Correio da Cidadania

União Gantz-Netanyahu expõe racismo israelense

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Autoritarismo, corrupção, abuso do poder, perseguição a adversários e a minorias... Por estas e outras, uniram-se contra Netanyahu, o general Benny Gantz, Yair Lapid e Moshe Yalon, líderes respectivamente dos partidos Resilience, Yesh Atid e Telem, formando a Coalizão Azul e Branco (as cores da bandeira de Israel).

Gantz foi escolhido para ser o candidato da coalizão a primeiro-ministro de Israel. Apesar do programa do Azul e Branco defender uma série de ideias democráticas, seu principal objetivo era derrotar o premier Netanyahu, chefe do Likud, considerado responsável pelos principais problemas do país.

Algo tão pernicioso que seria indiciado pelo procurador-geral como incursão em crimes de corrupção, tráfico de influências, fraude e aceitação de subornos (como posteriormente acabou sendo).

Durante as manifestações eleitorais, Gantz e seu grupo colocaram o governo Netanyahu como autêntico coveiro da democracia. Até que tinham razão.

No último ranking anual da insuspeita Freedom House, Israel ficou entre as 25 nações cujo regime democrático encontrava-se em declínio, no seu caso, “invulgarmente elevado para uma democracia estabelecida”.

Justificando seu veredito, a Freedom House tascou a culpa no premier Netanyhau, que governava o país desde 2009.

Por sua vez, o muito esperado Annual Democracy Report, do V Dem Institute, da Suécia, classificou Israel como o 35º país mais corrupto do mundo, ligeiramente na frente de Botswana, que não é exatamente uma nação famosa pela integridade dos seus políticos.

Mesmo tendo sido realizados dois pleitos, nem Netanyhau, nem o general Gantz, conseguiram maioria entre os parlamentares eleitos, o que é exigido para poderem assumir o governo.

Depois da terceira eleição, como Gantz contaria com uma pequena maioria de deputados eleitos, o presidente Rifkin deveria convidar o general para tentar formar um ministério palatável ao Congresso.

Mas Gantz declinou da honra, preferindo aliar-se ao até então maligno Netanyahu, com um acordo no qual o líder do Likud permaneceria primeiro-ministro durante 18 meses, findos os quais assumiria Gantz por mais 18 meses. Os ministérios seriam repartidos em partes iguais entre os partidos das duas partes. No período do governo de Netanyahu, Gantz seria vice-primeiro ministro e ministro da Defesa. O inverso ocorreria no período Gantz.

Dá para imaginar o escândalo. O defensor da democracia unindo-se a quem ele acusava de estar destruindo a democracia.

Uniões e rupturas

Vermelhos de justa raiva, Lapid e Yalon, os outros chefes do Azul e Branco, saíram da coalizão, dizendo o diabo do errático Gantz. E seus partidos declararam que integrariam a futura bancada da oposição.

Por outro lado, juntaram-se à união Netanyahu-Gantz diversas pequenas agremiações e o Labor - o partido dito socialista, dos fundadores de Israel.

Na reunião em que esse passo foi dado, os adesistas ganharam, com 62% dos votos.

E Peretz, o líder do Labor, mostrou sua veia humorística ao afirmar: “Esta noite, nós vencemos... Para mudar a agenda do governo e a política econômica para o socialismo democrático (Times of Israel, 27-04-2020)”.

Foi um show de cinismo. Só mesmo alguém sem vestígios de inteligência iria acreditar que os únicos três deputados do Labor eleitos poderiam influenciar os rumos da coalizão direitista, que nos primeiros 18 meses terá Netanyahu como premier e metade dos ministérios nas mãos do Likud e aliados ainda mais direitistas.

Reagindo diante da estranha opção do Labor, sua deputada eleita, Merad Michaeli, acusou Peretz e seu parceiro Shmuli de terem perpetuado “o pior dos roubos políticos, roubando os votos dos israelenses que votaram neles”.

Por sua vez o esquerdista partido Meretz, que também apoiava Gantz, não engoliu a adesão ao grande inimigo, Netanyahu, ingressando na oposição.

Seu líder, Nitzan Horowitz, apelou aos membros do Labor, que não aceitavam a virada direitista, para entrarem no Meretz, garantindo que o partido “não virará as costas para vocês e não trairá sua confiança”.

Como todos que viam em Netanyhau o grande inimigo do povo, e em Gantz a esperança de derrotá-lo, os palestinos israelenses se sentiram traídos. No efeito colateral da mudança, a Lista Unida, coalizão dos quatro partidos da comunidade palestina de Israel, sofreu enorme prejuízo.

Os palestinos representam 20% da população israelense. Os 13 anos da era Netanyahu lhes deixaram uma herança desoladora. “Os palestinos israelenses têm vidas segregadas em cidades subfinanciadas com transporte deplorável e escolas inferiores”, admite a conservadora National Review, edição de 25-10-2019.

E não só isso: são penalizados por leis e regulamentos racistas e pela discriminação por parte da sociedade e do governo, que traz consigo altos índices de desemprego, maior criminalidade e serviços públicos inferiores.

