Correio da Cidadania

"Bolsonaro é efeito de um 'bolsonarismo brasileiro', não a causa"

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A quatro dias de um 7 de setembro repleto de promessas de golpes, vamos ultrapassando os 582 mil mortos pelo coronavírus em meio às novas descobertas da CPI da Covid que dão conta de múltiplos esquemas de corrupção na compra de vacinas e, paralelamente, atiçam tanto as manifestações opositoras ao governo como instigam declarações golpistas por parte de apoiadores do presidente, em especial os oriundos das Forças Armadas, uma vez que setores das mesmas estariam envolvidos em alguns dos principais esquemas de corrupção revelados no Senado. Enquanto isso, vemos o avanço completo sobre os direitos trabalhistas, as terras indígenas e um enorme sentimento de incerteza permeia o país. Para refletir sobre essa conturbada conjuntura, e tentar entender suas raízes, entrevistamos Douglas Rodrigues Barros, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp e autor dos livros “Lugar de negro, lugar de branco?” (Hedra) e “Racismo” (Edições Brasil & Fibra).

“O cenário para os militares está se complicando com a sua participação no governo. Agora os cães fardados de várias estrelas gostam de se mostrar viris e falar grosso com jornalista. Uns bundões. Mas não são burros. Têm uma análise até perspicaz. Com a terra arrasada que virá com a saída de Bolsonaro os efeitos serão nefastos nos próximos dez anos. É muito provável que a bomba estoure de vez no próximo governo. Você acha mesmo que os militares vão querer segurar essa batata quente? Talvez, possam intervir depois, quando a desagregação social se tornar maior, ameaçar uma guerra civil, mas agora não vejo um motivo fisiológico para atuarem...”, comentou Douglas a respeito da possibilidade ventilada por analistas da imprensa de que os militares poderiam embarcar, sem mais nem menos, em uma aventura bolsonarista nesse 7 de setembro.

Mas como o título da nossa entrevista sugere, os problemas que enfrentamos hoje não começaram na semana ou no mês passado, nem foram exclusivamente causados por Bolsonaro. Ao longo da conversa, o entrevistado vai tentando nos explicar a importância da percepção histórica de como se construiu uma espécie de cultura política brasileira pós-88, completamente alheia às reais necessidades da população, e que de certa maneira espetaculariza alguns fatos políticos, enquanto outros vão passando como boiada.

“Fala-se em vitória ao derrubar o voto impresso enquanto no mundo do trabalho voltamos à semiescravidão. É um horror. Também não podemos esquecer que há uma grande ilusão legalista - é a má infinitude da esquerda. Nossa esquerda de maneira geral ainda não aprendeu a lição de que o paradigma da modernização atrasada acabou junto com o colapso da própria modernização. Enquanto a gente não compreender isso, também não vamos entender por que várias regiões do planeta são dominadas por uma economia não oficial como as drogas e a prostituição. A pornografia se tornou uma indústria pesada e após a crise de 2008 o PIB de um país como a Itália já era dominado por esse comércio. O que vemos hoje é a escalada dos senhores da guerra e da naturalização das milícias”, analisou.

Para o caso do Brasil, Douglas Rodrigues propõe que olhemos para quatro datas: 1964, a primeira, entrou para a história como o momento em que toda a possibilidade de participação popular foi interrompida e os militares apareceram como uma espécie de tutores da nação. Em seguida, 1978, com as greves do ABC Paulista e a fundação do PT, inicia-se um processo de politização e democratização da sociedade que será interrompido em 1988. O terceiro tem como marco a nova Constituição, momento em que as esquerdas teriam perdido sua potência política, dedicando-se exclusivamente à gestão do Estado brasileiro. Esse período veria seu fim de ciclo em 2015, depois da última proposta como marco: 2008 – o momento em que o crash de Wall Street virou uma página do capitalismo global.

“A nossa conjuntura é o fim de um ciclo que se iniciou em 1978 e acabou em 2015 do ponto de vista local. Mas de um ponto de vista global, a segunda década do século 21 encerrou a era neoliberal no mundo inteiro. Agora estamos numa curva histórica de um capitalismo militar e que rifou a democracia formal. Pense só, quando em 2018 Marielle é assassinada, as balas que a mataram deveriam matar também essa ilusão. A morte de Marielle é o Acontecimento central para entender o fim do curto ciclo democrático de baixa intensidade pós-1988”.

