Correio da Cidadania

O que Bennett disse e o que Biden não disse

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Ao analisarmos o que foi dito na reunião dos governantes dos EUA e de Israel, incluindo as declarações do primeiro-ministro de Israel à imprensa norte-americana na ocasião do evento, a conclusão só pode ser esta: Biden foi um amigão para Bennett, pois não disse nada contra o exposto pelo premier israelense. E quem cala, consente.

Naftali Bennett foi à Casa Branca para conseguir apoio dos EUA contra a possibilidade de o Irã ter bombas nucleares e a formação de uma aliança de defesa estilo OTAN entre Israel, as monarquias do Golfo e a Jordânia para enfrentar o Irã, à qual os estadunidenses poderiam aderir (The New Arab, 30/08/2021).

O hábil israelense admitiu que se opunha à volta do EUA ao acordo nuclear com o Irã, mas que, independente do que acontecesse, seu país continuaria a lançar ataques secretos contra o programa nuclear iraniano (New York Times, 24/08/2021).

Aí deve ter surgido um impasse.

Tais disposições entravam na contramão das solenes promessas feitas por Joe Biden na sua posse na presidência dos Estados Unidos da América Norte: restaurar a autoridade moral da América e promover os direitos humanos urbi et orbi.

Para início de conversa, lembro que o Irã teria o mesmo direito de Israel de ter armas atômicas o que, como se sabe, já produziu entre 80 e 200 desses engenhos nucleares, o que a comunidade internacional fez que não viu.

No entanto, enquanto o Irã sofre duras sanções, nenhum país ousa pedir igualdade de tratamento a Israel, que mantém seu programa nuclear tranquilamente, sem prestar quaisquer informações à AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), a quem cabe regular o problema para evitar que exploda o mundo.

A posse de tais armas que é um direito para Israel e uma condenação para o Irã tem uma, digamos, justificação: o Irã sempre estaria ameaçando dar fim ao país sionista. Contando com armas atômicas, certamente as usariam para destruir implacavelmente a nação e o povo israelenses. Acrescente-se que os demais países correriam idênticos riscos caso os fanáticos aiatolás dispusessem desses recursos para lhes impor algo ainda não imaginado (Talvez o uso de barbas compridas...).

Esse quadro é aceito internacionalmente, os EUA sabem como convencer o mundo de que o que interessa a eles, interessa a todos os países.

Na verdade, os chefes iranianos já reiteradamente desmentiram que não pretendem “tirar Israel do mapa”. Sempre deixaram claro que, no seu entender, serão fatores internos que acabarão com o regime sionista e o substituirá por uma democracia sem supremacias raciais.

Não vemos autoridade moral na atitude norte-americana em praticamente criminalizar atos de países que se insurgem contra sua liderança, enquanto aceita os mesmos atos quando praticados por seu aliado, Israel.

Enfim, a realidade cede à injustiça que se pratica contra o Irã e temos de aceitar que ele está proibido de ter um programa nuclear militar. É o que estabelece o Acordo Nuclear feito com as grandes potências, o p5+1 (EUA, Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha). O qual ele não está procurando fugir a suas obrigações na calada da noite.

É altamente questionável a acusação israelense e estadunidense de que o Irã continua desenvolvendo seu programa nuclear atômico, ao aumentar seu estoque de urânio enriquecido.

Em primeiro lugar, o Irã, que tem aumentado o enriquecimento de urânio em represália à saída dos EUA do acordo nuclear e ao lançamento de sanções por Trump, mantidas por Biden, sempre comunica detalhadamente tudo o que ele tem feito na área nuclear.

Em segundo lugar, porque objetiva usar o urânio enriquecido para formar placas de combustível para o Reator de Pesquisas de Teerã, sua única fonte de produção de isótopos nucleares para uso medicinal.

Sendo o Acordo Nuclear com o Irã inaceitável para Israel, Bennett comunicou a seu grande amigo que torce para os EUA não acertarem seus ponteiros com o Irã no citado acordo. Seja como for, continuará sua campanha de atentados e assassinatos para o paralisar.

Não se tem registro de que Biden tenha protestado contra estas estripulias.

O Acordo Nuclear com o Irã realizou-se, graças especialmente aos esforços do então presidente Obama, sendo coautorado pelas principais potências da Europa e da Ásia. Além delas, a ONU e quase todos os países civilizados do mundo o saudaram como uma solução providencial para evitar uma provável guerra no Oriente Médio.

Lembremos que uma resolução do Conselho de Segurança da ONU tem força de lei, conforme o estatuto da organização aprovado nos cinco continentes. Não dá para acreditar que apenas Israel, mais os sauditas e os Emirados Unidos tivessem motivos sólidos para reprovar o acordo, sobrepondo-se ao consenso universal.

São extremamente condenáveis as operações secretas israelenses, que Bennett informou a Biden que prosseguirão.

Elas foram cinco explosões de bombas incendiárias em instalações nucleares do Irã, entre 26 de junho de 2020 e 4 de julho, somando-se aos assassinatos de seis cientistas nucleares iranianos, executados pelo Mossad. Legítimos atos de terrorismo estatal, condenado pelas leis internacionais.

Mas não por Trump, que os aprovou tacitamente no seu governo. Até mesmo protagonizou a eliminação de um dos principais generais iranianos, através de mísseis disparados pelo exército dos EUA. Impunemente, é claro.