Antes das últimas três eleições, os palestinos israelenses tinham perdido suas esperanças nos governos do país, daí vinha sendo cada vez menor seu comparecimento às eleições.

Para a maioria, seus partidos árabes preocupavam-se muito com os problemas dos palestinos da Cisjordânia ocupada, deixando os problemas deles, cidadãos de Israel, em segundo plano.

Embora solidários com o sonho de independência dos seus “irmãos” eles se sentiam integrados em Israel e, portanto, interessados principalmente em conseguir melhores condições de vida no país onde viviam.

Entusiasmados com a possível derrota de Netanyahu, o algoz do seu povo, três partidos palestinos, o Hadash, o Ta’al e o Ra’am, formaram a Lista Unida para disputar as eleições parlamentares, participando na campanha de Benny Gantz.

Os partidos da Lista Unida, por sua vez, influenciaram os cidadãos palestinos de Israel a votarem em massa por Gantz, que condenava as discriminações do governo Netanyahu à população de origem árabe, propondo soluções para o problema.

Se em relação à Cisjordânia ocupada, o líder do partido Azul e Branco somava-se às posições agressivas de Netanyahu, mostrava-se favorável aos palestinos de Israel.

De fato, Gantz garantia: “Nossas portas estarão abertas para todos: direitistas, centristas, esquerdistas, religiosos e seculares, judeus e não-judeus (Reuters, 30-1-2019)”.

Isso animou os palestinos do país, ainda aturdidos pela lei de Netanyahu que os considerava cidadãos de segunda classe. Segundo o então primeiro-ministro, ”Israel é o Estado-nação do povo judeu e somente do povo judeu”.

E o melhor de tudo: Gantz não ficou nessa, digamos, abstração, fez uma promessa concreta. “Vamos mudar a lei do Estado-nação para adicionar a cláusula de igualdade civil!”

Foi música para os ouvidos dos palestinos cidadãos israelenses. Confiando na sabedoria dos seus partidos e na palavra de Benny Gantz, eles aderiram ao candidato do Azul e Branco, refletindo o desejo crescente da grande minoria árabe de Israel de ter um papel mais ativo na configuração do país. (AP, 31-08-2019).

Ou seja, de ter os mesmos direitos de cidadão gozados pelos judeus. Acreditavam piamente que a contribuição árabe israelense a uma vitória de Gantz impulsionaria suas reivindicações.

A guinada anti-árabe

O partido Balad inicialmente ficou fora, alegando que Netanyahu e o seu adversário eram igualmente inimigos impiedosos dos palestinos.

De fato, como comandante das forças israelenses em duas guerras de Gaza, a atuação do general Benny Gantz não foi objeto de elogios das organizações dos direitos humanos.

Como disse o famoso jornalista judeu, Gideon Levy, colunista do Haaretz: “O alvo da Operação Margem Protetora (uma das guerras de Gantz contra Gaza) é restaurar a calma. Os meios são: matando os civis. O slogan da Máfia tornou-se a política oficial de Israel”.

O Balad, mais tarde, juntou-se à Lista Unida por razões pragmáticas: afinal, qualquer um seria melhor do que Bibi Netanyahu.

A associação entre Netanyahu e seu até então mortal inimigo, Benny Gantz, trouxe desalento à comunidade palestina local.

Seu sonho em adquirir direitos iguais aos dos judeus desvaneceu-se. Em lugar dele, ficou o pesadelo de continuarem vivendo sob um governo que os quer submissos e párias na sociedade.

Ninguém duvida do racismo anti-árabe do líder do Likud. Recentemente, Netanyahu apelou para que os partidos oposicionistas não se aliassem à Lista Unida porque “os árabes querem aniquilar todos nós – mulheres, crianças e homens”.

Em outras ocasiões, chamou várias vezes os partidos palestinos de “apoiadores do terrorismo”.

Além disso, uma série de leis e regulamentos discriminatórios foram produzidos no seu governo.

Agora depois da virada de Gantz, os cidadãos palestinos de Israel desistiram da ideia de promover seus justos interesses através da participação política. Dificilmente, será possível convencer a maioria a voltar às urnas.

É exatamente o que Netanyahu pretende. Nas eleições de 2015 ele apelou para que os judeus votassem, pois os palestinos estariam chegando “em rebanhos”, o que seria uma ameaça à democracia.

Um efeito colateral da mudança crucial de Gantz é a desmoralização dos partidos palestinos na sua comunidade. Eles estão sendo chamados de ingênuos e idiotas por acreditarem no candidato do Azul e Branco.

Responsáveis pelos esforços inúteis e esperanças frustradas daqueles que atenderem à sua convocação ao pleito.

Para justificar sua surpreendente mudança, Benny Gantz explicou que era necessário. Juntos, ele e o ex-inimigo da democracia produziriam o melhor enfrentamento da pandemia.

Não que se possa esperar muita coisa desta estranha união entre dois sujeitos que se ofenderam durante três campanhas eleitorais, em quase dois anos seguidos.

