A arte de seduzir
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- Frei Betto
- 24/02/2011
Toda ditadura é megalômana. E a que governou o Brasil sob botas e fuzis, de 1964 a 1985, não foi diferente. A construção da rodovia Transamazônica simboliza a arrogância do regime militar.
Rasgou-se a selva de leste a oeste. Abriu-se a estrada em paralelo a caudalosas vias fluviais. Em vez de aprimorar o sistema de navegação pelo rio Amazonas e seus afluentes, a ditadura preferiu obrigar a floresta a ajoelhar-se a seus pés. Possantes máquinas puseram abaixo árvores milenares encorpadas de madeiras nobres, destruíram ecossistemas preciosos, alteraram o equilíbrio ecológico da região.
Tudo em nome de uma palavra tão propalada e, no entanto, vazia de significado: desenvolvimento. Leia-se: exploração predatória da maior floresta tropical do mundo, aberta à voracidade de mineradoras, madeireiras e, sobretudo, do latifúndio predador, quase sempre movido a trabalho escravo.
"No meio do caminho havia uma pedra", repetiria Drummond. Povos indígenas. Como impedir que oferecessem resistência? Simples: através da arte de seduzir. A Funai ergueu tapini (cabanas de folhas). Dentro, utensílios de caça e cozinha, ferramentas etc.
Os índios, encantados com os objetos, acolhiam gentilmente os caras-pálidas. E ingenuamente eram cooptados pelas relações mercantilistas. Em troca de bugigangas perdiam saúde, terras, liberdade e vida.
Detalhe: o mato, não o gato, comeu a Transamazônica, fonte de riqueza e poder de umas tantas empreiteiras.
Hoje, os índios somos todos nós. Os tapini, os shopping, a publicidade, as veneráveis bugigangas que nos agregam valor. O inumano imprime sentido ao humano, como faziam os deuses de ouro denunciados pelos profetas bíblicos: tinham boca, mas não falavam; olhos, mas não viam; ouvidos, mas não escutavam; pés, mas não andavam...
Estamos todos sob o efeito hipnótico do consumismo. Não importa se o produto é frágil ou de má qualidade. Seu design nos cativa. Sua publicidade nos faz acreditar que estamos comprando a oitava maravilha do mundo! E, ingenuamente, que se trata de um produto durável, mesmo conscientes de que o capitalismo não se importa com o direito do consumidor, e sim com a margem de lucro do produtor.
Como se livrar do labirinto consumista que, na verdade, se consuma nos consumindo? Não vejo outra porta de saída fora da espiritualidade, somada a uma nova visão do mundo. Sem espiritualidade corremos o risco – sobretudo os mais jovens – de dar importância àquilo que não tem. Imbuídos da baixa auto-estima que nos incute a publicidade ("você não é ninguém porque não possui este carro, não veste esta roupa, não faz esta viagem...") encaramos a mercadoria como algo que nos agrega valor. Não basta a camisa, a bolsa ou o tênis. Têm que ser de grife, com a etiqueta exibida do lado de fora. Assim, todos à nossa volta haverão de reconhecer o nosso status. E quiçá invejar-nos. E aquele ser humano que, ao lado, carece de produtos refinados, é visto como não tendo nenhuma importância. Pois não se enquadra no atual princípio pós-cartesiano: "Consumo, logo existo".
É espiritualizada toda pessoa cujo sentido de vida deita raízes em sua subjetividade e cujas opções são movidas por ideais altruístas. Ela não faz do que possui – conta bancária, títulos, casa, carro etc. – seu fator de auto-estima. Sabe que tem valor em si, que não é nutrido pela posse de bens e sim por sua capacidade de fazer o bem aos outros. Sua auto-estima se funda na generosidade, solidariedade e compaixão. Ela é feliz porque sabe fazer outras pessoas felizes.
O mercado tudo oferece. Todos os seus produtos nos chegam embrulhados em papel de presente: se compramos este carro, seremos felizes; se bebemos aquela cerveja, nos sentiremos alegres; se adquirimos tal roupa, ficaremos joviais. O único bem que o mercado jamais oferta é justamente este que mais buscamos: a felicidade. No máximo, o mercado tenta nos convencer de que a felicidade é o resultado da soma de prazeres.
