Correio da Cidadania

Como destruir a democracia dentro da lei

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Nos anos 50 do século passado, a Hungria encantou o mundo com o Honved, um time de futebol de craques que buscavam incessantemente o ataque com jogadas criativas, esquecendo preocupações defensivas. Às vezes sofriam muitos gols, mas Puskas, Kocsis, Czibor e Hidegukti marcavam ainda mais.

Como em 1953, quando, formando quase toda a seleção húngara, derrotou a seleção inglesa, invicta em seu país desde 1910, por atordoantes 6 a 3.

Por azar e contusões, os chamados Magiares Mágicos perderam a Copa da Suíça, em 1954, para uma Alemanha pragmática.

Hoje, um outro húngaro também anda marcando gols atrás de gols. Só que contra o povo do seu país.

Como outros líderes populistas que infectam a Europa, Viktor Orban cresceu surfando na onda da decadência da socialdemocracia, da democracia liberal e do pé atrás do povo europeu face à imigração.

Seu objetivo foi concentrar o máximo de poder possível, o que conseguiu ao conquistar a hegemonia sobre os três poderes independentes, que caracterizam qualquer regime democrático.

A escalada

Baseado na glorificação de um nacionalismo xenófobo e na repulsa aos imigrantes, seu partido, o Fidesz venceu por ampla margem as eleições parlamentares de 2010. Orban tornou-se primeiro-ministro e continua sendo até hoje.

Durante os últimos nove anos do seu governo, o líder populista agiu de forma até legal para colocar sob seu controle os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Daí o escândalo da União Europeia com essa escapada autoritária de um dos 27 países-membros.

Orban nem se tocou.

Enquanto Merkel condoía-se da situação dos imigrantes, recebendo na Alemanha um milhão deles, o mandatário húngaro é implacável com gente que considera uma massa de estupradores e bárbaros, ansiosos para invadir o país e impor o islamismo.

Os imigrantes que viviam na Hungria foram expulsos e as pessoas que lhes dessem abrigo ou alimentos seriam penalizadas com multas pesadas.

Em 2015, Orban vibrou um golpe duro na imigração, construindo uma cerca nas fronteiras com a Sérvia e a Croácia para barrar a entrada daqueles fugitivos, que saíam do seu país em busca de uma vida livre da miséria e dos bombardeios.

No liberalismo, o nacionalismo é exaltado, com a repressão dos supostos maus hábitos da modernidade internacional, suas “leis licenciosas”, que, no dizer do primeiro-ministro, violavam as tradições cristãs da família húngara, pervertendo a juventude.

As questões sexuais são prioritárias para a moral governamental.

Contra os ditos desvarios que vinham do exterior, Orban perseguiu os membros LGBTQIA+ e a “perversa” influência das ideias liberalizantes da União Europeia, contrapondo a elas o virtuoso nacionalismo húngaro.

E, ao promulgar suas proibições, aproveitou o embalo para colocar os mendigos no índex dos criminosos.

Medidas desse jaez só foram possíveis graças ao domínio de Orban sobre o parlamento, onde seu partido, o Fidesz, e um aliado detinham 2/3 dos votos.

No regime democrático anterior à nova era, fora criada uma Corte Constitucional para impedir que futuros governantes violassem direitos fundamentais, arriscando assim a existência do Estado de Direito. Com esse espírito, estabeleceu-se que os juízes deveriam ser escolhidos por consenso, por um comitê que representava todos os partidos do parlamento.

Mas o majoritário Fidesz derrubou esta norma, atribuindo exclusivamente a ele, ou mais exatamente, a Orban, seu chefe, a escolha dos próximos juízes.

Oito anos depois, por aposentadoria ou morte de muitos juízes, o tribunal já estava sob o arbítrio de uma maioria de indivíduos nomeados pelo partido do governo, fato atestado por pesquisa da Universidade de Wisconsin.

