Visão, tempo e identidade
- Detalhes
- Gabriel Perissé
- 19/05/2008
No espaço de oito dias, perdi os óculos não sei onde, o relógio não sei quando e a carteira de identidade não sei por quê. Se poeta eu fosse, diria ter perdido a visão, o tempo e o meu próprio "eu".
Como sou um "homem idiota", no sentido socrático da expressão, homem comum do qual só se pede a verdade, o certo seria providenciar uma segunda via da carteira de identidade, comprar outro relógio, mandar fazer outros óculos...
Sem a visão, porém, deixei de ler e escrever. A linguagem escura me envolveu. Caverna sem fim, passagens estreitas, escorregão, queda, tropeço, queda.
Como reencontrar a visão sem a visão necessária?
A perda do tempo foi num minuto. As horas demoradas ou a década veloz, tudo parou de passar. Tudo não passa, não chega, não vem. O futuro não passa. O presente não se futuriza. O tempo não há. Sequer posso contemporizar...
Como poderei agora reclamar do tempo, seja fugaz ou interminável? Tempo perdido, perco a noção do certo e do errado. Meus passatempos perdem sua função. Não há mais atrasos ou adiantamentos. Não preciso sofrer se o minuto de dor é longo, se a semana de prazer é num piscar de olhos...
Sem tempo, esqueço a frase "estou sem tempo". O tempo se foi, sumiu, aquela algema no pulso esquerdo foi retirada sem eu perceber.
A identidade era de 1978, rosto imberbe, seriedade adolescente. O que aconteceu comigo nesses últimos 30 anos? As idéias começam a ficar grisalhas. Trocaram de pele.
Vou, no entanto, poupar meu tempo e buscar outra identidade. As impressões digitais são as mesmas. Mudaram as impressões mentais, são outras as tentações, as opiniões, as desilusões.
Em algumas horas, ganhei novo tempo, nova identidade. Resta-me buscar nova visão. Hoje, em qualquer esquina, existem mil olhos à venda, pontos de vista ao alcance do bolso, horizontes bons e baratos.
No começo, é difícil aceitar a nova identidade, essa outra visão, esse maldito... bendito tempo. Jamais serei o mesmo depois desses oito dias de liberdade, cegueira e anonimato.
Identificado, de novo, sei que serei eu a dizer "eu", sem heterônimos a me ajudarem, sem pseudônimos a me protegerem, sem homônimos a me substituírem.
De novo cronometrado, de novo correndo contra o tempo. De novo no caminho longo-curto. Correndo no túnel do tempo. Até o instante final.
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor.
Website: http://www.perisse.com.br/
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