Correio da Cidadania

A liderança norte-americana: será bom para os liderados?

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Joe Biden e Antony Blinken
Não sabemos como nasceu a ideia de que Deus conferiu aos EUA qualidades superiores às dos países comuns para liderá-los na busca pela paz, liberdade e justiça nas relações internacionais.

O historiador Gordon Woods tem uma teoria a respeito: “nossas crenças na liberdade, igualdade, constitucionalismo e bem estar das pessoas comuns vêm da era da Revolução. Assim como a ideia de que os norte-americanos são um povo especial destinado a liderar o mundo para a liberdade e a democracia”.

Seja como for, este conceito do excepcionalismo já está enraizado na sociedade, mercê da incansável repetição através dos anos por políticos, estadistas, escritores, líderes empresariais, pastores de TV, jornalistas, militares etc.

Por exemplo: em 1998, justificando uma possível intervenção militar no Iraque de Saddam Hussein, Madeleine Albright, ex-secretária de Estado do presidente Bill Clinton, disse: “se tivermos de usar a força é porque somos americanos; somos a nação indispensável. Nós temos a cabeça erguida e vemos mais longe no futuro do que as outras nações, e estamos vendo o perigo para todos nós aqui”.

Anos depois, Hillary Clinton, também ex-secretária de Estado, porém de Barack Obama, retomou o conceito de nação indispensável, pretensamente aceito universalmente: “nós somos a nação indispensável. As pessoas por todo o mundo olham para nós e seguem nossa liderança”.

Joe Biden vai por esse caminho. Em vários pronunciamentos antes da posse, o novo presidente proclamou seu objetivo de recuperar a insubstituível liderança estadunidense, corrompida por Donald Trump.

Admitimos aqui que a importância dada por Biden a essa ideia é preocupante. Talvez por lembrar os problemas causados por um outro país que se dizia de uma raça superior.

Início de trabalho

Claro, nada tem a ver. O governo Biden demonstrou as melhores intenções, confirmadas desde seus primeiros atos.

Apenas fazemos algumas reflexões sobre o perturbador significado da liderança norte-americana, conforme Anthony Blinken, secretário de Estado, do governo Biden, cargo que lhe confere a execução das políticas internacionais de Washington.

Em reunião no Comitê de Relações Exteriores do Senado ele afirmou: “quando não estamos participando (das soluções), quando não lideramos, acontece uma de duas coisas: ou algum outro país tenta tomar nosso lugar, mas provavelmente não de uma maneira que avance nossos interesses ou valores, ou ninguém o faz, e então você tem o caos”.

E completou: “de qualquer maneira, isso não serve ao povo norte-americano”. Ok, então qualquer país estrangeiro que tente assumir o papel de líder mundial vai, provavelmente, engavetar “o avanço dos nossos valores e interesses”. O que, concluiu Blinken, seria mal para o mundo e para os estadunidenses.

Os valores referidos são os normais nas democracias modernas – liberdades, direitos humanos, antodeterminação, direito a vida.

Apesar de Blinken sustentar que na esfera internacional eles só seriam garantidos sob a liderança dos EUA, o projeto da União Europeia nasceu sob a liderança da França e da Alemanha e respeita até hoje os valores democráticos.

Por outro lado, as ações dos EUA no exterior nem sempre se pautam por eles.
Mais de 100 recomendações de órgãos da ONU condenaram Israel por violações dos direitos humanos, da soberania alheia, das liberdades, do direito internacional ou de outros princípios básicos das sociedades modernas. Citamos alguns: a volta de Israel às fronteiras de 1967; o fim da ocupação militar; um stop na expansão dos assentamentos; a condenação da anexação de 1/3 da região; a interrupção do bloqueio de Gaza; a independência da Palestina e a investigação do massacre de manifestantes palestinos na fronteira de Gaza.

Todos eles foram ignorados pelo regime sionista. Nenhum foi concretizado por ações da ONU que o obrigasse a se comportar civilizadamente. Os EUA, aliado a Israel no Bem e no Mal, vetou todos.

Deixando “nossos valores” de lado, vamos tratar da importância dos “nossos interesses.” As eventuais lideranças estadunidenses não os levam em conta, lamenta Blinken.

Mas e se os interesses de país líder e dos países liderados não coincidirem, ou forem opostos? Como é que fica?

A guerra do 5G

Veja como a liderança dos EUA de Trump tratou seu conflito de interesses com os países interessados na tecnologia 5G.

A tecnologia 5G é a próxima geração de rede de internet móvel. Recentemente criada, todos os países estão se movendo para substituir pela 5G suas estruturas superadas de 3G ou 4G.

Três empresas disputam este fabuloso mercado: a Huawei (chinesa), Erikson (sueca) e a Nokia (finlandesa).

A Huawei estaria melhor posicionada pois seu preço é o mais baixo, oferece o melhor financiamento e sua instalação nas empresas não implica em custos. Isso porque, como a maioria delas já adota a tecnologia 3G ou a 4G da Huawei, seria fácil substituí-la pela 5G da empresa chinesa, sem maiores gastos.

Em sua guerra fria contra os chineses, Trump não admitia que a Huawei ganhasse essa concorrência. Para ele equivaleria a uma dura derrota para a China, seu inimigo número 1.

Como nenhuma empresa estadunidense tinha condições de entrar nessa parada, Trump defendeu as 5G europeias de forma nada democrática: pressões sobre os países interessados na compra. Além de insinuar possíveis retaliações econômicas, ele afirmou que a 5G da Huawei poderia espionar para o governo chinês e sabotar as infraestruturas onde estivesse instalada.

Para a segurança geral, a 5G da Huawei tinha de ser banida! Ou...