As democracias do período pré-Orban acreditavam ser necessário impedir que um futuro líder político tentasse segurar todas as rédeas do Estado. Diante desse objetivo, fundaram três instituições independentes: o Escritório de Auditoria do Estado, que monitorava os gastos do governo; o Serviço de Processamentos do Estado, para supervisionar os processos criminais, e o Conselho Fiscal Nacional, dedicado ao exame da política econômica.

Orban livrou-se destes embaraçosos entraves, nomeando ex-parlamentares do seu partido para manter aquelas instituições sob seu controle. Previamente, todos os cidadãos que as vinham dirigindo, mesmo alguns ainda no meio de mandatos, foram demitidos e substituídos pelos apaniguados do primeiro-ministro.

Com o poder de criar e executar leis, e de julgar sua legalidade, Orban tornou-se assim um autocrata, mais um membro-titular desta honorabile societá, integrada também por Putin, Duda - da Polônia, Duterte - das Ilhas Filipinas e Mohamed Bin Salman - da Arábia Saudita, entre outros.

Ditadura midiática

Claro, a imprensa não ia deixar as estripulias da “nova era” escondidas da população. Previdente, Orban tratou de evitar as possíveis críticas. E o fez com muita eficiência.

Não foi à toa que a organização Repórteres Sem Fronteiras colocou seu governo entre os 37 inimigos da liberdade de imprensa em todo mundo, por sinal, o único europeu.

O incrível é que, ao contrário dos seus pares nesta lista, o líder populista raramente promoveu ataques físicos a jornalistas.

Não precisou. Prefere pressionar, lançar calúnias contra jornais independentes.

Criou um clima tão ameaçador que intimida os jornalistas e os torna censores de seus próprios textos. Orban, lógico, já excluiu os críticos dos órgãos da mídia estatal.

Ele comprou (muitas vezes com ameaças) veículos de imprensa independentes, forçando a despedida dos jornalistas insensíveis aos afagos do governo. Desde 2010, a radiodifusão do país, ligada ao governo, despediu 1600 profissionais.

Foi assim que o Fidesz se tornou dono de 80% da imprensa húngara. “No outono de 2018, quase 500 empresas de mídia pró-governo se fundiram numa holding para coordenar centralizadamente a sua cobertura (Deutsche Welle, 05/07/2021).”

Os raros veículos de mídia que continuaram independentes levam vida apertada, pois não recebem propaganda das empresas estatais e das empresas particulares fiéis a Orban, nem têm acesso às informações oficiais.

Dessa maneira, o governo construiu uma maciça máquina de propaganda dos seus feitos, acusações e princípios.

Orban é terrivelmente calvinista, enquanto sua esposa é convenientemente católica para cobrir todo o espectro do cristianismo, professado pela grande maioria da população do país.

De olho nesse público, o premiê iniciou em março de 2018 uma verdadeira cruzada contra os estudos de gênero (Le Monde,19/03/2018).

Baniu por decreto os estudos de gênero dos diplomas oficiais do país, eliminando uma área de conhecimento ensinada há 20 anos pela Universidade da Europa Central, fundada pelo seu inimigo, o bilionário húngaro-americano, George Soros.

O novo programa educacional conservador e nacionalista do chefe iliberal aconselha as mulheres a “ficarem em casa e fazerem filhos”, enquanto os novos livros obrigatórios de Educação Moral e Cívica doutrinam: “ter relações fora do casamento é um pecado”.

Nos últimos anos, porém, a imagem de Orban como protetor dos valores cristãos foi prejudicada por escândalos sexuais protagonizados por elementos do Fidesz.

Perigo!

Preocupado com a proximidade das novas eleições parlamentares, a se realizarem em 2022, o autocrata iniciou uma campanha contra os homossexuais, vistos pelo eleitorado mais conservador como pessoas indecentes, cujas inclinações sexuais desrespeitariam os valores da família.

