Correio da Cidadania

Da despolitização à antipolítica e o neoliberalismo que fica

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Choro negro. Obra de Nuno Ramos

Nas últimas duas décadas, com ou sem atalhos “progressistas” ou “inclusivos”, o neoliberalismo prosseguiu em trajetória irrefreável em virtude justamente do caráter inatingível de seu objeto idealizado: a absoluta mercantilização de qualquer intercâmbio ou interação social. Na prática, nunca se dá por concluída a tarefa da “liberalização” econômica: tanto o conceito como o programa são consoantes com programas contínuos de contrarreformas concentradoras e particularistas.

A perenidade ou a longa duração do neoliberalismo no Brasil é fruto de acordos financeiro-monopolistas e de apropriações decorrentes que foram sendo renovadas desde os anos 90. O neoliberalismo, como prática política, em contradição com sua matriz teórica originária, sempre foi um regulacionismo seletivo dissimulado. Ao invés de encontrar rótulos mais ou menos condizentes com as readequações entre os capitais, suas frações e representações, devemos observar de que forma as atuais práticas de liberalização e de posterior re-regulamentação constituem um modo específico de acumulação: concentrador, financeirizado e transnacionalizado.

O capitalismo globalmente financeirizado, gerido por meio de variações neoliberais, não se sente mais premido por nenhuma pauta transformadora, demarcada por um mínimo que seria a reforma e por um máximo, que seria a revolução. Ao invés de reforma fala-se de ajuste; e faz-se a readequação das posições de poder consolidadas no arranjo oligopolista. Ao invés de revolução, fala-se de terrorismo; e faz-se a guerra total contra tudo que se lhe assemelhe.

Na enorme caldeira fervente da crise, desintegram-se padrões de seguridade social ou de soberania nacional. Solapado o Estado como esfera distinta da mercantil, passam agora ao desmonte da sociedade através de programas de erradicação das últimas fontes e formas de socialização da riqueza e do poder. O tratamento é de choque e por tempo indeterminado.

A reivindicação do “livre mercado” ou do “mercado autorregulado”, mais que uma panaceia, serve para alinhar – política e institucionalmente – uma estratégia de “destruição criativa maciça” em um contexto de fragmentação e dessubjetivação da classe trabalhadora e de esboroamento de seus referenciais identitários.

No caso brasileiro, é crucial compreender como um projeto democratizante, oriundo de um conjunto de mobilizações sociais dos anos 1980, foi sendo neutralizado no interior de um projeto de neoliberalização, que pode assim enraizar-se e redefinir a forma societal e a forma política do Estado. Postas em marcha as etapas de desregulamentação e re-regulamentação nos dois mandatos de FHC, foi necessário adotar um “freio de arrumação” social e político a partir de 2002.

Com Lula e o PT, teria sido possível confluir para alguma forma de “neoliberalismo inclusivo”? Esta definição sugeriria uma complexa e delicada articulação entre políticas macroeconômicas neoliberais e uma rationale micropolítica fundada em tecnologias de inclusão social.

Enquanto as empresas brasileiras e estrangeiras e seus colegiados (a sociedade civil burguesa) avançaram céleres para fórmulas de mediação de conflitos e de composição de interesses, (res)semantizando conceitos e plataformas críticas e compondo estratégias de gerenciamento do “risco social”, o Estado atuava decididamente no interior do mercado financeiro como parte e contraparte. As empresas, assim, estenderam sua engenharia ao social, em dupla e recíproca racionalização da dominação.

Não podia ser outro o diferencial da coalizão político-econômica formada nos Governos Lula e Dilma até meados de 2013, apresentado por fundações empresariais internacionais e pelo Banco Mundial como exemplo de combinação de eficácia e efetividade na implementação de políticas de liberalização e de estímulo ao investimento do setor privado.

O fato de terem sido criadas, no Brasil, as condições para a construção de uma esquerda adestrada fez com que a direita desaparecesse, sinistramente, passando ela própria a ser a demarcadora, em cada momento, dos limites do que fosse o “centro”, subsequentemente o que seria o “razoável” e o “necessário”.

O reconhecimento oficial dos exageros do neoliberalismo originário como receita única e a validação, na sequência, de um neoliberalismo inclusivo tornam tentadoras as interpretações teleológicas, mais ainda se vislumbrarmos que tipo de neoliberalismo ascende a partir de 2016.

Quando os referentes inclusivos são incorporados para estabilizar dinâmicas e institucionalidades neoliberais, estas se tornam inquestionáveis. Da despolitização do primeiro neoliberalismo evoluiu-se para a política da despolitização do segundo; o que deixa o caminho aberto para a evacuação da política, na terceira e última versão.

Como seria possível levar a efeito alguma ruptura com a ordem neoliberal, priorizando desgastes parciais através das suas linhas de menor resistência, permanecendo intocadas as de maior resistência? Através das brechas, o máximo que podia vingar era um reformismo incremental, tolerado na medida em que reforçasse e suplementasse o que era central no modelo. O que se obteve ao final e ao cabo de dois governos autodesignados “pós-neoliberais” foi a consolidação do núcleo – a cidadela do capital concentrado e financeirizado – e ajustes estabilizadores temporários nas bordas.

