Correio da Cidadania

Um novo Kadafi pintando na Líbia

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O general Haftar foi um dos principais comandantes do exército do ditador Muamar Kadafi nos anos 80.

Ele participou da campanha militar movida por Kadafi para derrubar o presidente do Chade. Diante de sua derrota, Haftar e centenas de soldados líbios foram presos e internados pelos chadianos. Não demorou muito para aderir ao governo adversário.

Ele e seus soldados treinaram durante dois anos numa base do país, onde formaram um exército anti-Kadafi, o Exército Nacional Líbio.

Foi quando, misteriosamente, Haftar partiu para os EUA. Diz a CNN (4 de abril de 2011) que, segundo um antigo oficial da CIA e exilados líbios, os EUA estiveram envolvidos nessa operação.

O website Chron, do Houston Chronicle, reportou, em 20 de maio de 2014, que nos anos 90 o general, em entrevista à mídia árabe, declarou estar criando um exército para eliminar Kadafi, com assistência dos EUA.

Seja como for, Haftar viveu nos EUA durante 20 anos, voltando à Líbia em 2011 para participar na revolução contra o ditador, apoiada militarmente pelos EUA, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes e as grandes potências europeias – com exceção da Alemanha.

Depois da derrota de Kadafi, as milícias vitoriosas, usando armas fornecidas pelo Ocidente, lutaram umas contra as outras, disputando grande parte do país, levando a guerra até as grandes cidades e criando o caos.

Embora as instituições funcionassem de forma precária, realizou-se uma eleição parlamentar que resultou na formação de um governo, instalado em Trípoli, a capital.

Haftar rompeu com ele, em 2014, dirigindo-se a Benghazi, a segunda maior cidade, controlada por um grupo hostil ao novo governo.

Ali organizou um exército, apresentando-se como um salvador do país contra as milícias islâmicas políticas.

Bizarro, pois seu exército era integrado também por milícias salafitas, a mais radical seita do islamismo, a mesma perfilhada pela Al Qaeda e o Estado Islâmico.

Ao lado desses perigosos grupos, batem continência a Haftar ex-soldados do exército do Chade e mercenários estrangeiros.

Com essas tropas, que chegam a 25 mil guerreiros, Haftar, em 2018, iniciou uma ofensiva cujo objetivo é tomar o poder. Em poucos meses, foram conquistados a região leste e os poços petrolíferos no sul do país.

Prosseguindo em sua marcha, Haftar expulsou diversas milícias rivais de cidades no caminho de Trípoli. Chegando à capital, encontrou inesperados obstáculos, uma resistência difícil de vencer.

Há muitos meses, um novo ator já havia entrado em cena: a ONU. Para tentar reorganizar o país, dilacerado pelos choques entre milícias rivais, sem leis que protegessem os civis, a ONU enviou uma missão diplomática à Líbia.

Depois de superar inúmeras dificuldades, antepostas pelos chefes locais, os diplomatas da organização conseguiram unificar as principais forças políticas num governo de conciliação, sediado em Trípoli.

Isso não deteve o general, já que seu alvo era assumir o governo. Até então, Rússia, França e EUA apoiavam os esforços da ONU para resgatar o país da anarquia a que estava submetido.

Mas, algo parece estar mudando. Diante da grande chance de Haftar tomar o poder, esses três países ameaçam virar a casaca.

Afinal, a Líbia vale bem uma missa. Ou muitas. Suas reservas petrolíferas – as maiores da África – representam 46,4 bilhões de barris de petróleo por dia.

Antes da revolução que depôs Kadafi, o país produzia 1 milhão e seiscentos e cinquenta mil barris diários.

Sua exploração é extremamente vantajosa pelo seu baixo custo de produção (cerca de um dólar por barril), baixa porcentagem de gás sulfúrico e proximidade com os mercados europeus.

De olho no petróleo líbio, os russos chegaram a imprimir dinheiro, em nome de Haftar, e a tratar muitos soldados feridos do general.

Por sua vez, a França diz ver nele um papel-chave na estabilização da Líbia, com a vantagem adicional de vir a reduzir consideravelmente a onda de imigrantes que embarca dali para cidades europeias.

Sempre ávido por novos negócios, Trump foi mais longe. Falou com o general e lhe ofereceu seu apoio. De acordo com informação da Casa Branca, a conversa girou sobre o papel importante de Haftar no combate ao terrorismo e, é claro, sobre as apetitosas reservas petrolíferas líbias.

Além dos dois discutirem a eventual transição do país para um sistema democrático (esse último assunto é mencionado no comunicado oficial, mas duvido que tenha sido realmente objeto da conversa).

Só faltou mesmo um reconhecimento formal pelos EUA do antigo general do ditador Kadafi.

O que seria mais uma bofetada de The Donald na ONU, cujo trabalho na normalização da Líbia vinha sendo aprovado pelo governo de Washington. Depois da reunião, os EUA interromperam bruscamente os apelos pela paz e pela concórdia entre as partes, que vinham nobremente fazendo.

Mesmo figuras muito próximas a Trump discordam de seus acenos e carinhos tributados a Haftar.

Diz o senador Lindsey Graham, um rematado falcão: “se nós escolhermos lados, você (Trump) estará criando uma situação como na Síria, no território da Líbia. Portanto, meu conselho para o presidente é pressionar por uma reconciliação política na Líbia”.

Talvez incluindo Haftar no ministério, como até sugeriu o Reino Unido.
Ele pode até topar, pois a aposta no general rebelde após a queda de Trípoli não é favas contadas, a resistência parece cada vez maior.

Há um temor generalizado de que, no poder, Haftar se torne em ditador, como foi seu ex-chefe Kadafi, ou mesmo um seguidor do general Sissi, ditador do Egito, seu principal apoio internacional.

Tudo indica que esta hipótese é pra lá de viável. Apesar de Haftar jurar que pretende acabar com o terrorismo, suas tropas não divergem muito do comportamento do Estado Islâmico ou da Al Qaeda.

Na macha para Trípoli, diz a Human Rights Watch que se verificaram inúmeros casos de ataques indiscriminados contra civis, execuções sumárias de milicianos adversários capturados e detenções arbitrárias.

Além disso, é duvidoso que Haftar consiga impor sua autoridade devido a seu desprestígio em muitas regiões e à proliferação de milícias inamistosas bem armadas pelas potências ocidentais e aliados árabes na guerra contra o governo anterior.

O passado do general também não alimenta esperanças pela sua passada participação nas aventuras militares do ditador Kadafi e provável vinculação à CIA.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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