Uma lei emitida pelo Fidesz proibiu casais gay de adotarem crianças. Foi ainda determinado que, numa família, o pai teria de ser um homem e a mãe, uma mulher.

Em 2021, Orban foi mais longe: lei contra a pedofilia foi apresentada por seus aderentes no parlamento, incluindo, de maneira estranha, restrições a programas culturais ou educativos que popularizassem o homossexualismo (sic). Por exemplo, que tratassem como normais pessoas com gêneros diferentes do registrado no nascimento.

A nova lei seria aplicada nas várias mídias e em cursos em geral. Suas restrições se estendiam até a educação sexual, a qual, aliás, só poderia ser ensinada por professores ou organizações aprovadas pelo governo. Uma tempestade de protestos, no país e no exterior, condenou a lei.

Argumenta-se que:

– ao incluir restrições à comunidade LGBT numa lei contra a pedofilia, o governo colocava o homossexualismo no mesmo patamar daquela prática criminosa;

– o princípio de igualdade entre as pessoas estava sendo violado pelas restrições.

Movimentos de combate à lei declararam temer que a lei estimulasse ataques físicos contra gays.

O parlamento europeu votou por larga maioria uma resolução condenando “nos termos, os mais fortes possíveis” a obra de Orban como uma clara brecha nos valores, nos princípios e na lei da Europa, apelando para que a Comissão Europeia lançasse rapidamente um processo contra o governo.

Ursula van der Leyden, presidente desse órgão, considerou a lei uma desgraça que “usa a proteção às crianças, com que todos estamos comprometidos, para severamente discriminar pessoas devido a sua orientação sexual (The Guardian, 08/07/2021)”.

O clamor foi tão alto que o autocrata cedeu em parte, concordando em realizar um referendo (sem data marcada) para a população se pronunciar. E, evidentemente, para ele avaliar até que ponto a nova lei poderia prejudicar (ou beneficiar) sua eleição.

Muito triste é que, mesmo sendo derrotado nas próximas eleições, Orban já tomou medidas legais para garantir sua segurança no futuro, até mesmo sua força política.

Orientado por ele, o dócil parlamento aprovou alterações legais extremamente radicais, tais como reescrever a constituição para lotar o tribunal constitucional com apaniguados, que foram acomodados também em postos-chave no Banco Central, na Procuradoria e na Agência de Vigilância da Mídia.

Completando essas manobras escusas, 11 universidades estatais foram transferidas para fundações semiprivadas, às quais o governo alocou bilhões de euros em recursos de propriedade pública – terrenos, edifícios, ações de empresas húngaras etc. Além de nomear fiéis asseclas para a direção destas entidades, com longos mandatos a cumprir.

O pior é que serão necessários 2/3 dos votos do parlamento para retirar dos seus altos postos esses indivíduos nomeados para constituir a salvaguarda do atual primeiro-ministro.

Em prazo curto, seria praticamente impossível.

Dá para sentir os graves prejuízos que sofrerá a justiça e a educação do país nas mãos de gente totalmente desqualificada, dependente de um chefe reacionário e retrogrado que os colocou nesses substanciosos galhos.

Quanto ao Honved, continuou extasiando multidões no mundo inteiro até 1956, quando o povo húngaro revoltou-se para ficar independente da União Soviética.

Nesta ocasião, os Mágicos Magiares jogavam no exterior.

A maioria dos jogadores recusou-se a voltar a uma Hungria sob as ordens dos seus opressores. Acabaram cedendo, mas não seus principais craques. Puskas, Czibor e Kocsis preferiram viver na Espanha, livres para escolher seus destinos.

Sem eles, o Honved não foi mais o mesmo, tornou-se uma equipe comum.
Assim acabou, mas permaneceu na saudade de um futebol romântico que hoje não existe mais.

E o húngaro, que no século passado frequentava as manchetes internacionais, hoje não é mais o Honved, é Viktor Orban.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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