Correio da Cidadania

Licença para matar negros

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Últimos antecedentes

Por volta de meia noite do dia 13 de março deste ano, em Louisville, Breonna Taylor, técnica em emergências médicas, foi morta em sua própria casa por três agentes da polícia.

Depois de arrombarem a porta, eles dispararam 20 vezes e em 8 atingiram mortalmente a jovem. Os agentes juram que haviam antes batido na porta e se identificado, mas foram recebidos à bala pelo namorado de Breonna, o qual disse ter atirado, pensando que os arrombadores eram gângsteres.

A família desmente a polícia: vizinhos testemunharam que só ouviram ruídos de porta sendo arrombada e de tiros. Os agentes não teriam previamente se identificado.

Breonna era negra. Em 28 de maio, na mesma cidade de Louisville, uma manifestação pacífica em protesto pela morte da jovem foi interrompida por uma saraivada de balas, às 23:30 horas.

Sete homens foram feridos, um deles acabou morrendo. Os policiais alegam que reagiram a tiros partidos dos manifestantes, que negam. O protesto tornou-se violento, com edifícios, estátuas, automóveis e lojas depredados. Nos três dias seguintes, surgiram novas manifestações condenando o racismo que assassina. A rádio WLKI, de Louisville, garante que foi a polícia quem disparou, ao contrário do que afirmam os agentes. (VOX, 01-06-2020).

O estopim

Alguns dias antes, na cidade de Minneapolis, um policial havia assassinado o negro George Floyd, pressionando sua garganta com o joelho durante quase 9 minutos.

Floyd gritou que não conseguia respirar, mas o agente, Derek Chauvin, continuou pressionando, diante da indiferença de três colegas que o acompanhavam.

Assim, num curto espaço de tempo, foram cometidos três atos de extrema violência policial, todos vitimando pessoas negras. Foi demais para a comunidade afroamericana.

Manifestações de protesto explodiram por dezenas de cidades norte-americanas, muitas com quebra-quebras e saques, praticados por pequenos grupos. Logo, jovens estadunidenses brancos e latinos aderiram em massa.

Até hoje (5 de junho), durante dez dias seguidos, a população negra e seus jovens aliados não saíram das ruas de 340 cidades dos EUA.

As manifestações são pacíficas. Às vezes, há violências esparsas, praticadas por poucos, interessados na confrontação, em geral, reprimidas brutalmente pelas polícias locais.

O presidente Trump tenta tirar partido da situação, se apresentando como defensor da América contra as passeatas destruidoras, que, diz ele, seriam lideradas pelos chamados antifas (indivíduos radicais, adeptos do caos).

Mas o povo norte-americano não se deixou iludir: em recente pesquisa da Reuters/IPSOS, 73% da população declararam-se a favor dos manifestantes; só 12% os reprovaram.

Há vários séculos, as vinhas da ira vicejam no íntimo dos negros norte-americanos, adubadas pelos crimes raciais. É uma herança de dor e revolta reprimida, que se transmite de pai para filho, através dos anos.

Depois de mais de 200 anos de escravidão, os negros foram libertados com a vitória do governo Lincoln na Guerra Civil, contra estados escravocratas do Sul (1860-1864)

Sua satisfação durou pouco. Em 1877 foi criada a Ku-Klux-Kan, com a finalidade de aterrorizar os negros. A partir daí, eles passaram a sofrer todo o tipo de brutalidades - desde espancamentos até linchamentos – com plena aceitação pela maioria dos brancos dos estados sulistas.

Entre 1877 e 1950, 4,4 mil pessoas foram linchadas no país, de acordo com a organização “Iniciativa por uma Justiça Igualitária“.

A maior parte das vítimas era negra. Entre 1882 e 1889, a proporção era de 4 negros para cada branco. Posteriormente, entre 1890 e 1900, aumentou para 6 negros para cada branco. Depois disso, chegou a 17 para 1 (Portal Gledeses, 02-05-2018)”.

Depois da segunda guerra mundial (1939-1945) à violência das turbas foi acrescida pelo racismo legal: leis e decisões judiciárias que discriminavam os negros, especialmente no sul.

Nos anos 60, graças aos protestos de centenas de milhares de combatentes em favor da igualdade, inclusive muitos brancos, leis federais anularam as leis racistas. Mas o sistema continuou sendo injusto para os negros.

Referindo-se aos eventos em Louisville, o conselheiro municipal Dorsey comentou: “é uma revolta contra o sistema no qual as pessoas se sentem oprimidas”.

Sua reação vem sendo cada vez mais violenta, diante das iniquidades que lhes são impostas, acumuladas desde os tempos da escravidão.

Geralmente se atribui ao racismo as causas do comportamento brutal dos policiais estadunidenses em relação aos negros.

Excludentes de ilicitude

Em artigo publicado no The Conservative (30-05-2020), o jornalista Jim Bovard sustenta que as principais razões são outras. “Ao se focar nas tendências racistas arrisca-se também a obscurecer o problema fundamental: a Suprema Corte efetivamente tem dado à polícia licença para atirar, agredir ou falsamente prender cidadãos desafortunados por toda a nação”.

Bovard explica que, para conter as violências praticadas pela Ku Klux Klan contra negros sulistas, o congresso emitiu o Ato de Direitos Civis, em 1871, que autorizava processos contra pessoas que, agindo em nome de leis, causassem uma privação de qualquer direito assegurado pela Constituição.

