Correio da Cidadania

A fome como arma de guerra

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A ameaça de destruição total de Donald Trump pegou fundo nos norte-coreanos. Eles já sentiram na carne o que isso significa. Ainda há dezenas de milhares de sobreviventes da guerra de 1950-1953, além de milhões de descendentes, que ouviram dos seus pais e avós os relatos da catástrofe por eles vivida.

Nessa guerra, a aviação estadunidense teve o principal papel. Diariamente, sucessivas ondas de bombardeiros lançaram “fogo e fúria” sobre toda a Coreia do Norte, causando destruição total. E isso quase “sem preocupações humanitárias com vítimas civis”, segundo o historiador Bruce Cummings, no livro The Korean War. Estatísticas chinesas calculam que cerca de 30% da população norte-coreana foi morta, 70% civis.

O general Curtis Le May, comandante da força aérea dos EUA (citado por Richard H. Kohn em Strategic Air Warfare) contou como foi: “nós voamos para lá e lutamos a guerra, eventualmente, incendiando cidades da Coreia do Norte, de um modo ou de outro... Num período de três anos mais ou menos, nós matamos, quantos? 20% da população?”

O belicoso general McArthur, comandante supremo dos EUA nas guerras da Coreia e do Japão, deu um testemunho dramático no Congresso: “a guerra da Coreia quase destruiu uma nação de 20 milhões. Eu nunca vi tal devastação. Eu vi, acho, mais sangue e desastres do que qualquer homem vivo”.

Robert Neer, em Napalm, forneceu um exemplo do que foi essa devastação: “em Pyongyang, cidade de meio milhão de habitantes, apenas dois prédios ficaram intactos”.
Como conhecia, por experiência própria, o impacto de uma destruição total norte-americana, o povo norte-coreano sentiu que a ameaça de Trump reafirmava que o ditador Kim Jong-Un precisava mesmo de bombas nucleares e mísseis intercontinentais para proteger o país.

Imperturbável, Trump segue em sua campanha de terror contra a Coreia do Norte, suavizada pela insistência do secretário de Estado Rex Tillerson em garantir que as guerras estavam fora das cogitações dos EUA, a solução diplomática seria a única correta, no clássico jogo de Good Cop, Bad Cop (policial bonzinho, policial mau) no qual Tillerson faz o papel do bonzinho e Trump, o do violento.

Nos inquéritos policiais, o interrogado, desorientado pelas bruscas mudanças de atitude dos agentes policiais, acaba se rendendo. No caso da Coreia do Norte, aparentemente, não tem dado certo. Kim Jong-Un não se intimida – a cada ameaça mortífera de Trump, ele responde com um novo teste balístico ou com a explosão de uma bomba nuclear mais poderosa.

Por isso, para alguns comentaristas, o Bad Cop, Good Cop não funcionou. No entanto, é de se crer no contrário: a tática “policial” vem dando certo.

As ameaças apocalípticas de Trump mescladas com as frases ponderadas de Tillerson, na verdade, não pretendem forçar Kim a tremer de medo e aceitar uma negociação com os EUA e seus acólitos, Japão e Coreia do Sul.
 
Em primeiro lugar, desde logo ficou evidente que Kim Jong não iria desistir de seus projetos nucleares depois de ter chegado tão longe. Às bravatas e ameaças de Trump, ele sempre continuaria respondendo no mesmo tom.

O presidente e seus generais sabiam disso, eles não são imbecis. Mesmo assim, The Donald continuou rugindo e Tillerson seguiu manso e razoável.

Em segundo lugar, os fatos demonstram que os EUA nunca estiveram interessados numa negociação verdadeira com o ditador norte-coreano.

Isso já ficou claro quando, depois das primeiras escaramuças verbais, Trump apressadamente declarou que o tempo da diplomacia já havia passado.

“Os EUA têm mantido conversações com a Coreia do Norte e lhes pagando dinheiro (proveniente) de extorsão durante (os últimos) 25 anos. Conversações não são a resposta”, ele esclareceu. E mentiu. Os EUA não ajudam a Coreia do Norte desde 2008, sendo que a última conversação entre os dois países aconteceu em 2012.

