Correio da Cidadania

A vergonhosa história do genocídio cultural dos indígenas canadenses.

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Desde os anos 1990, comunidades indígenas vinham descobrindo tumbas sem nomes, nos terrenos de três antigos internatos para índios canadenses. Eram poucos de cada vez, por isso, a percepção desses eventos restringia-se a pequena parte da população.

Em 27 de maio deste ano a identificação de um cemitério secreto com 215 túmulos em Kamoops (Colúmbia Britânica) causou escândalo nacional. Que ecoou com crescente intensidade pelo Canadá, à medida que novas descobertas foram sendo reveladas: em 24 de junho, 751 tumbas em Marieval (Saskatchewan); em 30 de junho, 182 no local da antiga Eugene’s Mission (Colúmbia Britânica).

Todos esses restos mortais eram de crianças e adolescentes indígenas de alguns dos 140 internatos das Escolas Residenciais de Indígenas Canadenses, localizados em quase todas as províncias do país.

Dirigido e financiado pelo governo canadense e administrado por padres católicos (67%) e pastores anglicanos, presbiterianos e da Igreja Unida (33%), esse sistema foi criado em 1831, tendo seu último internato fechado em 1996.

Seu objetivo era assimilar as crianças indígenas à cultura eurocanadense para integrá-los na civilização cristã ocidental, internando-os em escolas especiais, onde ficariam afastados da influência dos pais e das suas tribos.

A matrícula era obrigatória por lei para menores entre 6 e 15/16 anos. Suas famílias podiam protestar, as mães chorar, mas legalmente tinham de aceitar que seus filhos fossem tirados do seu convívio, sem garantias de que um dia voltariam.

Os internatos ficavam a grandes distâncias das comunidades dos pequenos estudantes, com o objetivo de reduzir ao máximo o contato com as famílias, o que segundo as autoridades prejudicaria a assimilação.

Deixando para trás pais desesperados, essas crianças passavam a sofrer verdadeira lavagem cerebral para esquecer sua cultura, seus costumes, suas tradições, sua religião (tinham de se tornar cristãos) e sua língua (só podiam falar francês ou inglês).

“Eles nos fizeram acreditar que não tínhamos almas”, disse Florence Sparier, ex-residente num dos internatos para indígenas, em entrevista à imprensa. ”Eles nos rebaixaram como pessoas, portanto, nós aprendemos a não gostar de quem nós éramos” (BBC News, 24/06/2021).

Nos anos 1930, 150 mil, cerca de 33% do total de meninos nativos do país, estavam inscritos.

O currículo era o mesmo das escolas estatais para não-índios, e os professores, mal treinados e mal preparados.

Até fins dos anos 1950, o governo reduzia seu financiamento com certa frequência. Em muitos casos, as crianças eram submetidas a trabalhos forçados, extremamente cansativos, para ajudar a manter as instalações. Isso implicava em sérios prejuízos no seu aprendizado escolar e desenvolvimento.

Quando, depois de uma estada que durava muitos anos, os estudantes saiam dos internatos teoricamente como cidadãos assimilados, com sua identidade indígena extinta. Afastados da família e de sua cultura por esse longo período, e forçados a falarem, pensarem e se comportarem como homens brancos, os estudantes das escolas residenciais sentiam-se estranhos em suas comunidades, não conseguiam se ajustar. Grande número deles sequer tentou voltar aos lares de suas famílias.

O sistema provou-se eficaz em interromper a transmissão das posturas e crenças indígenas, através das gerações.

Por outro lado, a civilização branca não os recebia como iguais. Pelo contrário, os jovens indígenas eram objeto de ofensas racistas e de discriminação.

Sem espaço, nem nas comunidades de sua origem, nem no novo mundo hostil a que foram lançados à força, os jovens caíam em depressão traumática, o que os levava ao alcoolismo, às drogas, ao crime e até ao suicídio.

Atualmente, ainda existem 80 mil sobreviventes dessa tragédia canadense.

A partir dos anos 1960, diante das denúncias e protestos de algumas comunidades indígenas mais bem organizadas, o governo de Otawa acabou abrindo os olhos.

Gradativamente, os internatos foram sendo fechados ou passaram a ser administrados por autoridades civis ou pelas próprias comunidades indígenas.
O último fechou suas portas em 1996.

Não bastava.

Era preciso auxiliar os 80 mil sobreviventes a se livrarem dos efeitos dos tenebrosos anos vividos nos internatos, os profundos traumas que bloqueavam seu acesso a um futuro digno.

Entre uma série de iniciativas em auxílio aos sobreviventes, destaco a concessão de 1,9 bilhão de dólares canadenses para garantir 20 mil a cada um desses jovens.

Era preciso, igualmente, descerrar a cortina de silêncio que impedia o povo canadense de conhecer as dimensões da tragédia a que se condenou centenas de milhares de menores indígenas e suas famílias.

Em junho de 2008, foi criada a Comissão de Reconciliação e Verdade do Canadá (TRC), com o fim de documentar a história e os impactos duradouros do sistema de escolas residenciais para indígenas do país.

Essa comissão levou 6 anos ouvindo 6.750 testemunhas e examinando documentos para, em 2015, apresentar um relatório, comprovando que o sistema destruiu a identidade indígena de gerações de menores, o que o TRC qualifica como genocídio cultural e viola o artigo 2 da Convenção de Genocídio, das Nações Unidas, que proíbe “a transferência forçada de crianças de um grupo para um outro grupo.”

