Correio da Cidadania

2ª Guerra Fria e outras perspectivas sombrias

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A nomeação do general McMaster para o posto de conselheiro de segurança nacional no lugar do general Michael Flynn marcou o fim da aproximação dos EUA com a Rússia. Pelo menos, por agora.

Flynn fora o escolhido por Trump para negociar a transição entre a relação raivosa entre os dois países para uma aliança ampla e amigável. Acreditava-se que, passando a remar no mesmo barco, as duas potências poderiam se entender e acabar achando uma saída para a guerra da Síria e o perigoso conflito com a OTAN em antigos satélites soviéticos, latente nas fronteiras da Rússia. Evitar uma provável 2ª Guerra Fria e uma possível 3ª Guerra Mundial não seria pouca coisa. E projetaria a dupla Trump-Putin como as estrelas de uma paz que corria riscos.

No entanto, tudo tinha de ser feito em sigilo para evitar a interferência estridente dos vastos setores russófobos da grande mídia e do congresso norte-americanos. Talvez o governo tenha subestimado o poder da comunidade de inteligência, simpática a guerras - sejam frias ou quentes - quando a importância desse grupo cresce desmedidamente.

A armação do escândalo do conselheiro de segurança externa do governo dos EUA conspirando com a hidra comunista - perdão, com o maquiavélico Putin - num arranjo no qual Trump faria graves concessões, foi perfeita.

Assustado com a onda de protestos que ameaçava sua aventura presidencial, Trump demitiu Flynn do seu cargo de conselheiro de segurança nacional, consolando-o com palavras bonitas. No seu lugar, foi nomeado um general que, para todo mundo nos EUA, honra sua farda.

Ao contrário da maioria dos altos oficiais estadunidenses que costumam trafegar por cargos na Casa Branca e buscam manchetes nas páginas políticas dos jornais, o general McMaster ganhou suas estrelas nos campos de batalha. Participou com brilhantismo nas duas Guerras do Golfo.

Enviado para combater a insurgência na cidade de Tal Afar, durante a ocupação do Iraque, ele se distinguiu por exigir dos seus soldados que protegessem os civis. Ganhou a confiança das autoridades e da polícia locais, a quem costumava atribuir os sucessos conseguidos. Tratando com líderes de Tal Afar, ligados à insurgência, ele admitiu: “nós entendemos porque vocês estão lutando”.

Em 2014, no Carnegie Council, ele afirmou que os EUA deveriam aliar-se às nações de maioria muçulmana contra o Estado Islâmico (EI), que são quem mais sofre com o terror. Em 2016, quando lhe perguntaram sobre uma intervenção no Irã, ele respondeu: “seria sangrentamente terrível, seria uma catástrofe se nós tivermos mais uma guerra no Oriente Médio como essa”.

Considerado um dos maiores intelectuais do exército, McMaster é autor de um livro sobre a Guerra do Vietnã, no qual condenou os erros do exército norte-americano e dos generais políticos que o comandavam. A citação abaixo dá uma ideia do conteúdo do livro.

“A guerra tirou a vida de 58 mil soldados norte-americanos e de mais de um milhão de vietnamitas. Deixou o Vietnã em ruínas e consumiu bilhões de dólares, quase destruindo a economia norte-americana. O Vietnã dividiu a sociedade e impôs aos EUA o maior trauma desde a Guerra Civil. Levou os estadunidenses a questionarem a integridade dos governos como nunca antes foi feito”.

Provavelmente foi esta a razão da demora em ter sido promovido a general... Parece que uma personalidade com tais qualidades e tal passado poderia representar um grande avanço na política externa do governo Trump. É possível que sim, em determinadas questões. Não em todas, porém.

McMaster, como outros generais, vê a política internacional como uma verdadeira guerra. Nela, países e movimentos que se opõem às alianças yankees, não aceitam a hegemonia mundial norte-americana, apoiam adversários, fortalecem revoluções contra países “do bem” ou “ameaçam a América” somente por terem armas nucleares são tidos como inimigos a serem temidos e enfrentados, com diplomacia ou mísseis, conforme o caso.

A Rússia preenche todos esses requisitos. E ainda por cima está carimbada como “potência do mal” desde o fim da 2ª Guerra Mundial.

Por alguns anos, livrou-se desta carga com o desastroso governo Iéltsin, que privatizou a economia russa a preço de banana e aceitou a imposição da ordem norte-americana sobre o mundo. Com Putin no poder, a Rússia voltou a complicar. Daí sua classificação como o inimigo público número 1 dos EUA, pela maioria da sociedade.

O general James Mattis e a dupla de assessores particulares de Trump

Entre os generais, esta colocação é majoritária. No entanto, McMaster sempre se mostrou pragmático. Ele admite estar preocupado com a expansão da Rússia e do Irã. Mas está longe de pertencer ao War Party (Partido da Guerra).

Em discurso no dia dos veteranos, em 2014, dissecando a guerra, ele afirmou: “pensando claramente no problema da guerra e dos armamentos, ambos são infelizmente necessários e o melhor meio para evitar a guerra”. O mesmo não se poderia dizer de outro general que, como Secretário da Defesa, James Mattis, também influencia a política externa de Washington.