Nova demonstração do desinteresse do presidente em negociações foi dada quando o presidente sul-coreano, Moon, defendeu uma aproximação pacífica com a Coreia do Norte para discutir a questão. E Trump afirmou que ele estava errado. Reafirmou que a diplomacia não funcionava mais, quando, de fato, nem tinha começado.

Mais adiante, Xi Jinping, presidente da China, em sua visita à Casa Branca, propôs uma negociação bilateral para resolver o problema entre EUA e Coreia do Norte.

Trump respondeu que topava, desde que, antes de começar a discussão do tema, Kim teria de acabar com seu programa nuclear militar.

Ora, uma negociação que começasse com a Coreia do Norte renunciando a suas armas atômicas e misseis antibalísticos não seria propriamente uma negociação, mas uma rendição. Aceitando essa pré-condição, Kim já estaria entregando tudo o que os norte-americanos queriam, sem receber as garantias que exige de segurança contra eventuais ataques.

Caso recebesse, seria uma concessão, coisa que o governo de Washington não pensa em fazer. Os exemplos abaixo provam que é isso mesmo.

Em defesa de concessões, James Clapper, antigo chefe dos serviços e inteligência norte-americana, ousou opinar que os EUA tinham opções limitadas na questão com a Coreia do Norte. Afinal, uma potência armada com mísseis de longo alcance e bombas nucleares, tinha um bom jogo em mãos. Portanto ele disse: “precisaremos tampar o nariz e admitir algumas concessões”.

Trump replicou, com a costumeira grosseria, questionando o equilíbrio mental de Clapper para exercer sua alta função no governo Obama.

Há poucos meses atrás, a Rússia e a China propuseram um acordo diplomático, aparentemente mais vantajoso para os EUA do que para a Coreia do Norte, no qual Kim abandonaria seu programa militar nuclear, os EUA retirariam toda a parafernália militar montada nas fronteiras da Coreia do Sul e suspenderiam os voos dos bombardeiros e das jornadas das suas esquadras, que ora percorrem as proximidades das praias norte-coreanas. Trump não se dignou a responder.

Negociação implica necessariamente em concessões. Não há negociações quando um país concorda com o que o outro queria, sem receber nada em troca.

Se Trump não quer saber de concessões e exige que Kim renuncie a suas aventuras nucleares antes dos dois se sentaremos à mesa do que seriam, não seria uma verdadeira “negociação”, mas apenas a definição dos termos de uma rendição. Provavelmente ditados unilateralmente por The Donald, pois ele já teria todas as cartas na mão.

O que é exatamente o que Trump, Tillerson e os generais da Casa Branca (our generals, como diz Trump) desejam conseguir.

Dessa forma, por que o jogo Good Cop, Bad Cop, que até agora não fez Kim Jong recuar um só centímetro, estaria dando certo?

A resposta é que a velha tática policial visava, na verdade, assustar a comunidade internacional e fazê-la emitir duras sanções contra a Coreia do Norte para obrigá-la a hastear bandeira branca. O que, em parte, já está sendo conseguido.

A Europa Unida ficou aterrorizada diante da perspectiva de uma guerra no Pacífico Sul, talvez atômica, que acarretaria tremendos problemas a seus países, muitos ainda sofrendo as consequências da crise de 2008.

O Japão e a Coreia do Sul morreram de medo. Uma guerra no vizinho teria um potencial destrutivo incalculável para eles.

Por sua vez, a China e a Rússia também se preocupavam com danos por tabela, advindos da guerra possível.

Finalmente, certos países, sempre de olho em ajudas para suas combalidas finanças, temiam que os gastos dos EUA numa guerra de tal proporções os levariam a ignorar as demandas de seus amigos pobres.

E todos cederam: a ONU em peso votou a favor de pesadas sanções contra a Coreia do Norte, enquanto os próprios EUA somaram a elas sanções unilaterais ainda mais fortes.
Ninguém pensou muito nas consequências.

Kim e seus generais continuarão com seu jogo, com novas provocações e ameaças. Provavelmente, nada sofrerão, pois ninguém imagina que EUA ou Coreia do Norte iniciarão uma guerra. Mas... E o povo?

