Correio da Cidadania

As milhões de mulheres de A Vida Invisível

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O filme A Vida Invisível já está fora da disputa do Oscar, mas merece ser assistido. Arranca lágrimas de quase todos os presentes na sala de cinema. Comigo não foi diferente. Custei a me recompor depois que a luz acendeu. Olhei ao redor e vi rostos impactados. Mas não basta que uma história seja triste para que se precipitem lágrimas tão incontidas. É preciso que a tristeza fale sobre nós, sobre nossas misérias, sobre as injustiças do nosso mundo. Por isso A Vida Invisível não é apenas um filme sobre o “sofrimento das nossas avós”, ou a dor das mulheres de uma geração que já passou. É um filme sobre a ancestralidade das batalhas femininas que alimentam as nossas batalhas. 

Desde a adolescência, o sonho de Eurídice Gusmão é ser pianista. Sua irmã, Guida, a apoia e incentiva a prestar um concurso para o Conservatório de Viena. Estamos em 1951, Rio de Janeiro. Eurídice e Guida não são somente irmãs, são melhores amigas, parceiras. O pai português, contudo, é um velho patriarca que já traçou para as filhas um futuro premeditado: esposas, mães, donas de casa. Desvios não são bem recebidos. A mãe é uma mulher discreta: “ela é uma sombra do meu pai”, desabafa Guida. Quase invisível. 

Com 19 ou 20 anos, a intempestiva Guida resolve fugir de casa num navio com um marinheiro grego, que ela pensava ser seu namorado, mas logo se revela apenas um canalha. Depois de meses desditosos na Europa, a carioca volta grávida e solteira para casa dos pais: “eu cometi um erro”, diz sorrindo. Mas seu pai a enxota como a um animal, para nunca mais ser recebida na família. O ódio e a vergonha do pai contra a filha errática são complementados pela subserviência da mãe, que apenas obedece.

No ano da fuga de Guida, Eurídice se casa com Antenor, um homem típico dos anos 1950, conservador e opressor. As cenas de sexo do casal são, efetivamente, cenas de estupro. Antenor se revolta com o desejo de Eurídice de desenvolver uma carreira. À Guida, o pai diz que Eurídice foi ser pianista em Viena. À Eurídice, diz que Guida nunca voltou de sua aventura e, para ele, “está morta”. Da mãe, o silêncio.

Assim, de maneira torpe, os pais separam as irmãs, que vivem na mesma cidade, mas acreditam habitar continentes diferentes. Ambas imaginam que a outra está realizando sonhos e encontrando a verdadeira felicidade – um espelhamento imaginário de vidas invisíveis. Na realidade, as duas mulheres atravessam a mais profunda melancolia, massacradas e separadas pelo mundo dos homens.

Guida, porém, encontra refúgio na rede de solidariedade de Filomena, mulher negra e periférica, que se dedica a cuidar das crianças do subúrbio para permitir que as mulheres pobres possam trabalhar. Filomena acaba por tornar-se uma inspiração e uma identidade para Guida, representando a potência também invisível da negritude feminina e dos circuitos de reciprocidade comunitária. O que as condena, é masculino e branco.

Guida nunca deixa de enviar cartas a Eurídice, interceptadas pelos pais sem chegar ao destino. O amor entre as duas irmãs é interditado. O filme instaura, pouco a pouco, uma dor que se arrasta pela vida, um buraco na existência daquelas irmãs, cuja falta uma da outra é quase sem sentido. A tristeza é conjugada no futuro do pretérito. E se Guida nunca tivesse fugido? O que aconteceria quando se encontrassem? Se ajudariam? Se fortaleceriam? Seriam parceiras para enfrentar um mundo hostil? Batalhariam juntas por seus projetos?

O filme narra, enfim, como o mundo dos homens viola a solidariedade entre as mulheres, numa operação contínua de dividir para conquistar, assim como nos ensinou a historiadora Silvia Federicci. Ao poder masculino importa controlar os passos das mulheres, obstruir seus sonhos, colonizar seu corpo, impor a servidão do matrimônio como natural, separá-las da sua potência, apagá-las.

Por isso, as lágrimas que choramos em A Vida Invisível são lágrimas ancestrais, que trazem à tona uma verdade antiga e redescoberta pelo feminismo contemporâneo: que o amor entre mulheres é um contrapoder político. A sororidade, que em todos os tempos teceu sua rede vital e invisível (representada no filme pela figura negra da Filomena), cresce. A consciência sobre ela se instala na subjetividade política do nosso tempo, e não irá mais embora.

Joana Salém Vasconcelos

Historiadora e mestre em Desenvolvimento Econômico

Joana Salém Vasconcelos
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