Correio da Cidadania

Christoulas morreu para nos salvar

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Há mais de dois mil anos, na Judéia, um filho de Deus foi arrastado em sacrifício e, sendo quem era, se deixou morrer para nos salvar. Ele anunciava outro reino, outro mundo possível, ancorado em valores no contraponto radical aos dominantes na época. Afrontou vendilhões, chicoteou os serviçais da banca de câmbio instalada nas portas do Templo. Uma “práxis” perigosa para os desígnios de Roma, uma ameaça para os artífices locais da subordinação ao Império. Condenado como Messias impostor, foi crucificado.

 

Os passos do seu calvário são rememorados até hoje, em quase todo o mundo, durante a semana santa.

 

Outro filho de Deus, Dimitris Christoulas, farmacêutico aposentado de 77 anos, em plena semana santa do ano em curso, também buscou a morte como sinal de alerta. Ele se matou com um tiro na cabeça em plena praça pública. Foi na Grécia, berço e, ao que tudo indica, túmulo de um ocidente corroído até a medula pelo poder do dinheiro. Foi na Praça Syntagma, ponto central de protestos dos “indignados” atenienses agora sem Ágora, localizada no lado oposto ao Parlamento, protegido por tropas de choque e dominado pelos serviçais do império financeiro que avassala o mundo.

 

Embora separados por dois milênios, são acontecimentos emblemáticos dos tempos agônicos, aqueles que demandam, prenunciam e buscam “passagens” para outra sina. O mistério profundo do limite extremo, o da própria morte, foi o caminho encontrado por Jesus Cristo e Dimitri Christoulas como forma de afirmar outros valores e abrir caminhos na busca por ressurreições.

 

Segundo testemunhas, antes de atirar na própria cabeça, o Christoulos grego gritava: “Não quero deixar dívidas para os meus filhos”. A Grécia está em recessão há cinco anos. Lá, uma em cada cinco pessoas está desempregada e sucessivos cortes de salários e pensões atingem os que ainda têm emprego ou estão aposentados. O trabalho duro e o suor do rosto já não garante o pão nosso de cada dia. A vertigem cruel do capitalismo financeiro acrescentou gravames ao pecado original. A morte de Christoulos é um sinal de alerta. Tal qual o crucificado do Gólgota, ele quis livrar os filhos de fardos e reaproximá-los da árvore da vida.

 

Na nota escrita de próprio punho, um texto terrível, Dimitris afirma: “não encontro outro caminho para reagir a não ser dar um fim digno e definitivo antes que eu tenha que começar a revirar o lixo para sobreviver”. Em trecho anterior, deixa claro que a brutalidade da crise prepara as explosões do ódio inumano: “não tenho idade que me permita responder ativamente, ainda que seria o primeiro a seguir alguém que tomasse um fuzil kalashnikov”. São os indicadores de um tempo histórico difícil de compreender, onde a defesa da vida se dá sob o signo da morte.

 

O primeiro ministro, que atende pelo curioso nome de Lucas Papademos, lamenta o ocorrido. Mas está otimista. Segundo ele, basta aplicar com rigor os remédios recomendados pela “tróica” do império financeiro para tudo melhorar daqui a um ano e meio. Lá como cá, o receituário é o mesmo: reduções de gasto público, privatizações, drástico pacote de cortes nos direitos sociais e trabalhistas. E dinheiro aos montes para as burras do cassino financeiro.

 

O líder dos “socialistas”, Evangelos Venizelos, outro nome curioso, compartilha no atual governo a gerência do capitalismo cruel. Ele se declarou triste e “sem palavras” diante do episódio que chamou de “monstruoso”. Julga alheias responsabilidades que são também suas. Lavou as mãos como Pilatos no credo, mas terá sempre o seu lugar marcado entre os que fizeram verter o sangue deste justo. Aliás, o FMI também enviou condolências.

 

A cultura grega e o cristianismo são pilares de um certo ocidente que se decompõe diante de nós, fragmentado no giro vertiginoso da roleta financeira. Caos, metamorfose, êxodo, suplício, calvário, vale de lágrimas, expressões caras entre os cultores das duas tradições, estão presentes no episódio que arrastou para a Grécia as atenções da opinião publica mundial.  A “via crucis” do Nazareno foi revivida na Praça Syntagma, o coração do ocidente profundo e profanado. Christoulos morreu para nos salvar.

 

Leo Lince é sociólogo.

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