A empresa chinesa negou, é claro, e lembrou que as lambanças a ela atribuídas jamais aconteceram em muitos anos, nos muitos países que trabalham com as tecnologias Huawei 4G e 3G.

Várias nações, temendo o enorme poder dos EUA, cederam a Trump, inclusive o Reino Unido. Oliver Dowden, secretário de Estado para Assuntos Digitais, admitiu que a exclusão da companhia chinesa atrasará de dois a três anos o desenvolvimento da rede de alta velocidade no país. E ainda trará custos de 2 bilhões de libras (Deustche Welle, 20-7-20220).

Histórico sujo

Outro caso semelhante aconteceu durante a construção do gasoduto Nord Stream2, da russa Gazprom, que irá atender às necessidades de gás da Europa, especialmente da Alemanha.

Ora os EUA estão interessados em ganhar esse vasto mercado para o gás liquefeito norte-americano. Por isso, Trump apelou para a Europa sair fora da construção compartilhada do gasoduto Nord Stream2.

Por que? Se o “maligno” projeto da Gazprom não fosse bloqueado, os países do Velho Mundo dependeriam totalmente do gás russo e se tornariam submissos a Putin. Não colou, era visivelmente papo furado.

Irritado, The Donald partiu para o jogo bruto: usou sanções para forçar as empresas diretamente envolvidas no projeto a se retirarem, impedindo assim a conclusão da obra. Quem resistisse seria proibido de realizar negócios nos EUA e teria bloqueados seus bens e valores existentes no território norte-americano.

As proibições atingiriam 120 empresas, de 12 nações europeias. E Mike Pompeo rugiu: “Agora, ou vocês caem fora, ou sofram as consequências!”

Os dirigentes europeus mostraram-se indignados, diante desta ilegal intervenção nas decisões de suas empresas. Mas não teve jeito. Sentiram-se forçados a paralisar o projeto.

Depois de um ano, com ajuda do governo alemão, a Gazprom contornou as sanções e o gasoduto voltou a ser construído.

Nesses casos, os interesses dos EUA contrariavam os interesses de outros países. Os tão caros valores norte-americanos de livre comércio e respeito à soberania foram desprezados pelo governo Trump no uso que fez do poder da liderança estadunidense para pressionar pelo interesse de empresas do seu país.

É verdade que Donald Trump é uma figura única, não dá para imaginar que uma praga dessa malignidade possa desabar novamente sobre os EUA e o mundo em geral.

Pode ser difícil, mas não impossível. A História costuma dar muitas voltas.
Aliás, não foi só Trump que realizou desastrosas ações internacionais sob o guarda-chuva da liderança dos EUA. Entre muitos exemplos de malasartes praticadas por governos anteriores a Trump, lembramos a escandalosa Guerra do Iraque.

Certamente os valores da sociedade norte-americana estavam ausentes desta guerra absolutamente injusta, que matou cerca de um milhão de pessoas (soldados e civis), destruiu a infraestrutura do Iraque e manteve esse país ocupado por tropas estrangeiras durante cerca de oito anos.

Os interesses políticos de Bush foram atendidos, pois atacando um governo pintado como agente do terrorismo, ele faturou em seu proveito a indignação do povo causada pelo atentado às Torres Gêmeas.

Foi bom para ele, mas não para os EUA, cuja imagem internacional sofreu pesados danos por ter lançado uma guerra alegando motivos comprovadamente falsos.

No entanto, os fatos são fatos: Trump passou. Agora quem governa é Joe Biden.
A diferença e entre os dois é abissal.

Admita-se que Biden não irá conscientemente exercer a liderança de maneira egocêntrica, violenta e desastrosa, como Trump. Ele parece ser um estadista capaz de atuar na área internacional de forma impecável, que já demonstrou apego aos direitos humanos e às leis internacionais.

Só que as decisões dos presidentes dos EUA são influenciadas, com maior ou menor força, por outros entes: os lobbies pró-Israel; a indústria de armamentos; o Pentágono: os produtores de soja, carne, aço, combustíveis e outros bens; a imprensa; os congressistas democratas e até os republicanos, para citar alguns dos mais poderosos. Nem sempre os interesses desses grupos batem com as necessidades dos demais países.

Não dá para garantir que Biden respeite sempre os valores democráticos, resistindo a pressões internas egocêntricas, e agindo na área externa de acordo com o que dele espera a opinião pública internacional.

As dúvidas não terminam aí

Há ideias de Blinken, axiomáticas na sociedade norte-americana, cuja aplicação suscita dúvidas e até contestações, especialmente dos setores progressistas que o apoiam.

Como sua postura diante de Israel, a quem ele prodigaliza declarações de amizade irrestrita. Mas não tão irrestrita: Biden é favorável à independência da Palestina e contrário à anexação israelense de 2/3 da região.

Talvez por isso, os dirigentes palestinos veem nele o equilíbrio e a isenção necessários para julgar sua causa. Essa confiança confere à atual liderança norte-americana boas condições para orientar as negociações de paz entre os dois lados.

Já a União Europeia seria a liderança mais eficiente para mediar o affair EUA-Irã. Embora seja parte na questão (defende o Acordo Nuclear), sua atuação tem sido conciliadora, sem pender para qualquer dos adversários.

Não pensemos que os europeus querem a paz no Irã, pensando somente no bem estar do povo iraniano.

O que mais lhes interessa é a abertura de um mercado de 80 milhões de habitantes, pronto a receber de braços abertos os investimentos dos países do Velho Mundo.

Parafraseando Foster Dulles, chanceler no governo Eisenhower: “os países não têm amigos, têm interesses”.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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