Leia a seguir a entrevista na íntegra.

Correio da Cidadania: A partir dos seus estudos em ética e filosofia política, o que destacaria como essencial para compreender a atual conjuntura brasileira? Por que chegamos até aqui dessa maneira?

Douglas Rodrigues: Vou falar da perspectiva de um estudante de filosofia. De uma persona. De um sério estudante de filosofia, ou seja, aquele que pouco se lixa para o capitalismo acadêmico, para lembrar Paulo Arantes, e está mais interessado em saber das condições de possibilidade de uma formação que possa levar à transformação. O primeiro passo consiste em lembrar que, como um estudante de filosofia minimamente sério, eu aprendi que a atual conjuntura brasileira não se iniciou agora.

Aliás, a conjuntura brasileira não se destaca de algo que é transversal à política do mundo globalizado. Sendo assim, assistimos uma profunda reorientação da ordem global de produção e reprodução do capitalismo que não apresentou saídas ante uma crise iniciada em 2008. A gente viu isso pela televisão. Como um jogo de cartas assistimos no outono de 2008 a queda sequencial dos grandes bancos de investimento em Wall Street. Foi uma loucura. Lembro como intensifiquei os estudos de economia para entender o que ocorria. Quando o Lehman Brothers ruiu, se apresentou uma nova esquina da história do Capital. Além dos aspectos materialmente traumáticos da crise, ela pode ser vista também como o fim de um estágio do capitalismo.

Essa crise acabou com o horizonte crescente dos planejamentos familiares que, diga-se de passagem, já ia mal das pernas. Dinamitou os direitos que muitos acreditavam ser sólidos nas democracias ocidentais, e toda essa patacoada progressista. Mas uma forma morta mantém sua aparência por muito tempo. A teologia neoliberal, que é o capitalismo em estado bruto, se mantém com uma força em certa medida garantida pela violência do Estado. A partir de então o que a gente passou a ver foi que a economia em declínio se viu impotente de absorver a mão de obra excedente, disso resultou a construção da uberização da vida, e por isso uma das saídas mais fáceis para esquerda é o keynesianismo com nova roupagem.

Esse falso novo ideário se baseia na noção de que a globalização e o neoliberalismo não são resultado da lógica do desenvolvimento do capital. Por isso, para muitos, a defesa do papel do Estado e das instituições terá como consequência o pleno emprego, a dinamização do consumo fomentando o acesso e a inclusão de parte da classe trabalhadora. O que há de equívoco nessa visão é a não percepção de que a economia se autonomizou da política de maneira radical, não no sentido de que não dependa da política, mas no sentido de que é ela que dá as diretrizes de como as formas de gestão devem ser condicionadas. O neoliberalismo é o capitalismo, e do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtoras, da produtividade, não há retorno possível ao Welfare State. E isso é só uma parte unilateral do problema.

Já que você sugeriu falar de conjuntura, eu proponho quatro datas: 1964, 1978, 1988, 2008. Da última já falamos. Em 1964, ficou claro que o golpe de Estado era para interromper qualquer possibilidade de mudança e participação popular na política. Aconteceu o que sabemos: violência direta contra qualquer oposição e destruição de participação civil na política sustentadas por uma tentativa de modernização tardia que legou uma dívida externa histórica que só foi paga no início do século 21. Qual foi a diferença de 1964 para 2015? O fato de que naquela época a esquerda não tinha saído desmoralizada do processo. Isso foi fundamental para alavancar a extrema-direita atual: nossa desmoralização. Mas observe que se 1964 foi a tentativa de solapar qualquer participação popular da política, em 2015 a população dava seu aval ao golpe. Essa verdade é dura, mas o impeachment de Dilma teve chancela popular. Se foi manipulado ou não, são outros quinhentos, mas a verdade é que não foi possível reverter a avalanche da extrema-direita que iniciava ali.

