Correio da Cidadania

Posições inflexíveis alimentam a crise na Ucrânia

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Foto: The Russian Presidential Press and Information Office

No momento em que europeus e americanos, alertados principalmente pelos EUA, dão como certo que os russos invadirão a Ucrânia, Putin se comporta de uma maneira absolutamente surpreendente.

Normalmente ele usa suas aparições nas entrevistas às reportagens e em vídeos na TV para focar as questões mais importantes do país. Parece que a questão da Ucrânia não é uma delas já que o presidente sequer a mencionou uma única vez, desde sua fala de ano novo em 23 de dezembro último até 29 de janeiro, quando este artigo foi finalizado.

Na quarta-feira, 26 de janeiro, por exemplo, o presidente reuniu a imprensa para uma entrevista coletiva, onde defendeu a candidatura da Rússia para sediar a feira mundial Expo 2030; alinhou as oportunidades de investimento na energia verde; defendeu o uso das vacinas na pandemia e discorreu sobre a criptografia, entre outros temas.

As decisões de Biden, que pressagiam a guerra, anunciando o envio de 8.500 soldados americanos para as regiões bálticas e as apocalípticas sanções que transformariam a Rússia em um deserto gelado, foram consideradas pelo presidente moscovita tão preocupantes quanto um buraco no asfalto da Praça Vermelha ou o novo penteado de madame Putin.

Para os analistas, ele estaria fazendo um jogo de cena, apresentando-se diante do seu povo como um czar impávido, um novo Pedro o Grande, que não dá bola às sanções qualificadas como nunca vistas em tempo algum.

Sua indiferença exibida na TV e nos jornais seria para acalmar o povo russo, demonstrar que não há por que se assustarem. Além de tentar convencer a opinião pública internacional de que, já que ele não pretende invadir a Ucrânia, não vale perder tempo falando sobre essa inexistência.

Para surpresa geral, a Ucrânia também não acredita em ataques do assustador vizinho, apesar do presidente Zelensky estar constantemente pedindo armamentos aos amigáveis países da OTAN.

Veja a posição do ministro da Defesa ucraniana. Para ele, faltam motivos para justificar todo esse barraco. Afinal, a concentração de poderosas tropas russas nas fronteiras não tem nada de novo já que algo assim já existe desde o longínquo abril de 2021, e até agora não deu em nada (Newsweek, 24/1/2022).

Por sua vez, o chefe do Conselho Nacional de Segurança achou outros culpados pela crise: alguns países ocidentais e certos veículos da mídia que exageraram o perigo por objetivos geopolíticos (New York Times, 25/1/2022).

Atrevido, um porta-voz do ministro do Exterior permitiu-se censurar os EUA e o Reino Unido por terem mandado as famílias de seus diplomatas saírem de Kiev, afirmando que os dois países amigos agiram prematuramente (New York Times, 25/6/2022).

E Zelensky confirmou esse funcionário ao declarar num post no Facebook que a retirada nas embaixadas “não significava que uma escalação era inevitável.”

Biden e seu seguidor, o festeiro Boris Johnson, acham o contrário. E, convenhamos que a acumulação de mais de 100 mil soldados, inúmeros canhões, tanques e lançadores de mísseis junto aos limites do território da Ucrânia, dá muito o que pensar.

Os líderes ocidentais não engoliram as explicações de Dmitry Peskov, secretário de imprensa de Putin de que as tropas russas estavam posicionadas nas fronteiras em resposta às ameaças da OTAN (CNN,16/1/2022).

Como líder de fato dessa organização, o presidente Biden encarou o desafio do urso das estepes de um modo não exatamente diplomático, proclamando que caso Putin invadisse a Ucrânia, teria de se ver com sanções, a arma predileta dos EUA para resolver questões internacionais em seu favor.

Desta vez, elas precisavam ser do tamanho da Rússia, portanto assustadoras, dessas que fariam pôr de joelhos um país comparável aos EUA em poderio militar.

E são mesmo.

Considere, por exemplo, a proibição do Nord Stream 2 começar a funcionar. Esse gigantesco gasoduto, que custou aos russos 11 bilhões de dólares, pode fornecer 80% do consumo alemão e 40% dos demais países europeus a preços razoáveis.

Anteriormente, o ex-presidente Donald Trump já lançara sanções contra o Nord Stream2, mas a Alemanha, principal beneficiária do gasoduto, reagira, apoiada por alguns parceiros da Europa.

Inicialmente, Biden mantivera a punição trumpista, que ameaçava duramente os países desobedientes, mas logo a revogou diante do desagrado do mercado europeu.

Agora seria diferente uma vez que toda a União Europeia fecha com Washington no presente conflito contra Moscou.

Proativos, os EUA já teriam garantido o suprimento de gás natural por vários produtores da Europa e da Ásia, e de gás liquefeito por produtores americanos. As famílias europeias não precisariam do Nord Stream2 para passar um inverno bem aquecido.

Com outra das sanções, os EUA e aliados ocidentais impediriam o acesso dos russos a tecnologias essenciais a seu desenvolvimento na construção de aviões de caça, sistemas antiaviões de caça e antissatélites, sistemas espaciais e novas tecnologias, nas quais os russos esperam crescer muito, como inteligência artificial e computação quântica.