“Mas”, o jornalista acrescenta, “em uma série de decisões a partir de 1967 a Suprema Corte desentranhou lei permitindo que a polícia e outros agentes do governo alegassem que agiram em ‘boa fé’ ao violarem direitos de cidadãos. E, em 1982, a mesma Suprema Corte garantiu a oficiais do governo imunidade, a menos que tivessem violado claramente normas legais estabelecidas ou direitos constitucionais dos quais uma pessoa de bom senso deveria estar a par”.

E a corte não ficou nisso. Decidiu que oficiais do governo (policiais ou fiscais) faziam jus à “imunidade qualificada”, a menos que um tribunal anterior o tivesse condenado exatamente pelo mesmo tipo de “comportamento ilegal”.

Para o articulista no The Conservative: “escandalosos abusos policiais se tornaram normais na vida norte-americana moderna”.

Só para dar uma ideia, em oito cidades importantes dos EUA se registram anualmente mais casos de violências policiais do que o total de crimes praticado por cidadãos comuns.

Afirmando que as cortes tem aprovado imunidade qualificada para policiais que cometeram violências sem motivo justo, ele cita uma série de casos verídicos: “atirar em pessoas sem motivo, atiçar cães contra um homem que estava se rendendo, dar um choque elétrico num motorista que parou para colocar o cinto de segurança e mandar um jovem se desnudar e se masturbar para que eles, policiais, pudessem fotografar seu pênis ereto”.

Jim Bovard considera que essas falhas no sistema legal não têm, necessariamente, algo a ver com racismo, pois brancos também são vítimas de agentes violentos.

Ele cita dois exemplos:

- caso referido em 2019 pelo colunista da revista Reason, Jacob Sullum: a corte de apelação federal garantiu imunidade qualificada a agentes da polícia de Fresno, Califórnia, que roubaram 225 mil dólares de um homem de negócios branco, quando cumpriam mandado judicial.

– comentário do Washington Post sobre as estranhas posições de Amy Klobuchard (ex- pré-candidata a presidente pelo Partido Democrata), quando procuradora-chefe do estado de Minnesota, onde Floyd foi assassinado. Era chamada de AmyKloCop (cop é policial) porque , no exercício de suas funções, “se recusava a apresentar denúncias em mais de duas dúzias de casos, nos quais policiais tinham matado pessoas, enquanto que, por outro lado, levava a juízo de forma agressiva delitos menores praticados por cidadãos comuns”.

Trump isolado

O racismo é um motivo tão grave quanto os excludentes de ilicitude que beneficiam policiais infratores.

Isso parece evidenciado por este dado estatístico: no período 2013-2018, o número de negros vítimas de violências policiais nos EUA foi duas vezes maior do que o dos brancos. Se o racismo policial não fosse marcante, deveria ser o contrário, pois 61,7% dos norte-americanos são brancos e apenas 12,9% são negros.

Embora possam ser reprováveis saques e destruições praticados por alguns pequenos grupos, os protestos de multidões de negros e jovens brancos, que vêm impactando a sociedade, estão tendo efeitos positivos.

O olhar da opinião pública está claramente focando de forma especial na injusta opressão imposta pelo sistema aos negros.

Só os círculos mais reacionários, como o presidente Trump e áulicos, promovem a repressão, não o entendimento.

Até mesmo senador republicano Lindsey Graham, conhecido líder direitista, presidente do comitê judiciário do Senado, foi fortemente atingido: “o vídeo do assassinato de Floyd é terrível de assistir e eu imagino quantas pessoas já morreram sem (haver) vídeos”.

E Graham prometeu que seu comitê irá promover uma audiência para analisar a violência policial sobre negros: “Por que essa aberração aconteceu? Com quanta frequência?”

Por sua vez, a democrata Nancy Pelosi, presidente da Casa dos Representantes, informou que os deputados já estavam discutindo as intervenções da Suprema. Corte que excluía muitos pontos do Bill of Rights (Lei dos Direitos) e assim davam sinal verde para policiais racistas abusarem das brutalidades, certos de sua imunidade.

Enquanto estas ações legislativas não se concretizam, já há efeitos práticos dos protestos em massa.

Houve uma tentativa de suavizar o processo do policial criminoso quando o exame do corpo de delito de Floyd concluiu que ele não morrera pelo sufocamento, mas por moléstias pré-existentes. Portanto, negava relação direta entre a ação do agente e o assassinato, o que indicaria um crime menor.

Mas as pessoas próximas do afro-americano assassinado exigiram outro exame por um médico sem qualquer ligação com o departamento de polícia.

Foram atendidas. E a nova necropsia revelou que efetivamente os 9 minutos da sufocante abordagem policial foram a causa de sua morte.

A procuradoria aceitou essa conclusão e alterou o indiciamento anterior, de crime culposo para doloso, o que aumentou a pena prevista de até 15 anos de prisão para até 40 anos.

Espera-se que o Congresso também atue positivamente. Legislações poderão ser aprovadas derrubando a qualificação de imunidade, gozada por policiais autores de crimes contra pessoas.

Mas o racismo vai continuar, com reflexos inevitavelmente malignos, a menos que se faça também uma reforma estrutural dos departamentos de polícia e uma reeducação dos seus membros, ensinando-os a respeitar os direitos civis, tanto de brancos quanto de negros.

Será uma tarefa envolvendo muita gente, durante muitos anos, com resultados incertos, pois os preconceitos raciais se acham profundamente enraizados no íntimo daqueles que hoje são os braços da opressão do sistema.

No entanto, a união dos cidadãos afro-americanos com os jovens brancos e latinos está mostrando força, capaz para mudar a consciência do seu país.

Esta lição de Martin Luther King me parece muito adequada para fechar este artigo: “A escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio, só o amor pode fazer isso”.

 

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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