Por que comparo os dois momentos históricos? Pelo fato de que o que se seguiu pós-68 no Brasil, e não estou falando do Maio de 68, mas do AI-5, foi um trabalho de toupeira que iria frutificar dez anos depois. A gente se esqueceu, mas, quando Gilson Menezes resolveu parar a sua máquina na Scania, no dia 12 de maio de 1978, a participação popular na política voltaria. Isso se esquece, se esquece que não foram vanguardas deslocadas da vida cotidiana que forçaram o fim da ditadura, mas sim a luta organizada dos trabalhadores nas quebradas do país. São Bernardo era uma favelona.

Em 1978 também não podemos nos esquecer que foi o mesmo ano em que Lélia Gonzalez subia as escadas do Theatro Municipal de São Paulo com diversos companheiros para fundar o Movimento Negro Unificado. Isso significa que embora houvesse centenas de mortes, desmonte contínuo de qualquer organização por parte do Estado de exceção, o trabalho de toupeira continuou sendo feito. E não é à toa que no mesmo ano temos duas manifestações que iriam fundamentar o horizonte político da esquerda dali pra frente. Foi a partir dali, das greves da Scania, que teríamos aberto novamente o horizonte de possibilidade política. Hoje a maior parte da esquerda se esqueceu completamente disso, como as greves se espalharam, como a pastoral operária foi decisiva com Dom Claúdio Hummes, como naquele momento ser de esquerda não era mais ser somente alguém de faculdade. Olhando agora do buraco em que nos encontramos, toda essa história parece ser algo ocorrida noutro continente e noutro século.

A morte brutal de Santo Dias, a luta de Tito Costa para não deixar o exército assassinar milhares de operários no grande ato em São Bernardo parecem coisas de um passado longínquo. Mas havia fermentos ali, ideias muito interessantes. Por exemplo, nos esquecemos de que a CUT nasceu para ser um sindicato não atrelado ao Estado. Sabemos muito pouco de todas essas histórias sendo que a origem de nosso fracasso se encontra em escolhas feitas nesse processo. E aqui chego em nossa última data: 1988.

Toda a luta aberta pelas greves teve um epílogo triste já em 1988 quando a esperança de articular possibilidades políticas fora do Estado foi completamente abandonada pela esquerda. Uma palavra de ordem que era, na sua origem, para confundir a repressão, se tornou programa: “não estamos falando de política”, diziam os operários, “estamos falando de salários e trabalho”.

Nascia aí nosso fetiche pela institucionalização, juntamente com a Carta constituinte. É claro que do ponto de vista da derrubada do regime militar, podemos considerar uma meia vitória. Quer dizer, uma vitória falsa. As velhas figuras do PT sabem disso. Aliás, gostaria de lembrar que o Partido dos Trabalhadores foi o maior e o último partido das lutas operárias do mundo. Eu diria até que é o PT quem fecha as cortinas da luta operária mundial. Aquilo que os italianos tinham feito nos anos 1970, que beirou uma revolução radical, tinha se encerrado no final da década de 1980 com os brasileiros.

Mas o que havia no horizonte que gerou nossos problemas? Uma vaga noção de que deveríamos construir as leis que nos beneficiassem. Isso começou ainda nas greves de 1979 e se desenvolveu até a fundação do PT com o abandono da estratégia de duplo poder: um poder institucionalizado e um poder engajado nas lutas diárias. De modo que sem conhecer a história do PT nós não entenderemos nossa conjuntura. Ora, essa ilusão pela governança vai praticamente guiar o horizonte político de duas gerações. Nós de fato acreditamos na possibilidade de disputar a gestão, e logo a gestão tomou o lugar da política. Tornamo-nos uma esquerda sem política. Quando finalmente Lula se alçou à gestão, nossos horizontes já estavam totalmente nivelados pela gestão. Já não havia mais nada de política naquilo que conduzia nossas ações.

Em 2009 quando a crise chegava aos poucos aqui, Lula a chamava de marolinha. E evidentemente as ondas de impacto da crise demoraram para desembarcar, mas quando desembarcaram nada restou!

