Correio da Cidadania

Trabalho doméstico: seria bom se fosse verdade (2)

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3. Por causa da escassez de mão de obra, decorrente da alta oferta de emprego em outras atividades, a remuneração do trabalho doméstico disparou

 

A remuneração das trabalhadoras domésticas de fato cresceu, na última década, bem mais que a do restante dos assalariados. Nunca esquecendo que os salários no Brasil são muito baixos (o salário mínimo, R$ 678, é pouco maior que a metade do argentino e ligeiramente inferior aos da fase de esgotamento da ditadura de 64 (9), essa elevação é um dado positivo, cujas causas importariam pouco ou nada diante do fato em si, não fosse por radicarem numa iniquidade que gera uma ilusão de ótica, fazendo a melhoria parecer maior do que realmente é.

 

As trabalhadoras domésticas registradas ganham, quase sempre, salário mínimo ou algo próximo a ele; as não registradas, como demonstrado na PNAD, bem menos. Ao dizer que "em 2009, as trabalhadoras formalizadas apresentavam renda média de R$ 568,00, isto é, mais de 100 reais acima do salário mínimo nacional”, o IPEA incorre no erro metodológico de tomar como referência a renda quando nem toda ela advém do trabalho (10) ou desse trabalho. Em sua composição, entram todos os ganhos que alguém aufere: pensões alimentícias, prestações previdenciárias, benefícios assistenciais, remuneração de bicos, aluguéis etc. Se o que se deseja medir são os rendimentos do trabalho doméstico, é preciso tomar por base os salários – e, para o mesmo ano de 2009 (11), o Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS) fornece uma cifra média de R$ 501 (12), valor que superava em R$ 36, e não em “mais de 100 reais”, o salário mínimo nacional de então (R$ 465). Essa diferença positiva de R$ 36 explica-se, em grande medida, por outro fator ignorado pelo IPEA: os pisos salariais (isto é, salários mínimos) estipulados naquele ano para o serviço doméstico pelos estados de São Paulo (R$ 505), Paraná (R$ 610), Rio Grande do Sul (R$ 511) e Rio de Janeiro (R$ 512), que concentram 55% dos contribuintes do INSS (13). Como falamos de trabalhadoras registradas – que, por essa condição, não ganham menos que o mínimo legal – , um valor médio tão próximo do piso constitui uma evidência cabal de que a remuneração da grande maioria delas é igual a este. Como os salários mínimos subiram, nos últimos anos, bem mais do que o salário médio, está aí a explicação da diferença percentual entre o incremento remuneratório das empregadas domésticas e o dos demais assalariados.

 

E daí? Qual o problema se essa elevação decorre mais do aumento do salário mínimo que de uma relação favorável de oferta e demanda, como sustentado pelo IBGE (www1.folha.uol.com.br/mercado/1208874-ganho-de-empregados-domesticos-sobe-56-em-oito-anos-mostra-ibge.shtml)? Nenhum, se as empregadas domésticas não fossem as únicas assalariadas do país a receber salário mínimo. Qualquer outro empregado que ganhe menos de R$ 971,78 recebe também, se tiver filhos com menos de 14 anos ou inválidos, o salário família, cujo valor real, usando como deflator o INPC, esteve congelado entre 2004 e 2011 e caiu 30% em 2012 (14). Tomando como exemplo um empregado comum (celetista) e uma doméstica, ambos integrantes de famílias típicas brasileiras (com dois filhos) e remuneração igual ao piso nacional, os ganhos auferidos pelo primeiro em razão de seu trabalho (salário mínimo mais salário família) aumentaram 61,5% de 2003 a 2013; os da segunda, 70,5%.

 

Isso acontece porque, embora os dois recebam o mesmo salário, a remuneração efetiva do celetista tem em sua composição uma parcela que não aumenta e inclusive diminui (salário-família). Como as trabalhadoras domésticas recebem apenas a parcela que aumenta, seus acréscimos percentuais são maiores. A ilusão de ótica reside no fato de que, não obstante, a massa monetária incorporada a suas remunerações foi e é sempre menor que a dos trabalhadores regidos pela CLT. Em 2013, ano em que o salário-família atingiu o menor peso relativo de sua história face ao salário mínimo, uma empregada doméstica com dois filhos remunerada pelo piso ganha, por mês, R$ 46,72 (R$ 560,64 no ano) menos que um celetista em iguais condições – uma diferença proporcional de 6,9% (15,4% em 2004).

 

É importante assinalar esses aspectos não apenas para que se tenha a real dimensão do incremento de ganhos verificado na última década, mas também como anteparo à mistura de má-fé e analfabetismo matemático que campeia na imprensa monopolista brasileira. Não será nada surpreendente se Veja, a Folha de S. Paulo ou as organizações Globo “noticiarem”, daqui a dois ou três anos, a redução desse incremento, insinuando alguma conexão entre ela e a ampliação de direitos, de modo a fazer crer que esta terá tido efeito negativo. Isso porque, uma vez efetivada a PEC 478, as trabalhadoras de casas particulares passarão a receber o salário-família. Se este permanecer congelado, os aumentos percentuais da remuneração delas, com exceção do primeiro ano (no qual se verificará um salto face à situação atual), cairão, e muito. Medidos, porém, em quantidade de moeda, que é o que importa, eles serão maiores do que hoje.