Finalmente, a “sanção da justiça final”: desconectar o sistema bancário russo do Shift, o sistema global de segurança financeira, para pagamentos e transferências de dinheiro ou informações entre todos os países do mundo.

Fora do SHIFT não há salvação, a Rússia não poderia realizar transações internacionais. Seus principais produtos de exportação, petróleo e gás natural, ficariam encalhados, a economia dependeria da reserva nacional de dólares para não entrar em pane.

Para completar esse quadro aterrador, Biden garantiu que enviará novos e significativos armamentos e tropas para fortalecer as forças militares dos países da OTAN próximos às fronteiras da Rússia e da Ucrânia.

Provavelmente os russos devem ter engolido em seco diante das calamidades com que Biden os ameaça, mas não deixaram a peteca cair. Pelo menos da boca para fora.

Trataram de menosprezar as sanções esboçadas pelos EUA.

De acordo com Moscou, o Nord Stream 2 não seria congelado jamais porque atende a importantes interesses da Alemanha, ao lhe garantir gás natural à vontade, e em condições vantajosas.

E os russos dizem duvidar da eficiência dessa reunião de dezenas de pequenas entregas de gás por dezenas de produtores, conforme anuncia Biden. Por se tratar de uma operação excessivamente complicada, teria de cobrar preços substancialmente mais altos dos que os do gasoduto russo. A Alemanha, principal cliente, não iria aceitar gastar mais e sem contar com a segurança no fornecimento do gás, garantida pelo Nord Stream2.

Sancionar as transações internacionais, que atualmente suprem a Rússia dos produtos tecnológicos de que carece, já é feito pelo Ocidente desde 2014 (devido à anexação da Crimeia), e até agora os russos vão se virando. Depois de comer o pão que o diabo amassou, a economia saiu do buraco, conforme prova seu crescimento de 4,7% , em 2021.

Expulsar Moscou da SHIFT parece um trabalho acima das forças de Hércules e até mesmo de Joe Biden.

A SHIFT é uma entidade formada por 25 países da União Europeia.

Para a exclusão de qualquer um deles, é necessário o veto de todos. Não vejo como os EUA e o Reino Unido conseguiriam realizar esse feito, particularmente árduo diante da provável rejeição dos países que mantém abundantes e equilibradas relações comerciais com Moscou.

A última ideia antiPutin de Joe Biden, não é uma sanção, mas uma exibição da musculatura de Tio Sam consistente no envio aos países da OTAN vizinhos da Rússia de forças americanas, caso Putin “saia das quatro linhas.”

O objetivo não seria entrar em guerra (que nenhuma das partes quer) mas confrontar os russos com forças ponderáveis que os fariam sentir o peso dos punhos de Tio Sam.

O que, eventualmente, os levaria a fumar o cachimbo da paz com a OTAN, sem conseguir muita coisa em troca.

O problema aqui seria planejar e transferir de suas bases nos EUA para o leste da Europa algo que possa fazer tremer os mais de 100 mil russos armados até os dentes. E, principalmente, providenciar alimentos e água a todo esse pessoal, além de combustível e de munições para os armamentos que portariam - durante quanto tempo, ninguém sabe.

Inevitavelmente, os jornais, políticos e pastores fundamentalistas não deixariam de exaltar o heroísmo norte-americano e clamar contra os bárbaros russos, criando um clima de guerra de verdade.

Acho que Biden jamais embarcaria nessa barca, rejeitada pelo povo americano conforme recente pesquisa da States Action/Trafalgar Group, na qual apenas 15,6% dos entrevistados defenderam boots on the ground, a solução da crise através da guerra.

Não seria inteligente ficar com esse grupo de cidadãos raivosos, opondo-se ao pacifismo da maioria do país, especialmente levando em conta que as eleições de meio de mandato estão aí e os democratas arriscam-se a perder o Senado e a Casa dos Representantes para a oposição republicana.

A última pesquisa revelou fatos arrepiantes para Biden: 52,9% das pessoas desaprovam o seu governo, contra apenas 41,9% que o aprovam.

Essa situação deve melhorar diante da altiva recusa presidencial em aceitar as condições russas para acabar com o conflito, as quais são de fato exageradas.
Deem só uma olhada: recusa perpétua à entrada da Ucrânia na OTAN; os limites da OTAN retroagiriam ao que eram em 1997 (sem os países satélites da União Soviética); a OTAN não mais se expandiria; proibição de instalação de qualquer míssil nos Estados da Europa Oriental que pudessem atingir o território russo.

A razão de Putin exigir uma resposta por escrito a essas exigências é sua falta de confiança na palavra dos EUA.

Segundo Moscou, em 1990, para o então governante russo, Gorbatchev, ao aceitar a reunificação da Alemanha, James Baker, então secretário de Estado dos EUA, teria garantido que a OTAN não incluiria mais nenhum outro país no seu quadro de integrantes. Portanto, os países que se descolaram da União Soviética não poderiam jamais serem membros da OTAN.