Finalmente, a nossa conjuntura é a conjuntura de fim de um ciclo que se iniciou em 1978 e acabou em 2015 do ponto de vista local. Mas de um ponto de vista global, a segunda década do século 21 encerrou a era neoliberal no mundo inteiro. Agora estamos numa curva histórica de um capitalismo militar e que rifou a democracia formal. Pense só, quando em 2018 Marielle é assassinada, as balas que a mataram deveriam matar também essa ilusão. A morte de Marielle é o Acontecimento central para entender o fim do curto ciclo democrático de baixa intensidade pós-1988.

Correio da Cidadania: Na tua opinião, qual a importância da CPI da Pandemia tanto na revelação desses casos de corrupção em simbiose com negacionismo oficial, como na sua repercussão, uma vez que, transmitida ao vivo, ganha um destaque no debate público, talvez como um verdadeiro espetáculo, diferente de CPIs anteriores, com menos holofotes e sob conjunturas menos turbulentas?

Douglas Rodrigues: Sinceramente, ela tem o efeito homeopático de preparação das forças políticas que irão disputar 2022. Quer dizer, ela efetiva um desgaste generoso de Bolsonaro ao mesmo tempo em que mantém uma certa fachada de coesão social e manutenção do “Estado democrático de direito”. Como você lembrou, é um espetáculo que organiza as forças opositoras ao mesmo tempo em que força a base bolsonarista a entrar no coro.

Não deveríamos ter ilusões com tais processos. Afinal já sabíamos que a base desse governo é formada por vigaristas e gângsteres. No caso há uma racionalidade implícita na forma pela qual Bolsonaro pauta a política usando o artifício das redes. Não há burrice. Há uma expertise que provoca engajamento e estrutura a forma pela qual se desdobram as conquistas do “Centrão” que é, na verdade, o verdadeiro agente. Por exemplo, a bomba de fumaça das urnas eletrônicas, voltar ao voto impresso e todas essas patacoadas, na mesma semana em que passaram a emenda mais lesiva contra os trabalhadores na história da república. O efeito é catatônico.

Fala-se em vitória ao derrubar o voto impresso enquanto no mundo do trabalho voltamos à semiescravidão. É um horror. Também não podemos esquecer que há uma grande ilusão legalista - é a má infinitude da esquerda. Nossa esquerda de maneira geral ainda não aprendeu a lição de que o paradigma da modernização atrasada acabou junto com o colapso da própria modernização. Enquanto a gente não compreender isso, também não vamos entender por que várias regiões do planeta são dominadas por uma economia não oficial como as drogas e a prostituição. A pornografia se tornou uma indústria pesada e após a crise de 2008 o PIB de um país como a Itália já era dominado por esse comércio. O que vemos hoje é a escalada dos senhores da guerra e da naturalização das milícias.

Ou seja, a CPI da pandemia tem suas claras limitações. De repente, serve para mobilizar os indiferentes que começam a sentir falta do pão, entrega um ar de formal democracia, e por aí vai. Para nós, no entanto, sem novidade.

Correio da Cidadania: Sobre as declarações de militares, tomadas por membros da CPI como intimidações e por amplos setores da sociedade, em especial da esquerda, como ameaças de golpe, podemos dizer que os militares estão dispostos a se manter na direção política do Estado brasileiro a qualquer custo?

Douglas Rodrigues: Só se for rentável, o que acredito não ser. Não há um programa, a coisa descamba. Para a própria população, no último censo, já se viu que os militares passaram a ter a imagem manchada. Eles vão pensar primeiro nas suas aposentadorias milionárias e que geram, aí sim, um rombo no Produto Interno. Se isso começar a ficar na mira, como irão sustentar suas filhas e toda a família? É melhor manter as coisas como estão; na verdade, eles continuarão a andar pelos palácios, esbravejar... A esquerda não atuou, e a que entrará, não atuará minimamente no sentido de minar a influência militar no governo, aí ficaremos assim... Bolsonaro vai espernear bastante, vai convocar sua base, vão sair nas ruas, talvez até quebrar algum palácio em Brasília. Mas não precisa passar disso. Pelo menos por enquanto.