 

4. A Emenda 72 iguala os direitos das domésticas aos dos demais trabalhadores

 

Consta na Emenda 72 que ela “altera a redação do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais”. Esse era, de fato, o intuito inicial do autor da proposta, o deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT). Sua proposta original (PEC 478 de 2010) ia à raiz da diferenciação nefasta contra a categoria, suprimindo o dispositivo constitucional que a faz possível: o parágrafo único do art. 7º. Com auxílio ou sob pressão de alguns juízes do trabalho, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), relatora da comissão parlamentar formada para discutir a proposta, esvaziou parcialmente o projeto, frustrando a equiparação.

 

Na reunião de 23 de maio de 2012 da referida comissão, os juízes Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto e Solange Barbosa de Castro Coura sustentaram que alguns dos direitos trabalhistas estatuídos como fundamentais no art. 7º da Constituição são incompatíveis com o serviço doméstico e que a revogação de seu parágrafo único seria entendida pela ramificação trabalhista do Poder Judiciário (isto é, por eles e por seus colegas), não como equiparação do status constitucional das trabalhadoras em casa alheia ao dos demais assalariados, mas como supressão dos poucos direitos ali assegurados até então a elas. Essa posição foi reafirmada pelo então presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), João Oreste Dalazen.

 

Em vez de denunciá-los à opinião pública, ao CNJ ou de resolver o problema usando a fórmula da deputada Gorete Pereira (PR-CE), que alterava a parte inicial do art. 7º para explicitar que as 34 garantias fundamentais ali estabelecidas caberiam aos trabalhadores “urbanos e rurais, inclusive os domésticos” (15), Benedita apresentou, entre junho e dezembro de 2012, três substitutivos que apenas alteravam o parágrafo único do artigo em questão sem revogá-lo e ampliavam o rol de garantias das trabalhadoras de casas particulares sem igualá-lo ao dos outros trabalhadores.

 

O primeiro estendia-lhes 17 dos 25 direitos faltantes sem condicionar nenhum à regulamentação. Entre os oito que ficaram de fora, havia apenas um que realmente não faria sentido estender ao trabalho doméstico: a promoção da contratação de mulheres, uma vez que elas já são mais de 90% da categoria e não há razão para incentivar que continuem a fazer esse tipo de serviço, ainda mais considerando que seu estatuto legal é ainda inferior à CLT. A suposta incompatibilidade, todavia, serviu de pretexto para que se continuasse a negar a essas trabalhadoras também os pisos salariais por categoria (prejudicando, v.g., as profissionais de enfermagem que cuidam de doentes a domicílio, contratadas por eles ou por suas famílias); a jornada reduzida para o trabalho em revezamento de horários; os adicionais de periculosidade e insalubridade (em prejuízo das que trabalham expostas a substâncias nocivas à saúde, ou seja, quase todas (16); a proibição de trato discriminatório em razão da natureza da atividade exercida; a participação nos lucros (que, embora não existam, por definição, no serviço doméstico, existem nas atividades de empresas cujos sócios contratam, por meio e em nome delas, empregadas para suas casas particulares) e a proteção contra a automação (aqui entendida não como proibição desta, mas como garantia de compensações e medidas de recolocação para os que venham a perder seus postos de trabalho em razão dela).

 

No segundo substitutivo, excluiu-se também a igualdade de direitos entre empregadas e avulsas, impedindo a extensão às diaristas do que se passava a reconhecer às trabalhadoras com registro em carteira. De todas as modificações impostas ao projeto original, essa foi a mais grave, pois, das afirmativas atualmente formuladas com tanta ligeireza em âmbitos oficiais sobre o serviço doméstico no Brasil, a única que não é uma lenda completa é justamente a de que existe uma tendência – por certo menor do que o alardeado – à substituição de trabalhadoras mensalistas por diaristas: o Comunicado 90 do IPEA, embora baseado numa aproximação sujeita a enorme margem de erro (17), mostra um expressivo crescimento, entre 1999 e 2009, desse regime de contratação – que correspondia, ao fim desse último ano, a quase um terço dos empregos domésticos. Além disso, foram condicionados à regulamentação, sem que se estabelecesse prazo ou norma transitória para vigorar enquanto ela não for elaborada, direitos como FGTS, seguro-desemprego, adicional noturno, salário-família e seguro contra acidentes de trabalho.

