Correio da Cidadania

As sanções se voltam contra seu criador

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Diante das recentes eleições parlamentares iranianas, as perspectivas dos moderados e reformistas - grupos pró-democracia - eram as piores possíveis.
Seus adversários, a coalizão linha-dura, de conservadores e radicais, iria jogar com cartas marcadas.

E assim foi. O Conselho dos Guardiões, do qual depende a aprovação dos candidatos, vetou mais de 7 mil, quase todos reformistas ou moderados. Com isso, essas tendências ficaram sem ter candidatos em dois terços das regiões do país.

Explica-se: os membros do conselho foram nomeados pelo Supremo Líder Khamenei, ele próprio ardente defensor da linha dura, fiel à interpretação ao pé da letra da Sharia, e de uma política de agressiva confrontação com os EUA e o Ocidente, de modo geral.

Obedientes a quem os nomeou, todos eles fizeram mais do que o máximo para derrotar os adversários.

A linha dura no comando

Surpreendeu o fato da opinião pública iraniana, que tanto tinha lutado pela reforma de um Estado paralisado por leis arcaicas, não reagir à vergonhosa manobra eleitoral.

A verdade é que, depois de eleger e reeleger o atual presidente, o moderado Rouhani (2013-2020), o povo do Irã perdera a confiança nele e na possibilidade de restringir os poderes do establishment teocrático do país. Antes de Rouhani, os grupos pró-liberalização já haviam eleito presidente o moderado Rafsanjani (1989-1996) e o reformista Khatami (1997-2004), sem que as mudanças desejadas tivessem se concretizado.

Pouco se andou na conquista de um código de direitos civis, das liberdades de imprensa e de expressão, de mais direitos às mulheres, da humanização das leis e da normalização das relações políticas e econômicas com o Ocidente. A rigor, Rouhani e seus antecessores não poderiam ser responsabilizados pelos fracassos na aprovação de suas ideias.

No Irã, a ação do presidente é limitada pelos poderes do Líder Supremo. É ele quem nomeia os chefes do judiciário, das forças armadas, das forças de segurança, do exército Quds e da metade dos membros do Conselho dos Guardiões, aos quais cabe julgar a constitucionalidade das leis do parlamento, além de decidir quem tem direito de se candidatar a cargos políticos.

O atual Líder Supremo, Khamenei, nomeia para esses cargos somente pessoas que pensam como ele. Sendo um radical linha-dura, impõe suas posições para que, no exercício de suas funções, os chefes dos setores brequem a realização dos sonhos de liberdade do atual presidente pró-democracia.

Khamenei tem ainda a última palavra em pontos de alto interesse público, inclusive na política internacional e nos assuntos nucleares.

Pragmático, ele vem usando este poder com discrição no governo Rouhani, que, além do apoio popular, contava com vozes influentes no parlamento.

Assim, em vez de vetar o acordo nuclear, o Supremo Líder preferiu semear dúvidas, pregando que os EUA não mereciam confiança (no governo Trump, provou-se verdade).

Questões materiais

Seja como for, comandando as forças de segurança, a polícia, o poder judiciário e o Conselho dos Guardiões, o radical Khamenei foi uma pedra no caminho das reformas pretendidas por Rouhani.

A partir de novembro do ano passado, o povo mostrou que não confiava mais no seu presidente. Mais do que a incapacidade de o governo moderado mudar as leis atrasadas do país, o que realmente pesou nesse descontentamento foi a crise econômica, cujos tentáculos sufocam a população.

O fato é que os iranianos não aguentam mais as consequências dessa crise: em 2019, PIB negativo de –4,7% (World Bank), desemprego de 11,99 % (FMI) e inflação de 35,68%.

Obrigados a encarar constantes aumentos de preços, eles receberam muito mal o anúncio oficial de aumento de 50% no preço dos combustíveis. Sucederam-se grandes manifestações de protesto.

Rouhani explicou que a majoração seria necessária para o governo poder melhorar a situação dos pobres, mas não foi levado em conta.

As forças de segurança (que ele não controla) entraram em ação, inclusive usando munição real, matando algumas centenas de manifestantes.

A crise econômica que detonou esses graves incidentes é obra de Donald Trump. Tudo começou quando ele retirou os EUA do acordo nuclear entre o Irã e os P+5 (EUA, Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha), assinado em 2015.

Nos seus termos, Teerã concordou em tomar uma série de medidas para interromper seu programa nuclear (na verdade pacífico), cujo prosseguimento poderia possibilitar a produção de bombas nucleares.

Em contrapartida, os P5+1 se comprometiam a cancelar quase todas as sanções sobre os iranianos e contribuir para acelerar o desenvolvimento do país.

Teerã cumpriu impecavelmente todos os compromissos assumidos, conforme atestou várias vezes a insuspeita Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

Em 2018, ao sair do acordo, os EUA reestabeleceram antigas sanções, suprimidas em 2015. O objetivo era provocar uma situação econômica insustentável, que forçaria os dirigentes do Irã aceitar o diktat de The Donald, consistente em medidas altamente prejudicais ao Irã.

A Casa Branca esperava que os signatários do Ocidente o acompanhassem. Ficou desapontado quando eles protestaram contra a decisão yankee.

