Viver é perigoso
- Detalhes
- Gabriel Perissé
- 10/04/2008
Viver é muito, muito perigoso, repetia o jagunço Riobaldo Tatarana, personagem inesquecível de Guimarães Rosa.
Para muitos, porém, a afirmação ultrapassa os limites literários e metafísicos. O próprio viver cotidiano, para os mais assustados, é cancerígeno, a acreditar no que lemos em jornais, revistas, sites, blogs, e também no que "aprendemos" em conversas sem melhor assunto.
Já li e ouvi de tudo a esse respeito.
Que o incenso é altamente cancerígeno, para desespero dos místicos de diferentes crenças.
Que o telefone celular é cancerígeno, para desespero de 45% da população mundial, o ouvido atento grudado nele.
Que o adoçante artificial é cancerígeno, para desespero de todos os que fazem a eterna dieta.
Que excesso de perfume é cancerígeno, para desespero de certas mulheres que nele se banham... e de certos homens que o exemplo acompanham.
Que muito banho de sol é cancerígeno, para desespero dos cariocas e todos os que adoram uma boa praia e suas areias ferventes.
Que aquele cheirinho de carro novo é cancerígeno, para desespero de milhões de motoristas que com ele se deleitam.
Que o piercing e a tatuagem são cancerígenos, para desespero dos adeptos da body art, estetas de si mesmos.
Que o chimarrão é cancerígeno, para desespero dos gaúchos que dele fizeram uma forma de pensar e conviver.
Que a fumaça produzida nos churrascos e que impregna as carnes é cancerígena, para desespero de todos os carnívoros, sejam gaúchos, paulistas, maranhenses, cariocas...
Que o amendoim é cancerígeno, para desespero dos que acreditam nos seus poderes afrodisíacos.
Que aquela cerejinha do sundae é cancerígena, para desespero de meio mundo.
Que a batata frita é cancerígena, para desespero do outro meio mundo.
Que muitas e variadas medicações são cancerígenas, para desespero dos hipocondríacos.
Que a fumaça do cigarro inalada pelos não-fumantes é cancerígena também, para desespero dos não-fumantes que amam amáveis fumantes.
E nada impede a inclusão de outros mil itens numa longa e doentia lista.
Livros cancerígenos, sobretudo os que vivem perdidos nos sebos.
Apertos de mão muito fortes talvez sejam cancerígenos.
Ônibus lotados certamente são cancerígenos. O trânsito engarrafado provoca um câncer danado.
Notas de dinheiro velhas são cancerígenas por definição. As novíssimas também.
Cancerígeno o hábito de ficar horas e horas navegando na internet.
Cancerígeno não amar. Cancerígeno humilhar e ser humilhado.
Cancerígeno, enfim, viver pensando que tudo é cancerígeno.
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor – Web Site: http://www.perisse.com.br/
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