Correio da Cidadania

Angela Merkel, uma pedra no caminho de Donald Trump

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A aviação israelense bombardeou mais de 100 vezes o território da Síria somente no ano passado. Neste ano, continuou no mesmo pique. É um fato: vários chefes das forças armadas israelenses alardearam os números dessas façanhas.

A Síria protestou, é claro. Afinal, trata-se de uma flagrante violação de soberania, o que é proibido pelas convenções de Genebra.

Explicação de Israel: não era contra a Síria, com quem nem estava em guerra. Suas bombas visavam objetivos militares do Hizbollah, para prevenir possíveis futuros ataques deste rival. Claro, se matassem uns tantos sírios ou destruíssem casas, armazéns, depósitos, prédios etc. não fora de propósito.

Explicação mais do que suficiente para as chancelarias do Ocidente, pois o Hizbollah é considerado uma ameaça nível Estado Islâmico (EI). Qualquer ação militar contra ele seria sempre benvinda.

Os EUA têm seus motivos para querer a exterminação destes seus desafetos. Apoiado e financiado pelo Irã, o Hizbollah é umbilicalmente ligado a este país, inimigo número 1 de Donald Trump por combater a hegemonia norte-americana no Oriente Médio e ter briga de morte com Israel. Justamente o filho predileto dos Estados Unidos de Trump.

O que torna o Hizbollah particularmente odioso é sua eficiente ação bélica na arena internacional, aliás, juridicamente irretocável.

Na Síria, por solicitação do governo local, ele foi decisivo na virada do jogo, ajudando a tirar o doce da boca dos rebeldes pró-EUA, quando já cantavam vitória.

Na segunda guerra do Líbano, país do Hizbollah, foram suas guerrilhas que forçaram o invasor israelense a desistir de liquidá-lo como queria, tendo de voltar para casa, frustrando os governos de Telavive e de Washington.

No Iraque, atribui-se às milícias iraquianas, próximas ao Hizbollah, um dos papéis principais na destruição do califado do EI.

Acontece que nas eleições iraquianas, essas milícias obtiveram grande votação e hoje integram a coalizão governamental. Para irritação dos EUA, que acreditavam dispor da maior influência no Iraque pelo inestimável apoio militar que dera às tropas do Iraque na guerra ao EI.

No Líbano, país brindado pelos estadunidenses com 1,5 bilhão de dólares anuais em armamentos, treinamento militar e outros fins, o Hizbollah causou mais dores de cabeça. A coalizão liderada pelo partido deles foi a mais votada, elegendo a maior bancada.

Numa demonstração de maturidade, quis apenas 3 entre os 30 ministérios e até fez força para conseguir a aprovação do rival Hariri para primeiro-ministro, evitando que o país ficasse acéfalo por mais tempo.

“Inadmissível”

Desde 2001, a facção militar do Hizbollah já era condenada como terrorista por Israel, pelos EUA e até pelos europeus, pois os norte-americanos sabem como ninguém fazer que outros países assumam como seus problemas que são só de Washington.

De fato, o Hizbollah não praticou lambanças terroristas no Reino Unido, França, Alemanha, Itália ou nos demais países europeus, com exceção da Bulgária, alvo de um atentado contra turistas israelenses.

Esclareça-se que este movimento é dividido em dois grupos: o Hizbollah militar e o Hizbollah político, cada um com seus membros e chefes, sob o comando geral do clérigo xiita, Nasrallah.

Fundado em 1982 para libertar o Líbano dos israelenses e tornar Israel um país sem caráter judaico (esse objetivo não existe mais), o Hizbollah realmente dedicava-se ao terrorismo, especialmente em território israelense.

Aos poucos foi abandonando esse péssimo hábito e já faz muitos anos que se limita a ações estritamente militares, além de políticas e assistenciais.

Segundo o reverenciado escritor e jornalista judeu, Uri Avnery: “Você pode odiar o Hizbollah e detestar Nasrallah. Mas chamá-los de ‘terroristas’ é simplesmente estúpido”.

O Hizbollah político é um partido libanês, que atende o povo pobre nas áreas de educação, saúde e jurídica, através de uma rede de assistência social.