Mattis soma com a maioria dos seus colegas de farda, colocando a Rússia como inimigo número 1. Em 2017, disse que a ordem mundial está “sob ataque, desde a 2ª Guerra Mundial, pela Rússia, grupos terroristas e pelas ações da China no Mar do Sul da China”.

No entanto, ele parece ter uma estranha fixação com o Irã que, para ele, é algo de especialmente maléfico. Perguntado sobre as três principais ameaças ao Comando Central (dirigido por ele no governo Obama), respondeu: “Irã, Irã e Irã”. Segundo o indômito cabo de guerra, os iranianos não seriam inimigos do EI, que ele considera “não mais do que uma desculpa para o Irã continuar com sua mistificação”.

Estas posições extremadas deixaram o general Mattis desconfortável no seu cargo. Obama o despediu depois que o general defendeu atacar alvos no Irã em retaliação às mortes de soldados no Iraque, efetuadas pelo Hezbollah, movimento apoiado por Teerã.

Esclareço: nesse momento histórico, o Hezbollah lutava pela expulsão das forças armadas norte-americanas, que ocupavam o país iraquiano. E vejamos agora mais esta pérola do novo falcão do governo Trump, que em plena audiência do Congresso de confirmação de sua nomeação trouxe este suvenir da Guerra do Afeganistão: “era uma alegria infernal matar talibãs”.

Não deve ser por motivos aleatórios que ele é chamado entre seus pares de “Cachorro Louco” (Mad Dog).

Contra Rússia, Irã e outros, Mattis promete aumentar ainda mais o poder letal das forças armadas. “Nossas forças armadas neste mundo permanecem as melhores comandadas, as melhores equipadas e as mais letais do mundo”. E ele ainda quer mais!

Isso é preocupante ao lembrarmos frase de Madeleine Albright, ex-secretária de Estado do governo Clinton, ao pacifista general Colin Powell. “Qual é vantagem de termos esta superioridade militar que vocês falam sempre se não pudermos usá-la?”

Felizmente, o Mad Dog acalmou o ambiente, esclarecendo: “Os EUA deveriam tirar vantagem deste seu poder de intimidação”.

Não pensemos que o general James Mattis tem o mesmo nível de agressividade de Patton (herói da 2ª Grande Guerra), com quem muitos o comparam injustamente. Ao lado do general McMaster, o secretário da Defesa respeita os muçulmanos, quer que sejam tratados com justiça. Para ele, isso seria essencial para a própria segurança.

Na guerra do Iraque, Mattis combateu os abusos de prisioneiros do país asiático e ajudou a acabar com o uso de torturas numa prisão onde um prisioneiro iraquiano, sob custódia dos norte-americanos, morreu depois de ter sido espancado brutalmente.

Já no governo atual, Mattis chegou às manchetes ao negar a iraquianos, em Bagdá, que os EUA quisessem tomar o seu petróleo (contradizendo o próprio Trump). E também por convencer o presidente a desistir da funesta ideia de legalizar novamente o waterboarding e outros procedimentos interrogatórios afins. Outra posição importante oposta às de Trump foi a defesa da solução dos dois Estados independentes na Palestina.

Mattis foi mais adiante: proclamou que a contínua ocupação militar da Palestina por Telavive ameaçaria até a segurança norte-americana e poderia tornar Israel um Estado de apartheid. Acredito que estas posições em favor dos direitos dos povos muçulmanos sejam compartilhadas pelo conselheiro nacional de segurança, o general McMaster, como seu passado faz crer.

Mas serão certamente atacadas pela dupla de conselheiros privados de Trump: o estrategista-mór Bannon e o genro, Kushner, marido da filha mais velha.

Bannon, como se sabe, foi diretor do site ultradireitista, xenófobo, racista e misógino Breitbart. É conhecida sua opinião sobre o islamismo. “O Islã não é uma religião de paz. Islã é uma religião de submissão”, afirmou.

Já a família de Kushner vem enviando dinheiro para os assentamentos judaicos, há anos condenados pelos governos norte-americanos e há pouco pela ONU, por impedirem um acordo de paz e violarem as leis internacionais. Os dois assessores são tão afinados politicamente que mandaram derrubar uma parede entre seus escritórios, para poderem ficar mais próximos.

Atribui-se à influência de Bannon e Kushner a nomeação para embaixador em Israel de um judeu-americano ultradireitista e ativo defensor dos assentamentos e da ocupação da Palestina.

De cara, esse cidadão fez saber que a embaixada dos EUA será logo mudada para Jerusalém, o que representaria sua confirmação como capital do Estado israelense, fato terminantemente proibido pela ONU. Houve reações de organizações judaico-americanas liberais, principalmente a JStreet. Aparentemente sensível aos protestos delas, Trump passou a procrastinar a mudança da embaixada.

O general Rex Tillerson

Também é fato corrente que o descarte por Trump da solução dos dois Estados, há 20 anos defendida pelos governos de Washington, deve-se a conselhos dos dois assessores aliados. Projetaram passar uma ideia de que o presidente não era intervencionista, mas democrático e imparcial, ao deixar a solução da crise da Palestina por conta das partes envolvidas.