A temporariedade dessa composição ficou patente logo depois de dilapidada a força social acumulada em décadas de luta. O sinal primeiro desse esgotamento foi emitido partir das manifestações de 2013, em que ficou patente a incapacidade dos setores progressistas e de esquerda de estabelecerem algum nível de interlocução com o novo conjunto de anseios e insatisfações populares que se assomava.

Em decorrência disso, a sinalização seguinte, dada nas eleições de 2014, já trazia embutida uma agenda subterrânea que deveria ser seguida a despeito de qual fosse a escolha do eleitorado. Dilma foi eleita e simultaneamente impedida de governar nos marcos negociais antes vigentes. A nomeação, em 2015, de um interventor do mercado financeiro (Joaquim Levy) na condição de Ministro-chefe da área econômica, como primeiro ato de governo, já era uma demonstração de que a ruptura institucional já se dera e que as instituições estariam “em aberto” a partir dali.

Com a ruptura institucional de 2016, as intermediações fornecidas pelo PT e sua coalizão foram não só descartadas, mas enxovalhadas, o que quer dizer que as margens para acordos policlassistas, mesmo os mais rebaixados, foram praticamente suprimidas. Para que a burguesia brasileira e suas tutoras estrangeiras voltassem a dormir tranquilas, já não bastava garantir curva ascendente de extração de mais-valor, era preciso apresentar e ritualizar sacrifícios de força social organizada que pudessem eventualmente ameaçá-las.

O esvaziamento das eleições presidenciais, e da própria figura presidencial, ao longo desses anos se deu na razão direta da gestação da unidade burguesa no Brasil. Sabendo que o tamanho e profundidade do saque define o grau de unidade entre facilitadores e sócios da pilhagem, o transitório governo Temer apostou no desdobramento temporal da fórmula. A recompensa incalculável oferecida aos mercados foi a constitucionalização do ajuste fiscal, com o congelamento dos gastos primários por no mínimo duas décadas, o que implicou em um sucateamento programado de serviços públicos essenciais como saneamento, saúde e educação e sua subsequente privatização.

As forças alinhadas à direita no Brasil buscaram pulverizar não apenas uma liderança ou uma legenda, e sim seu estofo histórico, como se dele emanasse a expressão possível da esquerda, ou ainda de qualquer luta social. Não é a máquina eleitoral-administrativa – que o PT ergueu à semelhança dos partidos da ordem – que foi posta no centro do alvo.

Contrarrevolução preventiva e permanente

Essa é apenas a parte visível e estigmatizável, que se mesclou com os conglomerados privados e suas representações de aluguel. Na verdade, foram as práticas classistas e emancipadoras vindas de baixo, com autonomia e pluralidade, que passaram a ter sua existência posta em questão. O que querem expurgar é a representação social da luta dos trabalhadores e a legitimidade das suas conquistas históricas.

O clamor seletivo que se orquestrou por algumas cabeças ocultava uma revanche burguesa tardia contra conquistas populares iniciadas nos anos 80. Essa contrarrevolução sem revolução logo virou operação de rolo compressor sobre conflitualidades e alteridades potenciais. Na lógica da conversão de pilhagem e super-exploração em competitividade nacional, se dissolveu qualquer pretensão de regulação dos processos de monopolização de setores e mercados.

Com o esvaziamento das instituições de mediação em função da cristalização de agendas privadas consensuadas, a exemplo das contrarreformas postas e repostas em pauta no Brasil, a política - como contestação de comandos unívocos - desapareceu da cena, isto é, do sistema oficial de representação. A proscrição da controvérsia sobre os fins – para além dos meios do que pode e deve levar ao bom funcionamento do mercado – inviabiliza a política democrática, ou qualquer política vinculada a propósitos potencialmente comuns ou majoritários.

É preciso decifrar sem mais perplexidades a unidade burguesa e pró-burguesa forjada em torno da estratégia de “mais capitalismo” para todos subsumidos ou em vias subsunção. Uma crise perene e sem colapso promove “movimento”, mas não com viés redistributivista, sim na direção oposta, considerando que a flexibilidade intrínseca à nova institucionalização dos mercados desregulados é aquela que permite restaurar e depois exponenciar graus e ritmos de acumulação de capital. Seu itinerário é a destruição dos referenciais coletivos de organização e das garantias objetivas e subjetivas dos direitos sociais e políticos da classe trabalhadora no Brasil.

Na locução oficial dos mercados (Fórum de Davos, Banco Mundial e FMI), a esterilização dos espaços de percepção dos embates de classe que ainda poderiam impor constrangimentos à “política econômica necessária” e à aprovação da “inadiável” reforma da Previdência, seria uma demonstração da plena maturidade institucional do país, ainda que Estado e sociedade estejam se decompondo em um quadro de guerra civil latente. Para que o legalmente constituído seja tolerado, ou seja, para que não haja rupturas institucionais propriamente ditas, as vozes do ultraliberalismo exigem demonstrações seguidas de acefalia governamental.

Tais demonstrações, muito pródigas no governo Bolsonaro, balizam as condições atuais da governabilidade, ou seja, do “governo único” possível em um país sob intervenção tácita da banca financeira e das corporações transnacionais que nele estabeleceram laços territoriais.


Luiz Fernando Novoa Garzon é sociólogo e doutor em Planejamento Urbano e Regional, Professor da Universidade Federal de Rondônia.
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