O presidente norte-americano reagiu, impondo sanções que proibiam empresas estrangeiras de fazer negócios com os setores de petróleo, transportes e bancos iranianos.

O riquíssimo mercado estadunidense seria fechado para quem não obedecesse. Sumiriam porções substanciais dos lucros das empresas que ousassem desafiar as sanções imperiais dos EUA.

Trump permitiu que medicamentos e alimentos ficassem fora da relação dos setores punidos. Na prática, as empresas ocidentais não têm ousado beneficiar-se de tal “generosidade”. Temem incorrer nas punições que pesam sobre quem os EUA considerarem transgressores das sanções.

Enquanto a fome ronda os bairros pobres iranianos, já se multiplicam sérios problemas de saúde, decorrentes da impossibilidade de se importar medicamentos e equipamentos médicos.

Eleições esvaziadas

O governo do Irã sempre protestou contra essas verdadeiras punições, produto da ira do morador da Casa Branca.

As sanções não são apenas violações da soberania, do direito e da ordem internacional. Vencer uma parada política às custas do sofrimento do povo do país rival é também algo profundamente desumano.

Depois de uma fase em que o conflito entre EUA e Irã não passava de ameaças e denúncias entre os dois presidentes, a situação evoluiu perigosamente.

O governo de Washington reforçou consideravelmente sua presença militar no golfo Pérsico, enviando muitas belonaves e aviões, até mesmo bombardeiros. O Reino Unido, “proxy” da Casa Branca, apresou um petroleiro que transportava petróleo iraniano.

Rouhani fez o mesmo com um petroleiro de bandeira inglesa e ameaçou o bloqueio do Golfo de Ormuz, por onde passa boa parte do petróleo de toda a região.
Drones de observação norte-americanos foram lançados junto à fronteira do Irã, que chegou a derrubar um deles.

The Donald pulou várias casinhas ao aprovar o assassinato de um importante general do Irã, em flagrante desrespeito às leis internacionais.

A resposta de Teerã foi rápida: pouco depois do atentado, uma chuva de mísseis caiu sobre uma base militar norte-americana no Iraque. Milagre! Nem um único soldado foi morto.

Soube-se, então, que Rouhani mandara avisar do ataque ao comandante da base, que se apressou em colocar seus comandados em abrigos protetores. O presidente iraniano procurara evitar uma perda de face, sem se arriscar a uma guerra contra um inimigo muito mais forte, provável, caso seus mísseis causassem mortes.

Acredita-se que muitos cidadãos iranianos irritaram-se com uma retaliação tão suave. Juntaram-se à massa da população que perdera a esperança em mudanças, sofria os efeitos da crise econômica e se sentia iludida pela suposta inação dos políticos reformistas e moderados.

Em consequência, o comparecimento nas eleições parlamentares foi extremante baixo, apenas 42%. E a linha dura iraniana, cujos adversários tinham sido em maioria impedidos de concorrer, conquistou uma vitória arrasadora.

É de se crer que uma mudança liberalizante no Irã ainda acontecerá. Só que deve demorar muito, depois da vitória da linha dura nas eleições parlamentares. O moderado presidente Rouhani ficou isolado, será inevitavelmente influenciado pelos grupos conservadores radicais.

Embora política externa e questões nucleares sejam da alçada do presidente, esse fortalecimento da linha dura vai pesar, inevitavelmente, nas decisões iranianas nessas áreas.

A tensão continua; a paralisia também

Khamenei e seus partidários não querem uma guerra. No entanto, eles são gente que não levam desaforo para casa. Se Trump repetir uma ação de gravidade semelhante ao assassínio do general Suleimani, poderemos esperar uma resposta à altura. Seguida por uma reação dos EUA provavelmente mais estrepitosa.

E estaria montada uma escalada na rota da guerra. Nada pior para The Donald. Havendo uma guerra próxima (talvez contemporânea) às eleições presidenciais de novembro, os sinos bateriam lugubremente pela morte dos seus sonhos de reeleição.

Diversas pesquisas vem provando que o povo norte-americano não quer mais saber de guerras. A menos que se conseguisse dobrar o Irã rapidamente, sem sacrificar soldados. O que parece algo extremante difícil (ou quase impossível).

A estas alturas, o morador da Casa Branca deve estar arrancando os cabelos.
Qualquer opção é ruim para ele. Engolir seu orgulho, deixando de tomar retaliações pesadas contra alguma jogada mais agressiva do Irã, lhe alienaria uma boa soma de votos.

Propor aos iranianos mudanças menos desagradáveis no Acordo Nuclear poderia ou ser recusado ou, caso aceito, perturbar sua boa relação com a Arábia Saudita (maior importadora de armas norte-americanas), seus militares mais agressivos e os políticos republicanos de extrema-direita.

Para não falar na indústria de armamentos que festeja o aumento de suas vendas neste período de uma possível guerra. Lembre-se que essa gente está entre os principais doadores das campanhas do republicano.

A falta de uma boa alternativa para a cada vez mais delicada situação no Oriente Médio deve estar preocupando muito o presidente e os estrategistas do Pentágono.

É irônico que este panorama sombrio, com ares de pré-guerra, é um efeito colateral das sanções. Criadas para vencer o Irã pela fome, elas viraram um bumerangue que poderá explodir nas mãos do seu criador.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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