Como Israel, na verdade, não quer mudar nada, os palestinos não poderão convencer Telavive a aceitar um acordo justo de independência do Estado da Palestina. Por enquanto, não há evidências do que farão as duas outras autoridades com voz ativa nas posições externas de Tio Sam. A mais importante, Rex Tillerson, secretário de Estado chegou ao poder com antecedentes promissores.

Era visto como amigo de Putin, do qual até recebera uma condecoração, e pragmático pela sua atuação em muitas negociações da Exxon (presidida por ele), com dirigentes russos e de outros países do Oriente Médio. Esperava-se que ele daria um grande suporte à aliança EUA-Rússia, planejada por Trump.

Mas tudo indica que isso não aconteceu e ele ficou fora dos contatos iniciais mantidos pelo então conselheiro de segurança externa, o defenestrado general Michael Flynn.

Ao contrário do que se pensava de Tillerson, já na audiência de confirmação no Congresso, ele se mostrou um legítimo adepto do War Party. Criticou Obama, pois deveria ajudar a forças armadas da Ucrânia a lutar contra a Rússia para recuperar a Crimeia. “Minha opinião é de que deveria haver uma exibição de força, uma resposta militar, uma postura defensiva”.

Também censurou a inação de Obama diante da China, afirmando que, se depender dele, os EUA não permitirão que a China continue construindo ilhas artificiais no Mar do Sul da China. Isso deveria ser comunicado a Pequim, acrescentando-se ainda que o acesso às ilhas já prontas não seria permitido aos chineses.

A manifestação de Tillerson que impactou com maior intensidade foi a de que os EUA deveriam apresentar maior disposição de ir à guerra. Faltou adicionar pelo menos um “se necessário”. Melhor acreditar que fora um lapso...

De qualquer maneira, para a humanidade que odeia guerras, não é alentador o princípio lembrado por Tillerson, de autoria do ex-presidente Teddy Roosevelt: “movimente-se suavemente e carregue um grande porrete”. Não sabemos se essas ideias do novo secretário de Estado sejam mesmo sinceras. Ou se Tillerson as está lançando para tranquilizar a maioria republicana, assustada com as ligações perigosas dele com Putin e o avanço vermelho – perdão – com Putin e suas más inclinações. Convém esperar mais um pouco.

O diretor da CIA

O último homem em condições de tentar orientar o caminho no exterior é o diretor da CIA, Mike Pompeo.

Na Câmara dos Representantes, era um definitivo defensor dos agentes torturadores da CIA, a quem ele galardoava com o título de “patriotas”.

Há dois anos, respondendo a perguntas de Comitê do Senado, disse que aprovava a inclusão de mais alternativas (como o warterboarding) à lei de 2015 que listava as técnicas de interrogatório aceitas pelo governo, excluindo as torturas.

Certa vez, numa entrevista radiofônica, chamou os líderes islâmicos da América de cúmplices em potencial do terrorismo, pois jamais denunciavam atos terroristas, o que é mentira.

Depois de configuradas suas tendências, Pompeo, uma vez nomeado, surpreendeu, ao se declarar contra torturas, das quais era fã no passado.

Seja como for, não dá para confiar nesse indivíduo, especialmente depois da nomeação para seu vice de uma agente da CIA, ex-chefe de um dos buracos negros da agência (na Tailândia) onde se praticaram as mais cruéis torturas, sob sua aprovação. Não dá para imaginar que a CIA irá mudar sob nova administração a cargo de Mike Pompeo.

Com ele, as demais figuras da equipe de política externa estadunidense e as ações do próprio Trump, as perspectivas não são boas.

O fim da solução dos dois Estados augura o abandono pelos palestinos da ideia de conseguirem sua independência pela diplomacia.

Se Mattis e McMaster não barrarem as pretensões de Netanyahu, ultimamente até excedidas por Trump e sua dupla de assessores amigos, uma Terceira Intifada parece inevitável.

Nas fronteiras da Rússia com os ex-satélites da União Soviética, a situação de conflitos latentes com a OTAN e os EUA pode evoluir para conflitos abertos.

O acordo nuclear com o Irã, essencial para a paz no Oriente Médio, só subsistirá se defendido com firmeza por União Europeia, Rússia e China. Capaz de vencer os desejos destrutivos de Trump e do general Mattis.

Caso Tillerson estiver falando sério, o governo Trump irá comprar briga com a China, com consequências imponderáveis, mas certamente graves. Sem EUA e Rússia amigos, a Guerra da Síria não tem como acabar tão cedo.

Felizmente, o califado do Estado Islâmico parece ter seus dias contados. Mesmo com as aviações russa e norte-americana bombardeando sem coordenação entre si, os bárbaros wahabitas devem perder os territórios que ocupam até o fim do ano.

Continuarão perigosos, mas apenas na clandestinidade, o que diminuirá sua capacidade de assustar o mundo. Isso também ficará por conta do governo Trump e suas políticas erráticas, férteis em surpresas, até agora desastrosas.


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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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