Correio da Cidadania

A aposta de Biden

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Kamala Harris endorses one-time rival Joe Biden's White House bid - Reuters
Há apenas dois meses e meio das eleições (esse artigo foi escrito em 18 de agosto), Biden parece ter sua vitória assegurada.

Na FiveThirtyEight, que computa a média dos resultados dos institutos de pesquisa mais respeitados, ele vence Trump no colégio eleitoral por 212 pontos versus 115. Para conquistar a presidência, ele precisará registrar pelo menos 270 pontos.

Se conseguir como se espera, Biden deverá contar com um Congresso amistoso pois os democratas aparecem nas pesquisas com 214 prováveis assentos ganhos na Casa dos Representantes, bem à frente dos 190 onde seus rivais do GOP (Great Old Party) estão na frente, enquanto no Senado o placar está apertado 46 x 45 a favor dos seguidores de Trump. A situação ali está indefinida, mas as chances democratas são muito boas, seus candidatos estão crescendo em vários estados onde os candidatos republicanos lideram por ora.

Nos votos individuais, Biden também vem levando a melhor: 51,2 versus 42,8%.

Focando agora o RealClearPolitics, que também tira uma média dos principais institutos de pesquisa, o panorama continua agradável para o Partido Democrata.

Nos assim chamados estados decisivos, por terem o maior número de votos eleitorais, Trump, em 2016, deixou Hillary Clinton falando sozinha ao chegar à vitória em 11 deles, contra meros 3 da adversária. Hoje é bem diferente, Biden vem deixando Trump comer poeira, liderando por 10 x 4.

Pensando em garantir sua vitória, Biden escolheu a senadora Kamala Harris para sua candidata a vice-presidente. Ela o ajudaria principalmente junto às mulheres e negros, por ser bem vista nesses dois segmentos. Além disso, graças às suas posições de centro e pró-Israel, teria boas chances de agradar, respectivamente, os eleitores moderados e judaico-americanos, de centro.

Finalmente, se sairia bem na consolidação dos votos dos jovens democratas, pois a senadora é favorável à boa parte da pauta progressista deles.

De um modo geral, a imprensa estadunidense considerou Kamala um grande reforço para Biden. Embora seja opinião respeitável, a escolha não parece assim tão vantajosa.

Entre os votantes negros e mulheres, ela não deve acrescentar muito à candidatura Biden, que já é apoiado maciçamente nesses setores, como as pesquisas eleitorais têm comprovado.

Se você adicionar mais água num copo quase cheio, ele vai matar sua sede da mesma maneira.

Não está visível como os eleitores moderados do Partido Democrata, que o escolheram nas primárias, ficariam mais sensibilizados pelo ex-vice de Obama só porque Kamala Harris é sua companheira de chapa. Afinal, as imagens dos dois são muito semelhantes.

Embora os jornalistas ianques provavelmente estejam certos, há algumas reflexões a fazer.

Logo após a renúncia de Bernie Sanders à sua pré-candidatura, Biden preocupou-se em conseguir a adesão da ala esquerda do partido (os progressistas) liderada pelo senador por Vermont.

A maioria deles é jovem e bastante numerosa, haja visto a votação obtida por Sanders nas primárias.

Sem demora, o senador declarou seu apoio total à candidatura oficial dos democratas, pedindo que seus seguidores fizessem o mesmo. Isso será crucial para a vitória de Biden.

Na eleição de 2016, os jovens entre 18 e 29 anos representaram 15,70% dos votos, porcentagem que possivelmente será superada nas eleições deste ano devido à grande participação deles nas primárias presidenciais.

A maior parte dos eleitores desta faixa é democrata. E a maior parte dos jovens democratas perfilha ideias progressistas, anti-establishment.

Nos EUA a abstenção nos pleitos presidenciais costuma ser alta. No último, foi maior do que o normal. Nada menos do que cerca de 44% dos eleitores ficaram longe das urnas. Atribui-se boa parte da abstenção aos jovens.

Um dos principais motivos desse desinteresse foi a falta de confiança em madame Clinton por grande número dos adeptos de Bernie Sanders. Tudo indica que a maioria deles preferira aproveitar o feriado de modo mais agradável do que indo votar em quem era contrária a seus ideais.

É fato que Biden não tem os dúbios comprometimentos e posições de Hilary. É fato também que, enquanto o apoio de Bernie àquela senhora foi pouco mais do que formal, ele está fortemente envolvido na campanha de Biden.

Convicto do peso da esquerda nas bases do partido, Biden procurou entender-se com Bernie Sanders. O resultado é que os dois concordaram em muitos pontos importantes. Saíram abraçados da reunião.

No decorrer das negociações com diversos outros grupos, Biden foi aos poucos recuando, embora ainda não de forma marcante.

Ele parecia certo de que, sendo Trump para os jovens progressistas um misto de Netanyahu com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, eles fariam de tudo para derrotá-lo, mesmo renunciar a parte de suas ideias mais à esquerda.

Foi por isso que, na discussão da sua plataforma eleitoral, não hesitou em mandar vetar o direito dos palestinos viverem livres da ocupação estrangeira. Atendeu a lobbies de Israel, indignados pelo uso do termo “ocupação estrangeira”, que consideram uma retomada do que era seu, conforme as Escrituras.