O cenário para eles está se complicando com a sua participação no governo. Agora os cães fardados de várias estrelas gostam de se mostrar viris, falar grosso com jornalista. Uns bundões. Mas não são burros. Têm uma análise até perspicaz. Com a terra arrasada que virá com a saída de Bolsonaro os efeitos serão nefastos nos próximos dez anos. É muito provável que a bomba estoure de vez no próximo governo. Você acha mesmo que os militares vão querer segurar essa batata quente? Talvez, possam intervir depois, quando a desagregação social se tornar maior, ameaçar uma guerra civil, mas agora não vejo um motivo fisiológico para atuarem...

Devemos ser realistas: nem a esquerda, nem muito menos a direita sabe o que está acontecendo no capitalismo atual, as receitas de salvar o capital foram todas queimadas e encontramos agora um capitalismo de espoliação; um Estado mínimo sustentado à bala que privatiza a riqueza e socializa os prejuízos. E mesmo com toda essa violência não há crescimento ou manutenção da taxa de lucro.

Nós veremos cada vez mais massas desenraizadas que irão se tornar uma ameaça. Por outro lado, também está crescendo a reação ideológica contra a modernização ocidental. Ninguém aguenta mais esse mantra de progresso. O Rio de Janeiro, que só não é uma Detroit porque somos alegres e temos samba, já passou a dar as coordenadas da ligação umbilical entre Estado e milícia. Já não se pode integrar todos, é um barril de pólvora, de maneira que a decepção será descarregada em formas ainda mais violentas.

Isso sem dizer que ninguém aguenta também a formalidade das eleições livres. O fato é que veremos uma violenta administração policial do país que pode partir daqueles que supostamente conseguem controlar a insatisfação de milhões de famintos, como é a esquerda, ou, num quadro pior, daqueles que adotam a solução da violência direta, como é nossa direita. Qualquer possibilidade de um governo de esquerda passará antes pela tentativa de controle das massas descontentes, que só vão entender definitivamente o descalabro do governo Bolsonaro quando ele já não estiver mais no poder. Essa será a prerrogativa: controlar os ânimos, com ideologia ou com bala.

Correio da Cidadania: Desde 29 de maio, o Brasil acompanha manifestações de grande porte pelo impeachment do presidente Bolsonaro e por uma campanha de vacinação mais agilizada. Acredita que possam ser um fator importante para contornarmos tanto a pandemia como o atual governo? Qual sua real importância em meio a esse cenário?

Douglas Rodrigues: Muita. Na verdade o campo da política verdadeira se constrói nas ruas. Falando um pouco filosofês: na política real mais importante que o momento de fundação é a manutenção, mais importante que a embriaguez revolucionária é a ressaca: o exercício político é propriamente o da vigília. As ruas sabem da necessidade de erguer as bases de uma igualdade que tenha no senso de justiça sua realização. Só há política aí. A política real tem sua realização na improvisação, numa abertura para a instantaneidade de organização na emergência das necessidades geradas. Uma prática que reconduza à teoria. Por isso, a necessidade da participação que introduz a igualdade no seu exercício.

Tudo isso parece ser ocioso, mas eu sigo aqui, na filosofia, pra gente pensar algo importante porque atualmente temos uma noção de política como gestão; Hobbes buscou refutar a ideia de uma política própria ao animal humano. Essa busca de uma origem do poder tinha ali a função de liquidar a participação do povo (assim bem abstrato mesmo). Quem disse isso foi Rancière. Nessa lógica só há indivíduos e Estado, isso individualiza a política, decompõe a classe em indivíduos e exclui a luta de classes que constitui a política. Veja só que astucioso: essa forma de encarar a política não só coloca os direitos subjetivos no lugar da regra objetiva como inventa o direito. Há um fetiche legalista aí. Nos dias de hoje sob égide neoliberal (que é ruim enquanto conceito, mas serve pra gente pensar) a política se torna, assim, tudo e, portanto, qualquer coisa. E vai se confundir com a vida privada. Ao mesmo tempo em que se fala de direito humano, em nome dele invadem países como o Afeganistão e o abandonam depois.

