Correio da Cidadania

O movimento dos sem direitos

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Foto: Trabalhadores sem direitos / Reprodução

No Brasil, atualmente, 40 milhões de pessoas se encontram, oficialmente, no mercado informal de trabalho. Ou seja, não têm carteira assinada nem direitos assegurados.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, o Brasil chegou à marca de 40,2% de informalidade no mercado de trabalho no primeiro trimestre de 2022. Isso significa que quase metade da população brasileira ganha a vida sem a garantia de direitos trabalhistas.

E não se trata apenas de vendedores ambulantes, faxineiras diaristas, catadores de material reciclável. As tecnologias eletrônicas, digitais, fizeram surgir uma nova categoria de pobretariados formada por motoristas de aplicativos, como o Uber, e entregadores de alimentos, como o iFood.

Embora contratados por empresas privadas, esses trabalhadores de condução de pessoas e produtos não têm carteira assinada nem garantia de direitos. Formam a mão de obra precarizada, descartável. Resultam da criminosa reforma trabalhista introduzida pelo governo golpista de Michel Temer e, agora, favorecida pela política antipopular de Bolsonaro.

Devido às pressões dessa nova categoria, o Congresso Nacional aprovou, em dezembro de 2021, um projeto de lei do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que prevê alguns direitos básicos a quem atua por aplicativos de transporte ou entrega de mercadorias. O projeto foi sancionado por Bolsonaro em fevereiro deste ano. O presidente vetou apenas um dos dispositivos do projeto, que previa que as empresas de aplicativo poderiam fornecer alimentação ao entregador por intermédio do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT).

De acordo com o que foi aprovado, o seguro tem de cobrir, obrigatoriamente, acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte. Se o entregador trabalhar para mais de um aplicativo, a responsabilidade será do aplicativo para o qual prestava serviço na hora do acidente.

Prevê ainda que a empresa de aplicativo deve assegurar ao entregador infectado por Covid-19 assistência financeira no período em que o trabalhador estiver afastado. O valor da assistência será calculado de acordo com a média dos três últimos pagamentos mensais recebidos pelo entregador.

Itens como máscaras, álcool em gel ou outro material higienizante devem ser disponibilizados aos entregadores pelas empresas de aplicativo para a proteção pessoal durante o trabalho. Alternativamente, isso poderá ocorrer por meio de repasse ou reembolso de despesas.

Os estabelecimentos onde os entregadores apanham as mercadorias que irão entregar deverão permitir que eles utilizem as instalações sanitárias e garantir-lhes acesso à água potável.

Do contrato ou termo de registro celebrado entre a empresa de aplicativo e o entregador, deverá constar expressamente as hipóteses de bloqueio, suspensão ou exclusão do trabalhador da plataforma digital. Quando isso ocorrer, a decisão terá de ser obrigatoriamente comunicada com antecedência mínima de três dias úteis, acompanhadas das razões que as motivaram.

Pelo descumprimento das regras, o projeto penaliza a empresa de aplicativo ou a empresa que utilize seus serviços com advertência e, no caso de reincidência, pagamento de multa de R$ 5 mil por infração cometida.

Essas conquistas resultaram da mobilização dos trabalhadores informais. Governo é como feijão, só funciona na panela de pressão.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Direitos (MTSD) tem como proposta lutar pelos direitos dos trabalhadores informais e enfrentar as novas lógicas do mundo do trabalho diante do avanço tecnológico e a exploração predatória desses trabalhadores. Desde 2020 eles promovem greves e paralisações por pagamentos mais justos e melhores condições de trabalho.

No decorrer dessa mobilização surgiram os Entregadores Antifascistas. Um de seus principais líderes, Paulo Galo, se tornou uma importante voz dessa legião de trabalhadores precarizados, que não para de crescer.

O MTSD já se faz presente em São Paulo, Minas, Rio e Pernambuco. Outra liderança, Severino Souto Alves, ex-presidente do Sindicato dos Camelôs e Ambulantes de Recife (PE), afirmou: “A gente surge por uma avaliação política que o mundo do trabalho não é mais o mesmo. O mundo do trabalho como a gente conheceu, onde grande parte da sociedade trabalhava de carteira assinada, tinha suas garantias de direitos trabalhistas e previdenciários. O desemprego existia, mas de alguma forma era contido. Esse mundo está se acabando e entrando uma nova dinâmica”.

Severino considera que “as reformas feitas nos últimos governos, o processo de avanço tecnológico, a perda de postos de trabalho para a tecnologia, os aplicativos, tudo isso condiciona a uma nova informalidade, que tende a crescer e talvez se tornar até maior que a formalidade. Essa avaliação de conjuntura que nós temos do mundo trabalho nos condicionou ao balanço histórico de que precisaria de uma organização política que discutisse essa informalidade e cobrasse do poder público políticas que pudessem abarcar a dinâmica da realidade dos direitos desses trabalhadores e trabalhadoras. Quem entra na informalidade, entra pela ausência do trabalho, e essa entrada é uma alternativa e uma saída. Porém, o que se estabelece é uma vida precária com muitas horas de trabalho, pouco acesso a dignidade e uma ausência completa de direitos”.

Para o MTSD, o maior responsável por essa pobretarização da mão de obra é o governo. “Os governos estão vendo essa realidade histórica se alterar – diz Severino -, estão vendo o mundo do trabalho se transformar em um mundo dos informais, e não estão construindo nenhuma legislação que possa frear ou regulamentar esse processo. As empresas de aplicativo entram no país, se estabelecem, fazem o que querem e não têm nenhuma limitação, nenhuma obrigação com o próprio país e os trabalhadores”, critica ele.