O corte de 50% do petróleo exportado pela China à Coreia do Sul fará com que o governo racione a gasolina e o diesel. É de se apostar que as força armadas terão prioridade. O pouco que sobrar será dividido entre as usinas de energia elétrica, os automóveis e ônibus, as máquinas e motores para uso na agricultura.

Com isso, as habitações, fábricas, hospitais e escolas terão energia elétrica durante pouco tempo, cada dia. O transporte de pessoas e de bens ficará seriamente prejudicado.

Mas o pior será reservado à agricultura e às pessoas que dependem dos seus produtos para sobreviverem.

Sem combustível, os tratores, bombas, borrifadores, máquinas de colher e outros implementos agrícolas ficarão praticamente parados, reduzindo drasticamente a produção.
E tornando os alimentos e outros produtos domésticos escassos e muito mais caros.

Diz o The Guardian de 10 de julho de 2017 que, embora a produção agrícola norte-coreana venha aumentando, ela não tem condições de sozinha atender a todas as exigências de alimentação da população. Precisa contar com os subsídios do governo, a importação de alimentos que não produzem e a doações de entidades internacionais.

Nos anos de fome generalizada, os recursos necessários para complementar o que faltava para atender à população não eram muito elevados – somente entre 100 e 200 milhões de dólares.

Em tempos normais, esse número cai para algo entre 8 a 19 milhões de dólares. Mas agora os tempos não são normais.

A fome ainda não começou, mas já pinta no horizonte. As novas sanções adotadas pela ONU, sob pressão norte-americana, devem reduzir em um terço os rendimentos anuais de exportação da Coreia do Norte, hoje orçados em 3 bilhões de dólares.

De outro lado, é incalculável o valor das perdas causadas pelas novas sanções unilaterais estadunidenses. Elas vetam relações comerciais dos EUA com países que negociarem com a Coreia do Norte. Quem terá coragem de abrir mão do mercado norte-americano?

As sanções da ONU vão impedir a importação de itens essenciais ao povo como óleo, açúcar e leite em pó, cuja venda ao povo é subsidiada pelo governo.

Diz o Wall Street Journal (26 de agosto) que a agência de assistência alimentar da ONU terá de interromper suas operações na Coreia do Norte, porque as entidades doadoras não estão mais enviando recursos financeiros devido ao conflito com os EUA. A destruição total do povo coreano pela fome está a caminho.

As forças militares serão pouco prejudicadas. Elas contam com reservas de diesel e gasolina por mais um ano. Compute-se ainda a produção local de petróleo a partir de carvão, abundante na Coreia do Norte, que colaborará no aumento do combustível demandado pelos programas de mísseis e armas nucleares. E lembre que os militares serão favorecidos pelo governo na distribuição de combustíveis e alimentos.

Somando tudo isso, chega-se à conclusão de que o governo e as forças armadas da Coreia do Norte têm recursos para resistirem às sanções por bem mais do que um ano.

Já a resistência do povo norte-coreano tem limites bem mais estreitos. Ele está indefeso perante a “fúria e o fogo” das sanções, plenamente capazes de destrui-lo pela fome.

Talvez sua única esperança seja a pressão que The Donald e o rocket man estão sofrendo por parte, respectivamente da Europa e da China, acabe funcionando. Com a evolução dos efeitos das sanções, a inevitável fome da população norte-coreana será mostrada em todo o mundo com toda a sua dramaticidade. A comunidade internacional não será insensível.

Os apelos para que EUA e Coreia do Norte sentem-se à mesa das negociações, de olho num acordo justo, começam a surgir – eles se multiplicarão quando se espalharem pelo mundo as imagens de uma população inteira morrendo literalmente de fome.

Por enquanto, o governo de Pyongyang não precisou decretar um racionamento cruel. O povo da Coreia do Norte ainda tem o que comer.

Até quando?

No momento, não há sombra de uma disposição conjunta dos dois governos conflitantes de se entenderem diretamente.

Uma mediação é possível. Angela Merkel já se dispôs a realizar esse trabalho. Parece a última esperança.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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