Correio da Cidadania

EUA impõem venda casada

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Venda casada é aquela em que o fornecedor só vende seu produto (ou serviço) se o interessado comprar também mais outro produto. Não se trata de um negócio dos mais honestos. No Brasil, é considerada crime contra as relações de consumo (lei 8.137/90) e o infrator pode pegar de 2 a 5 anos de reclusão.

Na política internacional, as coisas são diferentes. Pode ser repreensível, mas país algum é tido como infrator por praticar vendas casadas. Os EUA estão condicionando a venda dos seus caças F-35 – de quinta geração - à Turquia à desistência deste de comprar o sistema antimíssil S-400 dos russos, optando pelo Patriot, seu concorrente norte-americano.

O F-35 é o maior e mais dispendioso programa militar de todos os tempos. Justamente para reduzir custos, a Lockeed Martin – a fabricante - distribui a produção de partes do avião para alguns países que se associaram ao empreendimento.

A Turquia é um deles, cabendo a ela produzir cerca de 7% do avião. Para ter condições de atender a essa meta, o país já investiu 1,2 bilhão de dólares. E lucrará 12 bilhões de dólares por toda a sua participação no programa.

O ponto da discórdia

Tudo ia bem quando o presidente Erdogan resolveu que os turcos precisavam também contar com a mais avançada proteção antimísseis. Imediatamente, os EUA ofereceram seu Patriot.

Não se sabe se os turcos acharam caro ou simplesmente ficaram encantados com a eficiência do sistema S-400, da Rússia, ao que tudo indica, superior à dos concorrentes.

O fato é que Erdogan agradeceu a Washington, mas preferiu fechar negócio com Moscou. Aí, sujou. Os EUA subiram nas tamancas.

Além de rejeitar nosso armamento, a Turquia, membro da OTAN, ainda opta pelo inimigo número 1, a Rússia do maquiavélico Putin!

Esse desabafo não deixa de ser um fato, mas não um argumento bem visto no plano internacional, onde se cultua a liberdade de comércio.

E, assim, a Casa Branca protestou, trazendo argumentos alegadamente concretos: o sistema S-400 não seria compatível com a estratégia de defesa da OTAN e, sendo instalado em solo turco, a potência do seu radar permitiria aos russos descobrir os segredos e vulnerabilidades do F-35.

Se quisesse ter o F-35, o governo de Ankara tinha de esquecer o S-400 e levar o Patriot.

Quanto à primeira objeção, o Pentágono devia estar de brincadeira. Erdogan não se dignou a comentar. Quanto à outra, ele propôs a formação de um comitê de especialistas estadunidenses e turcos para discutirem uma solução para o problema (se é que existe problema).

O governo de Washington não quis conversa. Deu um sonoro “não” à ideia do comitê. E lembraram aos turcos que eles estavam comprometidos com o programa F-35 e, portanto, tinham de esquecer essa ideia subversiva de comprar armamentos russos.

Erdogan, por sua vez, endureceu. Como os EUA se atreviam a dar ordens a seu país? A Turquia tinha o direito de comprar o que quisesse, de quem bem entendesse. Afinal, é um Estado soberano.

A resposta foi a suspensão da entrega dos equipamentos necessários para os turcos fabricarem as partes do avião, como estava contratado. As entregas só voltariam se Erdogan voltasse atrás.

Em viagem a Ancara, o intragável Mike Pompeo tratou de reforçar a posição norte-americana, ameaçando o governo turco com devastadoras consequências. Conforme lei de 2017 - o Counter America’s Adversaris Through Sanctions Act - país que mantém relações militares com os EUA não pode comprar armamentos russos, do contrário, sofrerá as devidas sanções.

Atualmente, tudo o que Erdogan não quer é brigar com os EUA. No ano passado, ele brigou, recusou-se a liberar um pastor protestante que estava sendo julgado por ações contra a segurança turca.

Como já estão acostumados, os EUA usaram seu principal argumento, as sanções.

Resultado: foi detonada uma recessão que fez a lira (a moeda turca) despencar e perder 30% do seu valor. Neste ano, a economia russa continua recessiva e a lira se desvalorizou mais 10%.

