Correio da Cidadania

O deboche do Capitão e o riso do General

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Foto: Pedro França / Agência Senado. Commons Wikimedia

Todos sabemos que o capitão que atualmente ocupa a presidência da República é notório defensor da ditadura militar, apologista da tortura e do assassinato (lamentou que o regime militar não tenha “matado uns 30 mil”), e exalta como herói o coronel Brilhante Ustra, responsável pela morte, na tortura, de inúmeros presos políticos.

Agora que o historiador Carlos Fico e a jornalista Miriam Leitão divulgaram os áudios dos juízes do Superior Tribunal Militar, referentes às atrocidades praticadas nos porões da ditadura, o general Mourão, vice-presidente da República, deu risada ao comentar que tais crimes, cometidos em nome do Estado, não devem ser investigados: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô”.

Sim, também as vítimas de Auschwitz e os algozes nazistas estão quase todos mortos. No entanto, desde 2021 EUA, Alemanha e Canadá abriram processos legais contra funcionários dos campos de concentração alemães. Como a maioria dos líderes nazistas nasceu no século XIX e provavelmente está morta, o objetivo agora é capturar e julgar aqueles que cooperaram com o extermínio praticado pelo Terceiro Reich.

Efraim Zuroff, coordenador de investigações do Centro Simon Wiesenthal de Jerusalém, calcula que “várias centenas” de criminosos estão vivos. “Muitos vivem em países como Alemanha e Áustria, que têm sistemas de saúde muito bons e, portanto, uma alta expectativa de vida”, observa.

No Brasil, a impunidade, assegurada pela esdrúxula e injustificável Lei da Anistia (como anistiar quem jamais foi punido?), permitiu que algozes da ditadura militar, assassinos e torturadores, jamais respondessem perante a Justiça pelos crimes cometidos. Algum dia essa aberração deverá ser corrigida. “Os caras já morreram tudo”, mas não o senso de justiça das vítimas e de seus familiares e a memória nacional.

Duas vezes estive nos cárceres do regime militar: 15 dias em junho de 1964, sem que tenha havido acusação e processo, e quatro anos (1969-1973) sob a acusação de “terrorismo”. Fui julgado dois anos após ser preso e condenado a quatro. O STF reduziu minha sentença para dois anos no mês em que eu completava, na condição de preso comum, os quatro de encarceramento...

Manter viva e conhecida a história dos 21 anos de ditadura é uma missão que muito me honra. Trabalhei, com o jornalista Ricardo Kotscho, na redação do clássico “Brasil: Nunca Mais” (Vozes), que descreve os crimes da ditadura, segundo arquivos da Justiça Militar. E produzi quatro obras sobre os anos de chumbo: “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), “Batismo de sangue” (Rocco) – levado às telas de cinema pelo diretor Helvécio Ratton -, “O dia de Ângelo” (Brasiliense) e “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco).

É preciso que escolas e universidades se debrucem sobre aquele período trágico da história do Brasil. Conhecer o passado é evitar, no presente, que se repita no futuro. E, hoje, que o país tem um governo militarizado, que de fato adota o lema “Pátria armada, Brasil”, e reverencia o golpe militar de 1964, se faz urgentemente necessário trazer à tona as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura e os retrocessos que impôs à nação, como a censura às artes e à cultura, a falsificação dos índices econômicos, a corrupção desenfreada na construção de obras faraônicas.

Rememorar é um ato político e exige a ação da Justiça.

 

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Frei Betto

Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

Frei Betto
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