As principais conclusões do relatório impactaram fortemente a opinião pública do país.

Os direitos humanos dos jovens residentes tinham sido largamente desrespeitados.

No seu testemunho diz o ex-aluno John Jones: “o abuso físico era diário. E éramos agredidos verbalmente – se eu não fazia as coisas do jeito que eles queriam que eu fizesse, eu era chamado de índio sujo e estúpido, que não seria bom para nada” (Wbur Point, 28/06/2021).

Os estudantes sofriam de má nutrição e constantes castigos físicos, pois “era o único jeito para salvar almas ou punir e desestimular fugas.”

Abusos sexuais por professores ou administradores, má alimentação, superlotação, saneamento e aquecimento deficientes, água de má qualidade e falta de assistência médica eram condições habituais que provocaram altos índices de gripe e tuberculose (em um internato chegou a atingir 69% das crianças).

Como as políticas federais associavam o volume do financiamento ao total de inscritos, vários internatos indígenas matriculavam crianças doentes para elevar o número de inscritos, o que introduzia ou espalhava a doença nas demais crianças.

A gripe espanhola que atingiu o mundo após a primeira guerra mundial, causou mortes em massa nos internatos. Calcula-se que entre 3.200 e 6.000 alunos foram vitimados por doenças, especialmente tuberculose.

Tentativas de fugas, acidentes e incêndios foram também responsáveis por muitas mortes.

Murray Sinclair, ex- juiz e depois senador, que foi presidente da TRC, acredita que o total de crianças mortas passou de 10 mil.

Comitês de indígenas das Primeiras Nações, que colaboraram com a TRC, acreditam que esse número foi ainda maior: entre 10 mil e 50 mil das chamadas crianças perdidas que, removidas de casa para os internatos, nunca mais voltaram.

Os corpos das crianças que morriam nas escolas eram raramente enviados aos pais, a quem se fornecia escassas explicações ou mesmo nenhuma. Não se identificava qualquer dos sepultados.

Embora todos os internatos para indígenas oferecessem condições horríveis, a St.Alban´s, em Prince Albert (Saskatchewan), destacou-se pelos seus requintes de desumanidade:

As crianças viviam aterrorizadas, punidas por “faltas” como falar seu idioma natal. Um dos castigos habituais, era fechá-las no porão durante dias, forçadas a usar roupas de baixo sujas e a comer seu próprio vômito. Nessa escola, os professores e funcionários costumavam bater nos alunos com chicotes de metal.

O mais chocante foi o uso de uma cadeira elétrica artesanal para punição, o que divertia o pessoal adulto da escola e assustava os demais meninos, obrigados a assistir a essa dolorosa eletrocussão.

Talvez as autoridades do governo canadense e das igrejas cristãs responsáveis pelos internatos não sabiam de coisas como estas, ou mesmo, faziam de conta que não sabiam.

Segundo os defensores do sistema, abusos sexuais, castigos brutais, fome e alta mortalidade seriam meramente circunstanciais. O importante é que estava se aplicando muito dinheiro e árduo trabalho para “salvar” os pequenos indígenas de sua identidade selvagem e pagã, educando-os para lhes abrir as portas civilizadas da sociedade branca e, posteriormente, do paraíso.

Duncan Campbell Scott, vice-superintendente do Departamento de Assuntos Índios no período 1913-1932, expressou-se de forma clara: “Nosso objetivo é continuar até que não exista mais um único índio que não esteja integrado na nossa estrutura política”.

Os dois conceitos se completam : salvando as crianças e adolescentes índios, iremos aos poucos reduzindo o número dos índios selvagens, até não existir mais nenhum no Canadá.

Foi um processo de genocídio e etnocídio, pois passava pela eliminação dos costumes, religião, língua e tradições dos povos indígenas do Canadá.

As barbaridades cometidas pelo sistema contra os pequenos índios foram denunciadas muitas vezes durante o século 20. Nos últimos decênios, as autoridades das igrejas católica, anglicana, presbiteriana e unida confessaram seu erro e pediram desculpas às suas vítimas indígenas.

Somente em 2008, o governo do então primeiro-ministro Stephen Harper fez o mesmo. Antes disso, porém, ele e seu antecessor, Paul Martin, já tinham se conscientizado do problema e lançado iniciativas de valorização dos indígenas.

Justin Trudeau, o atual primeiro-ministro também tem favorecido os interesses desses habitantes originais do Canadá.

Por ocasião das primeiras descobertas de tumbas de indígenas sem nome, ele declarou à Radio Canadá: “O maior erro que este país cometeu foi a assimilação forçada dos menores indígenas através dos internatos. As descobertas de Marieval e Kamloops são parte de uma tragédia maior. Eles são uma vergonhosa lembrança do racismo, discriminação e injustiça sistêmica que os povos indígenas enfrentaram e ainda enfrentam neste país.”

O processo de identificação de tumbas de crianças indígenas chegou em agosto a 1.300. E continua, há muitas tumbas ainda a serem reveladas.

A publicação de cada um desses achados penetra fundo no íntimo do povo canadense.

É um apelo à solidariedade de quem, como parte da sociedade eurocanadense, tem sua parcela de culpa nesse genocídio cultural.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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