Quando classificaram o Hizbollah militar como terrorista, os países europeus não viram motivos para incluir o Hizbollah político nesta lista negra.

Agora, porém, que Trump e seus ring men, John Bolton e Mike Pompeo, estão fechando o cerco sobre o Irã, chegou a hora de cortar as asas do Hizbollah, jogando no inferno também a parte política deste utilíssimo aliado dos aiatolás.

Pressionado (ou talvez “solicitado”), o dócil Reino Unido de Tereza May topou. Depois disso, não restaria aos demais países da Velha Europa senão seguir tão edificante exemplo.

Dessa maneira, todos os cidadãos europeus seriam impedidos automaticamente de auxiliar o Hizbollah. É crime favorecer grupos terroristas. Dá cadeia.

The Donald devia estar tranquilo. Sua onipotência considerava como certo o amém de todos europeu aos reclamos da Casa Branca.

Ele não contava com Angela Merkel
 
O governo alemão recusou-se a incluir o Hizbollah político na lista negra dos movimentos terroristas, pois esta organização continuava um fator relevante na sociedade libanesa. E a chanceler pretendia manter relações proveitosas com Beirute.

Foi simples assim. Surpresa desagradável para Donald Trump e seus parças. Provavelmente esqueceram que não seria a primeira vez que a chanceler Ângela Merkel dissera não às pretensões do presidente republicano.

Tudo começou depois de The Donald sair do acordo climático de Paris, demonstrando que, para ele, os lucros das empresas de carvão e petróleo estavam acima da segurança do mundo, ameaçada pelo aquecimento da Terra.

Na ocasião, o primeiro protesto veio de Angela Merkel. Ela já tinha uma pulga atrás da orelha, pois Trump vinha olhando feio para seus aliados tradicionais da Europa. Falava até em acabar com os abusos de países, que se aproveitavam da magnanimidade de Tio Sam.

A injustiça representada pelas escassas contribuições para a OTAN, vindas dos demais países, foi sempre uma das suas principais reclamações.

Afinal, era em benefício da Europa que os EUA mandassem tantos soldados e armamentos para as fronteiras com a Rússia, como proteção contra os anseios expansionistas de Vladmir Putin.

Se continuassem aplicando na OTAN menos de 2% dos seus PIBs, conforme o estabelecido, ele iria retirar os EUA da organização.

Em vez de tremer de medo diante de uma ameaça que poderia deixar a Europa inerme diante de Moscou, Angela Merkel ficou brava.

Irritado com essa imprudente postura, The Donald rosnou que “iria negociar com a Alemanha como um país que não contribuía com o que deveria”.

O governo Merkel não se tocou. Informou que aumentaria seus gastos militares em até 1,5% do seu PIB, e somente em 2025.

Assim fez, e assim tem sido.

Em outras situações, repetiu-se esse enredo de acusação, replicada com indignação alemã.

Numa entrevista, The Donald voltou a por os alemães na roda. Imagine, ousam ter saldo no comércio com os EUA. E ele se queixou: “os alemães são maus, muito maus... Vejam os milhões de carros que eles vendem nos EUA”. Logo em seguida, mudou de tom: “Terrível. Vamos acabar com isso” (The Guardian, 16-3-2018).

Como? Criando um imposto de 35% sobre as importações de carros alemães. Seu preço iria para as alturas, levando o povo local a preferir as marcas norte-americanas, artificialmente barateadas.

Adam Smith tremeu em seu túmulo. Os EUA estariam abandonando o liberalismo? Sinal dos tempos: para o América, first, os princípios da livre concorrência só valem quando beneficiam os EUA.

Pronta reação de Merkel: “se isto (o sucesso dos carros alemães nos EUA) é visto como uma ameaça à segurança dos EUA, então, estamos chocados”.

Indo mais longe, Trump quis assustar, mencionando novas taxas à importação dos produtos europeus. Ao que Merkel prontamente anunciou: caso fossem mesmo aplicadas, a União Europeia retaliaria à altura.