A gente vê que o direito como ícone sagrado da política visa interromper a luta entre as partes, busca uma conciliação. Agora veja como o que eu disse na primeira pergunta aqui ganha toda a fundamentação. Essa foi a ilusão que forjou o Partido dos Trabalhadores, apesar de seus dissidentes. O problema é que isso acaba cavando um buraco ainda maior nas tensões, porque na letra morta do direito o princípio último é a pura igualdade de qualquer um com qualquer um, é a igualdade formal, aritmética, que portanto exclui as desigualdades históricas e as contradições entre os atores políticos. Pois bem, essa declaração de igualdade, que abstrai as relações concretas e propõe a forma aritmética das relações sociais, é justamente a forma imperante no mundo do capital, é a forma de relações de troca...

Bem, Pachukanis ia por aí, mas isso é ocioso. No lugar da classe estará sempre seu homônimo, que é a negação da sua autonomia: o representante. É nas ruas que a gente acaba por suspender essa ordem burocratizada da gestão, é na tentativa de construção de um contrapoder que conseguimos manter uma duplicidade de poder que repõe o curso da política. O impeachment de Bolsonaro deve ser apenas uma desculpa para expulsarmos os ratos fascistas de volta para o bueiro e reestruturar um corpo político de classes.

Correio da Cidadania: Além de uma suposta unidade contra o atual governo, as manifestações também apresentaram conflitos internos e alguns dilemas para a esquerda com mais força, ainda que não sejam novos, tais como a própria noção de unidade, que deixaria em segundo plano algumas mudanças estruturais na sociedade em prol de uma agenda eleitoral e de retomada do poder. Por outro lado, vemos jovens que inspirados por movimentos culturais como o Hip Hop ou acontecimentos políticos, como os zapatistas – e vendo os indígenas na dianteira de muitas lutas sociais recentemente, por exemplo – rechaçam esse modus operandi da esquerda, mas ainda não aparecem amadurecidos o suficiente para se impor no debate público e nas lutas por um país mais justo. Qual seria nesse momento o papel das esquerdas, dos movimentos sociais, comunitários e dos críticos de uma forma mais ampla?

Douglas Rodrigues: Seria muita presunção minha ter a resposta para essa questão. Prefiro problematizar pra gente pensar junto: o Lula vive dizendo que os jovens devem se interessar por política, mas já deu para ver que aquilo que Lula chama de política é na verdade gestão. Eu acho que realmente temos que nos interessar por política, mas a política entendida como conflito. Como luta de classes.

Há uma clara divisão entre a esquerda, pra não falar de multiplicidade e se tornar pedante, que de um modo muito grosseiro podemos dividir em um campo petista, mesmo que não se reivindique assim (aqui estou falando mais do petismo como um ideário que organiza a concretude em carros de som, homens barbados gritando de cima do caminhão e nostalgia sindical) com práticas que estão com a data de validade vencida; e uma nova esquerda que luta por se afirmar, que tateia no escuro desde pelo menos 2013, e tem na verdade encontrado grande dificuldade de afirmação não só por causa da esquerda tradicional, que coopta os elementos mais avançados, como também pela direita, através de uma gramática consolidada por ONGs e financiamento de fundações. Práticas que transformam a noção de identidade subalterna, que é um elemento fundamental na construção de um horizonte simbólico para a organização política, num identitarismo conivente com o capitalismo. É o capitalismo identitário, como lembrou Pablo Polese.

Diante desse quadro não sei bem qual caminho tomar, talvez, o papel da esquerda nesse momento. Se eu puder falar, na minha insignificância, sobre isso, seria o de abandonar a ideia da política como um negócio e como gestão. Entender que embora a instância do partidarismo oficial seja importante para sobrevivência, ela deve ser algo como meio e não como fim. É ingenuidade falar disso. Eu sei. Todos eles falam. Mas na prática é outra coisa. Por isso também acredito que devemos fazer uma crítica radical da própria noção de política, que é na verdade uma gestão do capitalismo tardio, e sua organização prática através do mercado eleitoral. Há algo nele que captura a militância e a engolfa, esterilizando sua potência política. Pessoalmente, acredito que não é mais possível uma política popular pelos mecanismos sob os quais está organizada a gestão do Estado. Aliás, toda forma de gestão do Estado é subalterna à garantia do lucro capitalista. Por outro lado, organizar-se é uma prerrogativa cada vez mais importante para evitar o massacre.