Na agradável reunião dos dois amigos, Biden perdeu uma boa ocasião para fazer ver a Bennett que terrorismo estatal e assassinato de cidadãos de países, ainda que inamistosos, são inaceitáveis face aos valores cultuados pelos EUA e pelos países civilizados, em geral, que repelem a prática da lei das selvas.

Fontes próximas ao governo informaram que Biden mostrou-se simpático à ideia de uma OTAN anti-Irã, embora até o exigente Bennett não espere que os EUA a integre, pois isso o obrigaria a, no caso de algum dos parceiros entrar em guerra com o Irã, participar a seu lado. Depois do fracasso do Afeganistão, Biden não cogita novas intervenções militares no exterior, como aliás já fez sentir.

Já que se tratou de uma conversa entre amigos, bem que Biden poderia dizer a Bennett que os EUA são contra os assentamentos e favoráveis à solução dos dois Estados, com independência da Palestina.

Mas ele não disse.

Nem depois de Bennett, entrevistado pelo New York Times, não ter titubeado em se opor às posições do colega com quem se reunira. Como se sabe, Bennett é um defensor radical da expansão dos assentamentos, está mesmo tocando um plano de construção de 9.000 casas em um desses novos locais. Quanto a solução dos dois Estados, Biden deixou pra lá, de certo para não incomodar seu hóspede, rival jurado da independência da Palestina.

No fim do agradável colóquio, em entrevista à imprensa, Biden, por fim, falou.

Inicialmente, limitou-se a desfiar algumas platitudes como “Os EUA estarão sempre ao lado de Israel”, “a inabalável parceria entre as duas nações”, para subitamente, vir com algo significativo, como nunca dissera antes (pelo menos em público) ao fraternal Bennett, “se a diplomacia falhar com o Irã, os EUA estão prontos para mudar para outras opções.”

Antes não tivesse dito.

Esta insinuação clara de que uma eventual renitência iraniana faria Tio Sam arregaçar as mangas e mandar ver mísseis, bombas, foguetes e outros artefatos semelhantes contra esse país, cheira muito mal.

Em primeiro lugar porque Biden estaria contrariando o firme desejo do seu povo e dele próprio de parar com mais intervenções guerreiras no exterior. Já era hora, depois do esbanjamento de dólares e de vidas de soldados nos fracassos no Vietnã, Iraque e Afeganistão.

Em segundo lugar porque, nas negociações sobre o Acordo Militar com o Irã, a diplomacia que está falhando é a dos EUA, que para cumprir a promessa presidencial de volta ao acordo, exigem que os iranianos aceitem parar de atuar na política dos países vizinhos (algo que a Casa Branca sempre fez) e pior, renunciem a seu programa de mísseis balísticos, único meio de defesa contra o inimigo Israel, militarmente muitas vezes mais forte.

Em terceiro lugar, porque, apesar de sua promessa, Biden não está pensando em cumpri-la.

Tanto ele quanto seus assessores, mudaram o foco da sua política externa. Não é mais o Oriente Médio.

Agora, ele se concentra na China, já que o novo presidente só tem olhos para planos e ações que brequem a expansão do antigo Império do Meio, pretendente declarado de tomar a liderança mundial dos EUA.

Depois dos chineses, é a Rússia que também preocupa Biden, pois, devido aos seus poderosos armamentos nucleares e balísticos, seria páreo para os EUA numa guerra.

Ancorado na sua musculatura, os russos veem desafiando os EUA ao intervir decisivamente na Síria e dar apoio a países malvistos por Washington como o Irã e a Venezuela, além de apresentar-se para partilhar o espaço no Afeganistão deixado aberto pela retirada das tropas norte-americanas.

Encarar estes dois infernais inimigos, especialmente a China, exige atenção máxima dos EUA, não sobra tempo para priorizar a paz no Oriente Médio. Segundo Biden e sua entourage agora não haveria condições adequadas para negociações diretas entre israelenses e palestinos (CNN, 27/08/2021).

Não haveria nada de melhor para os chefes de Jerusalém.

Sem meios pacíficos para a conquista da independência, restariam aos palestinos em Gaza lançar esporádicos foguetes e balões incendiários que poucos danos causam, além de medo, muita irritação e fugas dos cidadãos para os abrigos em cidades de Israel. E que acabam provocando ataques militares israelenses arrasadores, usando armas fornecidas pelos EUA, que matam centenas, às vezes mais de mil mortos de civis gazeanos, inclusive muitas crianças.

Por sua vez, para manter o fogo sagrado da luta pela independência, os palestinos moradores de Israel e da Cisjordânia ocupada, desesperados pela inutilidade de sua resistência, limitam-se a promover raros atentados contra alvos civis e manifestações pacíficas, duas ações bem diferentes, punidas pela polícia e o exército da mesma maneira: com gazes, agressões, tiros, prisões, torturas e mortes.

Enquanto esses conflitos se sucedem, Israel segue fundando novos assentamentos, em terras tomadas aos palestinos, até que cheguem a um número tão elevado que não sobre espaço para se criar um país independente e autossustentável.

Aí, talvez Biden e Bennett digam que chegou a hora de negociar a solução dos dois Estados, mesmo que um deles não tenha mais condições de ser um Estado.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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