Hoje tanto os EUA quanto a OTAN declaram, enfaticamente, que tal compromisso nunca existiu. Como fora apenas verbal, não havia como Putin provar o contrário. Ele afirma que aprendeu a lição, agora a Rússia só aceita promessas estadunidenses por escrito.

Não se sabe quem está com a verdade nesse episódio. Seja como for, não se espera que Putin se conforme com o "não" às suas demandas.

Enquanto sua resposta não vem, a temperatura ferve nos EUA. Para a maioria dos políticos e jornalistas, as tropas de Moscou fatalmente invadirão a Ucrânia.
Nesse caso, acredita-se que Biden nem sonha em lançar soldados contra o exército russo.

Fala-se que ele e Boris Johnson são enfáticos ao profetizarem a invasão russa para desviarem a atenção da opinião pública de dois fatos desconfortáveis: a inflação e a má performance nas pesquisas do governo Biden; e o escândalo do primeiro-ministro do Reino Unido em participar de concorridas festinhas, desobedecendo a restrições das autoridades sanitárias para enfrentar a pandemia.

Embora Biden e aliados pretendam rejeitar qualquer concessão às ideias de Putin, a verdade é que o apoio europeu não é compacto. Pelo menos a Alemanha, a França e países que mantêm vantajosas relações comerciais com os russos lutam por uma solução negociada entre as partes.

A Alemanha, a verdadeira líder da União Europeia, através de repetidas declarações do seu primeiro-ministro, Olaf Scholz, proclamou seu desejo de conseguir um acordo que satisfaça as duas partes ora em confronto.

Embora ressaltando sua disposição em somar forças com os demais membros da OTAN contra eventuais agressões militares russas, ele não abriu mão de posições fundamentais do seu governo que se contrapõem a posições de Biden.

Scholz insiste firmemente na defesa do Nord Stream 2, o gasoduto russo cuja eliminação é exigida por Biden. O chanceler alemão até concorda com ele, porém somente no caso de um ataque moscovita à Ucrânia, coisa em que Scholz não acredita (The Wall Street Journal, 2/12/2021).

O governo de Berlin enfureceu membros da OTAN ao proibir a Estônia de enviar artilharia à Ucrânia porque incluía componentes de origem alemã. É política da Alemanha não exportar armas para regiões onde há iminência de guerra.

A unidade dos países da OTAN na crise é também esvaziada pela França, sob o governo Macron. Ele e Scholz vêm agindo em conjunto, para marcar uma posição independente favorável à pacificação das relações entre a Rússia e a OTAN.

Ambos duvidam que Moscou planeje invadir território ucraniano. Macron afirmou que a França e a Alemanha jamais abandonariam o diálogo com a Rússia.

Ecoando seu chefe, Le Drian, ministro do Exterior da França, declarou no senado desse país: “a situação ucraniana é tensa, mas nós estamos tomando todas as iniciativas necessárias para frear a escalada da situação (US News, 26/1/2022).

Enquanto Biden e o festivo Boris Johnson põem lenha na fogueira, com suas sombrias visões de uma guerra pintando inexoravelmente no horizonte, a imagem de Putin no Ocidente, que nunca foi das melhores, passa por um processo de satanização crescente.

Ele é visto por muitos como um terrível autocrata, capaz das manobras mais hediondas para a Rússia conseguir recuperar todas as regiões perdidas no ocaso da União Soviética. Alguém semelhante a Pedro o Grande, Ivan, o Terrível e Catarina, a Grande, os czares que construíram o império russo de forma eficiente, porém brutal, quando consideraram útil a seus desígnios.

Como parece temerário tentar analisar uma personalidade tão complexa, melhor acreditar que ele realmente vê na entrada da Ucrânia na OTAN uma ameaça à segurança da Rússia, assim se justificando suas posturas belicosas.

Ao falar perante um público de oficiais das forças armadas, Putin assim se expressou: "É extremamente alarmante que lançadores de mísseis MK41, que estão localizados na Romênia e serão instalados na Polônia, estejam sendo adaptados para lançar mísseis de ataque Tomahawk. Se esta infraestrutura continua a ser movimentada para a frente, e se os sistemas forem instalados na Ucrânia, o tempo do voo até Moscou será de 7 a 10 minutos, ou mesmo cinco minutos, no caso dos sistemas hipersônicos”. Uma situação que exige muitas doses de vodca para um patriota russo conseguir dormir.

Há uma pergunta que não quer calar: como os norte-americanos se sentiriam se a Rússia enchesse de lançadores de mísseis a ilha de Cuba e a Venezuela?
Não que o receio russo justifique soluções tão drásticas quanto deslocar para fronteiras com a Ucrânia mais de 100 mil soldados, equipados com tanques de guerra, lançadores de mísseis e artilharia.

Mas lembre-se de que também a OTAN está acumulando soldados e armamentos de países-membros vizinhos da Rússia e da Ucrânia. O fato de Biden e Putin terem todo interesse na paz pode ser insuficiente.

Não seria a primeira guerra que nenhuma das partes envolvidas queria.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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