E assim, pela maioria dos votos, os representantes de Biden no comitê da redação da plataforma derrubaram esta posição e ainda outras igualmente apimentadas como o uso por um futuro governo Biden da doação norte-americana de 38 bilhões de dólares às forças de Israel para forçar o governo de Jerusalém a respeitar os direitos humanos dos palestinos e as normas do direito internacional. O mesmo aconteceu na votação de outros itens e agrados aos progressistas do partido como o apoio ao BDS, por exemplo.

O argumento aplicado pelo pessoal de Biden foi a necessidade de renunciar a tais pontos controversos para preservar a unidade do partido, evitando-se problemas com os judeus americanos, historicamente eleitores dos democratas.

Não sei se havia vultosas dotações de campanha por trás desse discutível dogma. Não creio que a unidade democrata seria ameaçada por uma possível oposição dos judeus dos EUA a condenações de certas injustiças praticadas pelo governo israelense.

Ultimamente a ação dos lobbies pró-Israel, de incondicional apoio aos interesses desse país, refletem, sim, os interesses de grande parte dos judeus da América, porém, só dos muito ricos; não da maioria da comunidade.

De fato, analisando as pesquisas, verifica-se que já não se fazem judeus americanos como antigamente. Exemplos não faltam.

Pesquisa promovida pelo movimento liberal JStreet revelou que 2/3 dos judeus dos EUA se opõem à retirada de Trump do acordo nuclear com o Irã. Como esse país não é exatamente amigo do país sionista, a posição judaico-americana é um indício de que, de eternos yes men de Israel, os membros da colônia estão se tornando críticos das políticas desse país.

Lembre-se que Netanyahu empenhou-se tanto em pressionar Obama a não assinar o acordo nuclear, que veio defender sua rejeição, em discurso no próprio Congresso norte-americano.

Em seu artigo, “A Comunidade Judaico-Americana e a Eleição Presidencial de 2020”, publicado em 31 de janeiro deste ano, Lara Friedman, apresenta uma série de conclusões baseadas em pesquisas realizadas em 2019:

– 64% dos judeus americanos revelaram-se favoráveis à “solução dos 2 Estados independentes” na Palestina;

- 66% defendiam o desmantelamento de assentamentos de Israel na Cisjordânia e em Jerusalém, que Trump legitimou;

– quanto à mudança da embaixada americana para Jerusalém quase 47% eram contrários;

– 39% opunham-se ao reconhecimento da anexação das terras sírias de Golã pelo governo Trump.

Citamos ainda outra pesquisa, na qual 59% dos respondentes (judeus)
discordavam da política de The Donald em relação à Palestina, pois consideravam que “favorecia os israelenses exageradamente”. Era, portanto, uma posição pró-palestinos, ao contestar de forma inequívoca o governo israelense, que o aplaudira delirantemente. Ressalte-se que, na pesquisa, estadunidenses em geral compartilharam essa posição dos judeus do país, embora em porcentagem ligeiramente menor.

Quanto aos grupos, digamos, tradicionalistas, do Partido Democrata, embora possam discordar de muitas posições progressistas, dificilmente deixariam de apoiar Biden, caso elas constassem da plataforma partidária.

Em primeiro lugar porque anseiam em voltar a participar do poder. Em segundo, porque sabem que Biden é moderado como eles. Em terceiro, porque muitos, talvez por oportunismo, embarcaram em algumas ideias dos progressistas, por estarem “na moda”, crescendo significativamente no partido.

Resumindo, esta é a aposta democrata na corrida da eleição presidencial:

a) Kamala Harris candidata a vice para fortalecer a figura de Biden junto aos eleitores negros e mulheres;

b) os jovens progressistas contidos para não prejudicar a penetração em bases tradicionais e, presumivelmente, no eleitorado judaico-americano. Eles estariam fatalmente integrados na campanha presidencial por sua radical oposição a Trump e aceitação de Biden e Kamala Harris, como políticos próximos às suas ideias;

c) a eleição de Biden apresentada como a grande oportunidade para se livrar a América do mal maior, o odiado Donald Trump.

Esta estratégia está sendo vista pela opinião pública como vencedora, corroborada pelos seguidos resultados das pesquisas.

No entanto, convém pensar um pouco. O fato de a maioria dos norte-americanos garantir nas pesquisas que estão com Biden e não abrem, não garante que todos votarão no candidato democrata, em 9 de novembro.

O perigo é os jovens progressistas democratas não se sentirem motivados para ir às urnas.

Poderão até ser muitos, se acharem que Biden pouco fará para reduzir o poder do establishment político e econômico, defendendo as reformas radicais da sociedade que eles exigem.

Esses jovens esperavam que a chapa Biden-Harris respeitasse posições assumidas por grande parte dos eleitores do partido em pautas progressistas, como: saúde para todos, via iniciativa estatal; educação gratuita, do maternal à universidade, e pesada taxação dos bilionários. Biden e Kamala Harris já se pronunciaram nesses temas, porém, de forma considerada prudente para alguns, frágil para outros.

Em política internacional, são preocupantes as constantes declarações de amor a Israel vindas de Joe Biden e de Kamala Harris, que pouco falam nos sofrimentos palestinos. É fato que os dois derrapam, ficando do lado contrário em alguns pontos vitais da agenda dos jovens da ala progressista do Partido Democrata.

Mas também é fato que, tanto Biden quanto Harris, identificam-se com esse grupo em questões importantes, voltando-se contra interesses israelenses.

Avaliando tudo, aposte na vitória de Biden, mas não de barbada.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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