dia. É quatro vezes mais do que a média mensal dei 2021 (Financial Times,18/3/2022).

E mais: o governo Modi compra e promete continuar comprando armamentos da Rússia. Na guerra da Ucrânia ficou fora da adesão ocidental à liderança de Biden, negando-se a condenar a invasão russa e a obedecer às sanções impostas por Washington.

Alto funcionário do Departamento de Estado, informou: Como Modi não condenou a invasão e recusou-se a aderir às sanções, os EUA estariam prestes a sancionar o estoque de armas russas de propriedade indiana (Al Jazeera,18/3/2022).

A pílula mais amarga que Biden teve de engolir foi a traição de Israel, seu protegido, que os EUA vem defendendo e auxiliando mesmo contra as leis internacionais.

Apesar do pedido americano, o premier Naftali Bennett recusou-se a mandar algumas baterias do sistema de defesa antimíssil Iron Dome à Ucrânia, para não danificar as boas relações de Israel com a Rússia.

Em conversa telefônica, Bennett aconselhou o presidente ucraniano Zelensky a acabar com a guerra. “Se eu fosse você“, disse o israelense, “pensaria na vida do seu povo e aceitaria a oferta (Intecept,23/3/2022).”

Zelensky aceitando seria um pesadelo terrível para Biden.

Significaria a vitória de Putin e muitos passos atrás da liderança americana na Europa, hoje praticamente conseguida.

No momento, o resultado do cabo de guerra entre o entre o Golias americano e o Golias russo ainda está incerto.

Biden luta para controlar as queixas dos subordinados europeus.

Talvez tenha aprendido que os interesses americanos nem sempre são de interesse dos países do Velho Mundo, ainda que o Reino Unido e alguns outros fazem de conta que são. Fazer concessões às ovelhas rebeldes pode ser útil para impedir que tresmalhem.

Embora a imagem de Putin esteja emporcalhada em todo o mundo, se vencer a Ucrânia e seus apoiadores, ele obrigará Zelensky a aceitar suas principais exigências. Nesse caso, os russos o reelegerão, possivelmente várias vezes seguidas.

Quanto às posições dos europeus, cito o ex-premier israelense, o islamofóbico Bibi Netanyahu: “As outras nações respeitam princípios até certo ponto, mas elas respeitam muito mais o poder.”

 

 

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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