E, em maio de 2017, a chanceler alemã proclamou: “este parece ser o fim de uma era, na qual os EUA mandavam e a Europa obedecia”.

Fato confirmado quando o governo estadunidense aprovou punições a empresas europeias que negociassem com a Rússia nas áreas de energia e de armas.

Tendo apoio público de Merkel, os ministros do Exterior, Keirn - da Áustria - e Seibert - da Alemanha -, afirmaram em nota conjunta: “o fornecimento de energia da Europa é uma questão da Europa, não dos Estados Unidos”.

O alvo principal das sanções da Casa Branca era o gigantesco gasoduto Nord Stream 2, em construção pela russa Gazprom com suporte de capitais alemães. Quando concluído, deverá duplicar o fornecimento de gás natural aos países europeus e atender a 80% das necessidades da Alemanha.

O líder máximo dos EUA tem anatematizado esse gasoduto, de olho na conquista do mercado europeu pelas empresas norte-americanas de gás liquefeito.

Falando na Conferência de Segurança Mundial em Munique, Merkel defendeu os planos do Nord Stream 2, apresentado por ela como a opção mais econômica e segura.

Decidido a vender seu peixe, The Donald já vinha argumentando contra as volumosas importações alemãs do gás russo, pois isso estaria acarretando a dependência do governo alemão a Putin.

Merkel contestou: “se durante a Guerra Fria nós importamos grandes quantidades de gás russo, não sei por que hoje seria pior dizer que a Rússia permanece uma parceira”.

Se fosse para mudar de fornecedor, em favor das empresas dos EUA, a Europa pagaria preços mais caros, além de ter de gastar um dinheirão na construção de instalações específicas para receber o gás líquido.

Novos tempos

Durante cerca de dois anos encarando escaramuças verbais com o morador da Casa Branca, a primeira-ministra alemã não cessou de hastear a bandeira de uma Europa unida e independente na política externa.

“A Europa tem de agir em conjunto e falar com uma só voz, as nações da Europa precisam saber que nós temos de lutar por nosso futuro e de construir nosso próprio destino como europeus”.

São frases que projetam ideias nada convenientes aos sonhos imperiais de The Donald.

Talvez tenha sido no episódio da deserção norte-americana do acordo nuclear com Irã que ficou mais evidente o conflito de interesses dos EUA e da Europa, liderada pela Alemanha e a França.

Para destruir a economia dos seus inimigos iranianos, The Donald decretou a proibição de relações econômicas de qualquer nação com eles. Quem desobedecesse, não poderia mais comerciar com os EUA, perdendo os imensos lucros desse mercado, o mais importante do mundo.

A Alemanha, que tinha grandes projetos no Irã, sofreu sérias perdas econômicas atuais ou potenciais. Por exemplo: suas exportações, que haviam crescido 16% no ano anterior ao diktat de Trump, caíram 4% somente nos primeiros cinco meses de 2018.

Sob a liderança de Merkel e Macron, presidente da França, os europeus não ficam vendo a banda passar.

Associados à China e à Rússia, a Alemanha, a França e o Reino Unido, os signatários do Acordo Nuclear com o Irã, criaram um sistema para fugir às sanções. Trata-se do chamado SPV (Special Purpose Vehicle).

O SPV visa permitir o comércio com o Irã sem pagamento em dólares. Assim, qualquer país poderá fazer negócios com os iranianos, evitando ser penalizado pelos EUA.

The Donald, evidentemente, não gostou da ideia. Mike Pompeo, seu secretário de Estado não perdeu tempo em reclamar e mesmo ameaçar as nações que lançam expedientes para fugir do bloqueio.

Vai levar algum tempo para ver se o SPV funcionará. Antes disso, Merkel e The Donald deverão medir forças no caso do Hizbollah político.

Espera-se que a maioria dos países europeus feche em breve com a posição de um dos líderes.

Veremos se pelo menos alguns desses países acompanharão Berlim, negando-se a declarar terrorista o Hizbollah político. Ou se todos eles seguirão o Reino Unido na submissão à política externa dos EUA de Donald Trump.

Façam suas apostas.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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