Mesmo assim, Erdogan até tem resistido (sua vaidade é tamanho família). A Turquia já investiu 1,2 bilhão de dólares no programa F-35, argumenta, os norte-americanos têm obrigação de manter a participação do país na fabricação do caça e entregar as unidades pedidas.

Falando em nome do presidente, o ministro do Exterior Mevlüt Çavuşoğlu afirmou que a compra do sistema S-400 era um “negócio fechado” e não poderia ser cancelada (Japan News, 5 de abril de 2019).

Consequências

Uma perigosa escalada nessa situação tensa poderá acontecer caso o Pentágono exclua a Turquia do programa F-35 e, é claro, negue-se a vender o caça ao governo de Erdogan. O resultado fatal seria o rompimento entre EUA e Turquia.

Para os turcos as perspectivas de sanções no horizonte, acentuando a recessão atual, é real e assustadora. No entanto, os EUA também teriam muito a perder.

Os EUA e a OTAN Europeia não poderiam mais usar as bases e o espaço aéreo turco para suas operações no leste europeu e, principalmente, no Oriente Médio. Encontrar e aparelhar opções tão vantajosas quanto à dos turcos não seria fácil, demoraria muito e custaria muito dinheiro.

Para o vice-almirante Matt Winter, chefe do programa F-35 no Pentágono, a exclusão dos turcos causaria um impacto na produção do caça e tensão na intrincada cadeia de suprimentos globais do programa. Haveria uma redução de 50 a 75 aviões na produção, durante mais de dois anos (CNBC, 4 de abril de 2019).

Perspectiva longe de improvável. E o que viria a seguir talvez fosse algo até pior. Se tiver de desistir do F-35, consta que Erdogan deverá comprar dos russos um avião semelhante (Defense News, 19 de abril de 2019).

O mais grave para a política internacional dos EUA seria o afastamento do seu aliado turco, combinado com uma intensa aproximação à Rússia. A qual, aliás, independente da crise do F-35, já começou.

A Turquia, que integrava o movimento para derrubar Assad desde o início, fornecendo armas e treinamento para os rebeldes pró-Ocidente, cancelou sua participação.

E, em sucessivas reuniões com a Rússia e o Irã tem assumido ações pró-paz, sem exigir a queda de Assad como os EUA vêm fazendo há muitos anos.

Além disso, nos últimos anos, Ancara e Washington entraram em atrito não só no caso do pastor preso na Turquia, mas também no caso do líder revolucionário anti-Erdogan que os estadunidenses se recusam a deportar para seu país.

Sem contar que, aos poucos, Erdogan vem claramente saindo da órbita de Tio Sam. Agressões verbais a Israel (bem-amado aliado norte-americano), relações amigáveis com o Irã (inimigo do governo Trump) e frequentes encontros em Moscou são fatos que deixam enevoadas as relações entre Washington e Ancara.

Uma aliança Putin- Erdogan pode enfraquecer seriamente a posição dos EUA nas disputas no Oriente Médio.

O impasse continua

Não interessa de modo algum à política externa dos EUA perder a Turquia, um aliado de dezenas de anos, apesar de, com Erdogan, os turcos terem alternado ações independentes e desagradáveis aos EUA com demonstrações de solidariedade a Washington.

A Turquia possui um dos mais poderosos exércitos europeus e vem crescendo acentuadamente (apesar do refluxo atual). Não é uma relação de que se possa abrir mão sem vacilar, especialmente pelo fato dos turcos tenderem a caminhar para os braços de Putin.

Agora, Erdogan quer apressar a solução do conflito. Informou que os antimísseis do sistema S-400, já pagos, vão ser instalados em solo turco em julho. Se forem, consumatum est.

Como, apesar do que todo mundo costuma dizer, ninguém gosta de desafios, a não ser quando ganhos de antemão, Trump e Erdogan vão procurar uma acomodação.

Será um verdadeiro cabo de guerra, onde o mais forte sempre vence. É simples – e injusto – assim.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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