 

As condições dessa futura e incerta regulamentação ficaram estabelecidas no terceiro substitutivo, datado de dezembro, que foi o que a Câmara aprovou e enviou ao Senado; ali, passou a constar que ela deve assegurar facilidades tributárias aos empregadores. Essa determinação lembra as indenizações a proprietários de escravos previstas nas leis de 1871 (ventre livre) e 1885 (sexagenários) e embute, assim como elas, um problema a um só tempo moral e econômico: por que o Estado brasileiro deveria subsidiar a contratação de trabalhadoras para exercer abaixo do padrão geral de direitos e garantias praticado no país e em exclusivo benefício do conforto pessoal dos empregadores, já que o serviço doméstico nem sequer gera riqueza? Esse problema acaba relativizado por outra iniquidade: afinal, se o que esse mesmo Estado mais faz há cinco anos é conceder favores fiscais injustificáveis a monopólios, renunciando a mais de R$ 60 bilhões em contribuições previdenciárias, passa a não soar tão absurdo que os empregadores domésticos recebam alguma regalia; ao menos, sua contrapartida (uma elevação substancial das garantias da maior e mais desprotegida das categorias profissionais do país) é mais palpável que a do rebaixamento geral da arrecadação do INSS, chegando até a parecer um preço aceitável.

 

Ocorre, no entanto, que, pelo menos em relação a dois dos mais importantes entre os direitos básicos agora estendidos às trabalhadoras de casa alheia, esse condicionamento não faz o menor sentido, e isso pela singela razão de que o salário-família e o seguro-desemprego não são pagos pelo empregador, mas pela Seguridade Social. O mesmo vale para a licença-maternidade, que as trabalhadoras domésticas já têm, e Benedita pretendia relegar também a esse limbo. Essa garantia foi salva no Senado, na última hora, pela intervenção de Paulo Bauer (PSDB-SC).

 

Leia também:

Trabalho Doméstico: seria bom se fosse verdade (1)

 

 

Notas:

 

9) Segundo a Nota Técnica 118 (http://www.dieese.org.br/notatecnica/2012/notaTec118salarioMinimo2013.pdf) do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), o salário mínimo brasileiro atingiu, em 2013, seu maior valor desde 1984; em 1983, em plena crise econômica internacional deflagrada no ano anterior (1982), após dois choques petrolíferos sucessivos (1973 e 1979) e ao fim de duas décadas de queda livre iniciadas com o golpe de 64, ele equivalia a R$ 689.

 

10) Informação mais detalhada sobre os componentes do cálculo da renda encontra-se nas notas técnicas da PNAD.

 

11) 2009, por ser um ano atípico para o emprego doméstico, pode não ser o melhor paradigma, somente sendo mencionado aqui porque os dados da PNAD que se discutem neste tópico são relativos a esse ano. Seja como for, em 2011 o salário médio das empregadas domésticas foi, segundo o AEPS, de R$ 616. Embora o salário mínimo nacional fosse de R$ 545, cabe aqui a mesma ponderação sobre os pisos regionais, que eram de R$ 736 (Paraná), R$ 639 (Rio de Janeiro), R$ 610 (Rio Grande do Sul) e R$ 600 (São Paulo).

 

12) Não se ignora que o AEPS, por basear-se em informações repassadas pelos empregadores ao INSS quando do recolhimento de contribuições, pode apresentar distorções para baixo em virtude do costume que têm alguns empregadores de declarar, para fim de pagamentos ao fisco previdenciário, um salário menor que aquele com que efetivamente remuneram seus empregados. Ainda assim, parece ser, quando se trata de empregados com registro, uma fonte mais confiável para fins de aferição de seus salários que as informações da PNAD sobre renda, ou mesmo sobre rendimentos do trabalho, baseadas em autodeclaração.

 

13) Desafortunadamente, o AEPS não traz a desagregação desse dado entre as categorias de segurados da Previdência. Porém, é difícil que a proporção de empregadas domésticas concentradas nesses estados seja menor que a de segurados em geral.

 

14) O valor do salário-família é definido pela remuneração bruta do empregado. Em tese, há duas faixas de valor mas, em 2011, o limite máximo da menor delas (à qual corresponderia um salário-família mais alto) foi superado pelo salário mínimo, o que fez com que os trabalhadores até então nela situados passassem todos à faixa seguinte, com a consequente redução do valor auferido.

 

15) Embora trabalhem obrigatoriamente em zona urbana ou rural, os trabalhadores domésticos são considerados, na sistemática consagrada entre os profissionais do direito no Brasil, uma categoria à parte, nem urbana e nem rural para fins de direitos e garantias.

 

16) O produto de limpeza residencial mais utilizado no Brasil é a chamada água sanitária, que vem a ser nada menos que cloro em estado puro.

 

17) Conforme referido no próprio Comunicado 90, seus autores usaram como critério de aferição do número de diaristas a informação sobre a quantidade de empregos prestada pelas entrevistadas. Aquelas que declararam trabalhar para mais de um empregador foram classificadas como diaristas; as que informaram ter um só empregador, como mensalistas.

 

 

Henrique Júdice Magalhães é pesquisador em temas de Trabalho e Seguridade Social. Atuou como consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil (MDS) contratado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Foi também pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no âmbito do Programa Nacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (PNPD).

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