Sendo cada um antítese do outro, viabiliza-se um casamento pleno de brigas, ciladas e troca de ofensas. Inclusive, preveem alguns analistas: antes do término dos seus 18 meses de reinado, Bibi Netanyahu tentará manter-se no trono.

Alguns frutos desta árvore, digamos, um tanto podre, terão sua colheita garantida em 1 de julho, não havendo, portanto, tempo suficiente para caírem. Na cláusula 1 do acordo entre as partes, está previsto que Bibi, como primeiro-ministro, terá soberania total para decretar a anexação de parte da Cisjordânia, incluindo a maioria dos assentamentos judeus, sem que Gantz tenha direito de veto.

Eventualmente, Gantz poderá usar esta cláusula para se inocentar desse avanço nos direitos palestinos, atualmente repudiado pela quase totalidade da comunidade internacional, com exceção dos EUA e alguns satélites mais submissos como o Brasil e a Guatemala.

A outra justificação do seu chocante casamento com Bibi e o Likud foi que não havia nenhuma alternativa. O que não é verdade.

O representante do Azul e Branco contava com o apoio de 61 deputados, o necessário para assumir a posição de primeiro-ministro de Israel.

Certo de que, com essa pequena margem, seu governo teria que lutar muito para se reafirmar, uma dificuldade que não deve assustar um general, pela sua própria formação profissional. Ainda mais no caso de Gantz, que participou destacadamente de muitas batalhas, como oficial, e de duas guerras contra Gaza, como comandante.

Render-se, traindo as ideias da sua campanha e os seus seguidores, não me parece uma opção válida. E muito menos única.

“Democracia” étnica

Respondendo às dúvidas sobre a causa da decisão de Gantz pela união com quem o respeitado jornal Haaretz chamou de “o rei da corrupção”, alguns analistas cravam o racismo.

Gantz e seus aliados próximos detestam Netanyahu, mas detestariam ainda mais os árabes palestinos, sejam de Israel ou da Cisjordânia ocupada. Daí, ter preferido juntar-se a um indivíduo, que o procurador-geral já informou indiciar como réu de três crimes no mais alto tribunal de Israel.

Depois da terceira eleição, Gantz declarou: “não tenho medo de negociar com qualquer partido legítimo, mas a Lista Unida Árabe não será parte do meu governo”.

Como sem os 15 deputados palestinos, Gantz não teria maioria, foi obrigado a conversar com eles. Mas sempre deixou claro que os membros da Lista Unida não ficariam sequer na periferia do seu governo.

Aliás, ele e Lapid, o número 2 da lista do Azul e Branco, não cansaram de repetir nas três campanhas eleitorais que, no seu governo, de forma alguma haveria participação de árabes-israelenses. Coisa que a Lista Unida nunca afirmou pretender.

Evidentemente, tendo apoiado o general nas eleições e sendo os 15 deputados desse grupo fundamentais para a sobrevivência do futuro governo Gantz, os árabes contariam com força suficiente para influenciar a promoção das suas reivindicações de igualdade.

O que é essencial numa democracia de verdade. Mas não em Israel.

Não foi à toa que Netanyahu deu o maior destaque na sua campanha à acusação de Gantz ser amigo dos israelenses.

Em função de uma série de fatores, desde discutíveis postulações sionistas, até as guerras contra Gaza e a repressão do terrorismo dos ultra-islamitas e do ativismo palestino, a maioria da comunidade judaica rejeita, agora ou no futuro, compartilhar o governo com árabes, ainda que cidadãos israelenses.

Diz o escritor judaico Daniel Gordis: “nos não somos uma democracia liberal, nós somos uma democracia étnica.. Israel está no negócio de perpetuar um certo povo e uma certa comunidade religiosa. Este é seu objetivo. Este é seu negócio”.

Para não perder votos, o general Gantz e aliados fizeram sempre questão de jurar que manteriam os palestinos bem longe do poder.

Para alguns analistas, Gantz e afins são também racistas anti-árabes (Mondoweiss, 17-02-2020).

Entre governar obrigado a atender a propostas igualitárias dos palestinos israelenses, ou dividir o governo com o adversário-mor, inimigo ferrenho da democracia, Gantz ficou com a segunda opção.

Que, afinal, pelo menos em teoria, lhe proporcionava uma maioria confortável de deputados fiéis e o apoio da maioria dos judeus avessos à participação árabe no governo, ainda que limitada.

O periódico conservador, National Review (25-02-2020) tem uma opinião diferente do acerto da virada de Gantz: “Ultimamente, contudo, parece que a perspectiva de outra eleição (seria a quarta) no meio de uma pandemia, com 26% de desempregados devido ao fechamento de empresas, fez com que protestar num governo com Gantz pareça a melhor opção”.

Se for correto, a conclusão é de que o general-candidato equivocou-se ao se decidir por Netanyahu, com base em uma unanimidade anti-árabe falsa ou pelo menos pouco significativa na maioria judaica.

Pode ser, mas isso cheira a wishful thinking.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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