É claro que essa organização deve estar fundada no anticapitalismo e, também muito importante, na liberdade de ir até às últimas consequências na crítica. Lembrando, portanto, que não cabe somente adorar protestos, ou qualquer levante como fazem algumas seitas por aí, porque uma transformação verdadeiramente revolucionária só é possível na medida em que a crítica encontre livre curso, para repelir as falácias e as aberrações que nos movimentos sociais, infelizmente, têm livre curso hoje. É decisiva a importância da reflexão teórica para não cair numa prática cega. Qualquer militância mais robusta terá de efetuar uma crítica à gramática dos movimentos sociais hoje, e não só se adaptar de modo puramente tático. Enfim, a gente tem que vencer o paradigma foucaultiano de resistência/opressão.

Nós passamos por uma crise que não é só mais econômica, é uma crise social mundial que não pode ser resolvida de forma particular ou específica. Esse é nosso drama. O que passamos hoje se refere a estruturas gerais do capitalismo. Nosso dever, acima de tudo, é desconfiar de qualquer resposta fácil.

Correio da Cidadania: Como enxerga os movimentos da direita e centro-direita, que além de quase não marcar presença nos atos realizados até aqui, chama sua própria manifestação para 12 de setembro? Como enxerga a tentativa de construção de uma proclamada terceira via?

Douglas Rodrigues: A direita e a centro-direita são as grandes culpadas por essa tragédia. Sei que é errado, mas não me interesso por elas, nem um pouco. Leio um ideólogo aqui e ali só para saber o que estão pensando. São antipolíticos por excelência. A terceira via é isso, a morte da política, ou a abertura para o fascismo.

Correio da Cidadania: A criminalização política do bolsonarismo não deveria ser o foco principal de ambos os setores aqui analisados? Naturalizá-lo como força política representativa, por exemplo nas correntes que esperam as eleições do ano que vem, não inviabiliza qualquer correção de rumos, chamemos assim, de nossa democracia?

Douglas Rodrigues: Acredito que se há algo comum hoje na esquerda, a despeito das divergências, é essa noção concreta de que Bolsonaro é um criminoso. Um lacaio que se coloca como bobo da corte para que isso lhe dê possibilidade de cometer absurdos. E isso é justamente uma força no Bolsonaro e no bolsonarismo, ele se coloca como outsider, como alguém que combate o mainstream mesmo vivendo da política partidária por décadas. E faz isso montado num aparato criminoso de disseminação de fake news, igrejas aliadas etc...

Veja só, ele não se vê como uma força política representativa, ele diz que não queria ser presidente. Esse é justamente o seu jogo, e nele é importante dizer que há algo de verdadeiro: uma crítica ao nosso sistema político. Basta lembrarmos que ele se elegeu não só sem tempo de televisão para propaganda (o que, convenhamos, é uma aberração), como ainda se recusou a participar dos debates. Entender que Bolsonaro é justamente alguém que simula um combate à democracia representativa é um pressuposto para entender sua popularidade e parte dos problemas que atravessamos.

Correio da Cidadania: Há “bolsonarismo sem Bolsonaro” no horizonte?

Douglas Rodrigues: Bolsonaro é efeito de um bolsonarismo brasileiro, não sua causa. Quero dizer, Bolsonaro é um efeito de nosso conservadorismo, de nossas piadinhas machistas na mesa de domingo, da nossa invisibilização do massacre LGBTQI+, da nossa insensibilidade com os povos indígenas e do nosso racismo congênito. Derrotar Bolsonaro será muito mais fácil do que derrotar o espírito conservador (que na nossa situação é assassino) brasileiro.

Encarnando o estudante sério de filosofia, admito minha ignorância em relação ao futuro: eu não sei! Como tentei dizer antes, o cenário será de terra arrasada. Não será mais um 2002! É preciso entender o capitalismo hoje, nossa especificidade e lugar na cadeia global! O planeta não aguenta mais! Time is over!


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Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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