Ora, a felicidade é um bem do espírito, jamais dos sentidos, da cobiça ou da arrogância. É feliz quem ousa destampar o próprio ego e conectar-se com o Transcendente, o próximo e a natureza. Esse irromper para fora de si mesmo tem nome: amor. E se manifesta nas dimensões pessoal, no dom de si ao outro, e na social, no empenho de construir um mundo melhor.
Frei Betto é escritor, autor de "Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros. Página e Twitter do autor: http://www.freibetto.org/ - twitter:@freibetto
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Comentários
Utopia? Pobre de quem não a tem!
O consumismo realmente tem sido o principal mecanismo produtor da cegueira das massas. E o fortalecimento da "espiritualidade" (como caracterizada no texto)é obviamente o "antídoto" para a superação desse mal que atinge as pessoas.
Mas o desafio não é só e nem tanto a mudança pessoal de hábito e de "visão de mundo", como Frei Betto se resume a apontar. O principal desafio é combater e derrubar o sistema de poder e controle de massas (o sistema capitalista) que impõe esse modelo consumista visando o lucro.
Parece que há um "esquecimento" proposital de Frei Betto nesse "x" da questão porque aprofundar essa análise teria que esbarrar na própria política adotada pelo governo Lula/Dilma (PAC, etc) que vêm reproduzindo a mesma política "neodesenvolvimentista" que não visa o desenvolvimento humano e sim apenas o desenvolvimento econômico, obviamente apenas para atender aos interesses do grande capital.
Frei Betto, é preciso ter a coragem de continuar dando nome aos bois, como você fazia até antes do governo Lula. Você, no seu texto, cita a ditadura na questão da transamazônica, mas porque omite, p.ex. a transposição do rio São Francisco que está sendo imposto por esse governo?
O fato é que o governo Lula não teve (e Dilma também não terá) nenhuma diferença de fundo dos demais governos, servindo todos fielmente a esse modelo que impõe o consumo exacerbado. Frei Betto, as pessoas são mais vítimas desse modelo do que responsáveis pela sua reprodução. Sejamos justos e corajosos para falar a verdade que tem que ser dita sobre esse governo Lula/Dilma. Doa a quem doer.ELE ESTÁ A SERVIÇO DOS GRANDES DOMINANTES E, PORTANTO, CONTRÁRIO AOS INTERESSES POPULARES. ELE É NOSSO INIMIGO E PRECISA SER TRATADO DESSE JEITO, COMO OS GOVERNOS ANTERIORES.
Rinaldo Martins
Como não tenho a capacidade de transformar o pensamento em escrita, tenho que copiar:
"Negação da existência de um Deus real, extramundial, pessoal e, portanto, de qualquer intervenção divina nos negócios do mundo e da humanidade. Abolição do serviço e do culto da divindade. Substituindo o culto de Deus pelo respeito e amor da humanidade, declaramos a razão humana como critério único da verdade; a consciência humana como base da justiça; a liberdade individual e coletiva como criadora única da ordem da humanidade."
A primeira é de uma piada de uma bondosa pessoa que ao ver um cego (deficiente visual, segundo os "politicamente corretos")em uma esquina, perto da faixa de travessia, o pegou pelo braço e rapidamente o levou para o outro lado da rua. Só quando lá chegou soube que o cego acabara de perder o ônibus que estava esperando há cerca de uma hora....
É que que os doutrinadores, na ânsia de doutrinar, não analisam os alvos de suas doutrinas, como esta que, a meu ver, está muito aquém das formulações que fazem a maioria dos que acessam esta página do Correio que, a meu ver, já passaram deste nível primário de formulação...
Não que aqui também não tenham verdadeiras autoproclamadas TIETES de doutrinadores como o Frei Beto, que se recusam a discutir as contradições entre o discurso límpido e "politicamente correto" como este artigo com, por exemplo, o seu artigo Obrigado Lula, publicado como campanha eleitoral pró DiLLma Roussef (a do Consumo a Qualquer Preço).
E só mais uma pergunta: O que fazer com um artigo-doutrina, quando ele nos é proibido de divulgá-lo, senão sobre expressa licença e sob o draconiano Direito Autoral (Copy Right) sobre artigos políticos, os quais, lembro novamente, são SEMPRE Construções Coletivas, ao contrário de Obras de Arte, estas sim, fruto lampejos individuais.
E, a meu ver, os artigos políticos-doutrinários do Frei Beto estão muito longe de serem uma obra de arte, se é que me entendem....
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