O objetivo do novo movimento social é cobrar dos governos, nos âmbitos municipal, estadual e federal, para que os direitos dos trabalhadores sejam assegurados perante as empresas de aplicativos que, nas palavras de Severino, “constroem essa informalidade”.

O dirigente do MTSD acrescenta que a cobrança se estenderá às  “informalidades mais antigas”, como diaristas, camelôs, catadores de materiais recicláveis, “e com isso construir políticas de direitos previdenciários, trabalhistas e que possam frear o avanço da desigualdade social e vulnerabilidade no país.”

Sobre as empresas de aplicativo, Severino afirma que “o capital se estabelece através dos avanços tecnológicos, que são bem-vindos, mas se utilizam desses avanços para obter mais lucros” em detrimento dos direitos dos trabalhadores e reduzindo setores do mundo do trabalho. “Vamos para cima nessa perspectiva das empresas também. Faremos levantes, paralisações, breques, o que precisar”, garante.

No ato de lançamento do MTSD, em São Paulo, em 4 de maio, estiveram presentes lideranças de outros movimentos, como Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e Maria dos Camelôs, do Movimento Unidos dos Camelôs do Rio de Janeiro (MUCA-RJ).

Segundo Severino, o MTSD resulta da capilaridade de inúmeros movimentos atuantes no país: “Tem associação de catadores, tem movimentos sociais que lutam pela moradia, que fizeram trabalho de base dentro de suas organizações para estarem presentes nessa luta, tem sindicatos de ambulantes, camelôs e comerciantes informais, tem companheiros não organizados dos aplicativos, como motoristas e entregadores”.

Leia, em seguida, a carta do Movimento dos Trabalhadores Sem Direitos lançada no dia de sua fundação, na qual expõe seus princípios e objetivos.

Carta às trabalhadoras e aos trabalhadores do Brasil

“Nós queremos direitos! Queremos respeito! A maior parte do nosso povo dorme pouco, acorda ainda de noite, sai de casa, se espreme no transporte, trabalha mais do que o corpo aguenta, ganha menos do que precisa, não consegue cobrir as necessidades da família. Quando come, come mal. A maioria já teve que escolher entre comprar comida ou pagar o aluguel. É viver pra trabalhar, sem ter certeza do dia de amanhã.

“Nossas mãos giram a economia do país. É por causa do suor do povo trabalhador que tudo funciona, que tudo existe – independentemente de ter um contrato de trabalho, ou o chamado ‘emprego na economia formal’. Quem vive e sobrevive do próprio suor e trabalho, não é parceiro, colaborador ou empreendedor. Isso é uma mentira que serve para mascarar as tentativas incansáveis do andar de cima da sociedade para assegurar seu lucro e suas riquezas às custas do povo pobre.

“Antigamente, era trabalhador só quem estava na fábrica, na loja, na escola. Hoje isso não importa mais. A fábrica se transformou em uma moto, uma bicicleta, uma faxina, um carrinho de tapioca, uma barraca, um carro… Estamos aqui hoje, camelôs, ambulantes, costureiras, diaristas, entregadores e motoristas de aplicativos, manicures, cozinheiras, catadores de recicláveis, pedreiros, enfim, todas as trabalhadoras e trabalhadores informais que passam a vida inteira na correria para garantir formas de sobrevivência para suas famílias. Para nós, trabalhadoras e trabalhadores, é inegociável ter o direito à vida e à dignidade.

“A nossa Constituição, em seu artigo 7º, assegura uma série de direitos ao trabalhador brasileiro. Independentemente de como se organiza o mundo do trabalho hoje em dia, a proteção das trabalhadoras e trabalhadores deve ser respeitada e mecanismos devem ser construídos para que isso seja possível. A responsabilidade do nosso sofrimento é dos governos que, a mando dos poderosos, não criam essas ferramentas para garantir os direitos.

“No Brasil, cidadania e dignidade sempre foram possíveis apenas através do emprego formal. A luta das trabalhadoras e trabalhadores era para que se criassem empregos registrados, com direitos como férias, 13º, seguro-desemprego, aposentadoria para cada vez mais gente.

“Porém, a política econômica dos governos e as reformas que impedem a ação do Estado deixam o povo ‘ao Deus dará’. Cada vez menos gente tem emprego fichado, é tudo temporário, por conta própria, precarizado, sem proteção social, sem respeito à saúde e à vida do trabalhador. Os governos e as empresas se desresponsabilizaram de nós. O mundo do trabalho é selva e cada um está por cada si. Pior, tentam nos enganar, e muita gente acreditou que melhorou por não ter mais que bater cartão.

“A história mostra que a conquista de direitos e da dignidade só foi possível porque a força de trabalho tomou consciência, juntou os braços e formou força coletiva. Porque o povo trabalhador se lembrou que é a maioria, que é formigueiro, e foi pra cima sem medo!

“Agora é a nossa vez de fazer o mesmo. Hoje, 04 de maio de 2022, nasce o SEM DIREITOS, para fazer ecoar o nosso grito por união e força coletiva para lutar e dizer ‘basta!’. Basta de violação da dignidade humana. Basta de exploração e indiferença com a vida do povo. Não somos invisíveis e não aceitamos ser escravizados! Gritamos para que os governos criem políticas públicas que assegurem direitos essenciais; para que as empresas não continuem brincando com nossas vidas.

“Se não querem nos garantir trabalho, renda, comida e moradia, então conquistaremos na marra. Vamos à luta trabalhadoras e trabalhadores SEM DIREITOS.”


Frei Betto é escritor, autor de “O Diabo na Corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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Frei Betto

Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

Frei Betto
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