Correio da Cidadania

Marina, Beto, Sofia

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Costumava acordar naquele horário para mamar, mas aquela noite não acordou. Os pais foram até o berço e ela dormia. Dormia e não respirava. Naquela noite Sofia não acordou e nem na outra. Dormindo, com 1 ano e 4 meses, Sofia morreu.

 

Marina,

 

Imagino que essa deve ser uma das dores mais profundas que pode tocar a um ser humano. Só posso me aproximar, por comparação ou imaginação; mas não sei essa dor.

 

E é difícil falar do que não conhecemos.

 

Mas sobre a vida e o humano eu conheço algo. E quero te dizer uma coisa que, por incrível que pareça, eu acredito: Deus nunca nos confronta com algo maior do que nós. E outra coisa ainda mais incrível: mesmo as maiores perdas abrem novas possibilidades na vida.

 

Não penso apenas em caminhos internos - embora suponha que a experiência da perda possa fortalecer imensamente o espírito. Guardamos nossas experiências vividas no interior, como em uma enciclopédia dos fatos. Quem passou uma grande perda está mais preparado para outras. Não só outras perdas, mas para o imprevisível. E afinal o inesperado, como a morte, é parte da vida. Aprender a lida-los é uma sabedoria que aponta ao transcendente.

 

O abismo da perda, do que era certo e perto, pode levar a olhar a vida em uma perspectiva mais chã. A realidade da morte nos devolve o contentamento do mais simples. A presença, uma água, a respiração. Sofisiticação zero.

 

Valoriza aqueles que estão perto. E pode aproximar outros que nem estavam. A química da vida é algo inexplicável.

 

Claro que você e o Beto podem (e devem!) ter outros filhos. O mais importante é integrar a experiência passada, em toda a felicidade que conteve, a despeito de um desfecho trágico. Porque vistas as coisas em perspectiva, na vida como na história, não há desfecho: há passagem.

 

E isso eu vi o Beto fazer: dizendo poucas emocionadas palavras sobre o caixão, agradecendo a oportunidade de ter sido pai. Parece Cuba: os mais atingidos é que enchem de força os solidários.

 

Vou dizer uma audácia, mas que eu acredito – aí sim, por experiência própria. Mesmo as maiores fatalidades guardam o seu lado luminoso e não apenas de um ponto de vista interior. Abrem-se outras portas, diferentes oportunidades de experimentar coisas que, acreditava-se, não ia-se mais. Depois que acaba a ladeira e a vida faz a curva, aparecem novos horizontes. E são belos.

 

Marina, sempre admirei o seu colorido. As meias, sapatos, os olhos. Dizem que o nosso signo é favorável ao bom gosto e ao deleite estético. Eu, de todo modo, sempre fui admirador das suas combinações.

 

E, no entanto, sei que não dá para achar beleza nessa perda, a não ser olhando ao redor: no amor entre os pais, no afeto dos queridos, na solidariedade dos amigos. Uma fatalidade em vidas bonitas é sempre cercada imediatamente de beleza.

 

Não há consolo. Morreu, morreu – como gritavam lá do morro. Mas existe vida. Nos seus olhos, nas mãos do Beto, nas palavras que chegam, na terra que enterra e recomeça.

 

Podemos nem ser da crença da cruz, do Jesus, da hóstia e tal. A gente acredita do nosso jeito, que é do dogma do amor. Na forma como ele aparece, que é infinita. Converteu até meu irmão, quando foi paquerar uma crente: agora não acredita em Deus, só em Deusa.

 

Olhando você e o Beto, nós certamente cremos. Para além de nossas fragiliades e incertezas, somos infundidos de uma certeza tão clara quanto a própria constatação da vida: em vocês e na filha que se foi, vive a ressurreição - que só é milagre na medida em que o próprio amor o é.

 

 

Fábio Luís é jornalista.

 

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