Correio da Cidadania

Aprender a soltar

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Soltar os cachorros. Sobre aqueles que nos manipulam. Sobre aqueles que nos tratam como animais.

 

Soltar os pássaros. Pela janela. Em nome do infinito. Tendo ao longe o horizonte. Tendo por perto a vontade de voar também.

 

Soltar os cavalos. Pelo mundo afora. Pela vida afora. Com a alegria de correr. Com a esperança de chegar. Com a velocidade do amor. Sem medo de ir. Sem medo de voltar.

 

Soltar as árvores. De suas sementes esmagadas. Acompanhar-lhes o crescimento. Colher seus frutos na hora exata. Aprofundar suas raízes. E que suas folhas sejam muitas. Que sua sombra seja imensa.

 

Soltar os filhos. De meus medos infundados. Deixá-los ser o que hão de ser. Soltá-los sem abandoná-los. Soltá-los sem esquecê-los. Soltá-los de amarras imaginárias. Soltá-los para a vida. Preparados para viver a sua própria vida, não a minha, não a de ninguém.

 

Soltar as palavras. Libertá-las da sintaxe enrolada. Soltar as palavras no texto. Soltar as palavras dos falsos pretextos. Soltar as palavras aqui e agora. Soltá-las com força. Soltá-las com raiva. Soltá-las em lirismo. Soltá-las em drama. Soltá-las do dicionário-presídio. Soltá-las da gramática-exílio.

 

Soltar as idéias dia a dia. Soltá-las em ordem, em desordem. Soltá-las na conversa, à mesa, na fila do banco, no banco de praça, na pressa e na calma. Soltá-las, servi-las. Entregá-las aos outros. Trocá-las por outras. Acrescentá-las a muitas outras idéias. Idéias soltas nos prendem à tarefa que nos cabe cumprir.

 

Soltar os braços. Para trabalhar. Para nadar. Para lutar. Para criar. Soltá-los hoje. Soltá-los amanhã. Soltá-los do corpo. Deixar que se estendam. Que envolvam o mundo. Que dêem mil voltas ao planeta. Que alcancem as estrelas. Que acolham o divino. Que abracem, abracem.

 

Soltar a voz. Cantando. Gritando. Chorando. Ensinando. Avisando. Por tudo e por nada. Em guerra, em paz. Por um motivo justo ou porque tanto faz. Estando com outros. Falando sozinho.

 

Soltar as velas. Na hora de partir. Na hora do mar. As ondas. Os peixes. A terra não vista. A vista perdida. Soltar as velas de novo. De novo soltá-las. As velhas velas de novo.

 

Soltar-me a mim mesmo. Ainda é bem cedo. Soltar-me de mim. Do inquisidor que eu sou. Do sinhozinho que eu sou. Do ditador que eu sou.

 

Soltar o leitor. Soltá-lo de mim. Que ele seja o autor de sua própria leitura.

 

Aprender a soltar-se.

 

Gabriel Perissé é doutor em educação pela USP e escritor.

 

Website: http://www.perisse.com.br/

 

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Comentários   

0 #4 Li Alves 18-11-2008 13:58
Sou academica em Serviço Social e fazendo pesquisas sobre Politica, encontrei este site que é e continua sendo de grande valia para mim. Faço aqui um apelo: jamais páre de escrever textos tão ricos e sensiveis como este.
Um grande abraço

Serra- ES
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0 #3 Agostinho de Almeida Moreira 23-07-2008 05:03
È um texto maravilhoso cuja essência nos remete para o que é fundamental na vida.
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0 #2 APRENDER A SOLTARErnandes Bolsanello 21-07-2008 07:09
Caro Gabriel Perissé

Este seu texto está solto do limite da beleza e caminha para além do infinito.
Parabéns !

Abração do Ernandes Bolsanello
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0 #1 sobre o textojosé nazareno dos santos ferre 13-07-2008 07:28
como grande admirador do autor o texto,não tenho como traduzie essa"Pérola literária" tão inefável,que nos remete a uma profunda reflexão interior sobre a simplicidade da vida.Como poeta
diria que é um texto pra posteridade pela sua essência de beleza e clareza de estilo
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