Correio da Cidadania

A soma de todos os medos: plurinacionalidade e direitos da natureza

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Foto: Commons Wikimedia

Existem momentos em que as reações defensivas são as que revelam que se está avançando, mais do que muitos podem supor, e isso acontece no Chile neste ano de 2021.  Um editorial do jornal El Mercurio, de 8 de agosto, deixou em cristalina evidência o enorme temor que se sente diante das ideias de plurinacionalidade e direitos da natureza.

Esse texto não passa despercebido, já que provem de um conhecido jornal que é regularmente porta-voz dos setores politicamente mais conservadores e do pareceres do empresariado chileno e transnacional.

Se a temática da plurinacionalidade ou dos direitos da natureza fosse uma questão menor, com poucas possibilidades de avançar no processo constituinte, é muito possível que o El Mercurio não tivesse tomado o trabalho de preparar esse editorial. Ao fazê-lo, e ademais do demarcá-lo em uma argumentação que assume que o processo constituinte já está em um risco de legitimação democrática, como se isso estivesse provado, demonstra que a juízo desses atores existem possibilidades reais de que essas categorias sejam aprovadas. Todo o editorial exibe temor.

Começa apontando que como há aqueles que sustentam que existiriam diferentes níveis de legitimidade entre as assembleias constituintes, isso violaria o espirito democrático. A partir dessa rara desculpa se lança contra a ideia de plurinacionalidade como reconhecimento dos povos originários, e a de direitos da natureza. Desse modo, continua o editorial, não seria apropriado que existam declarações em geral sobre essas questões.

Essa postura é inconcebível, porque a tarefa dos convencionais (membros da Convenção Constituinte) é precisamente expressar suas ideias, propiciar o debate cidadão e debater à viva voz. Sempre existirão declarações em geral sobre assuntos fundamentais como direitos ou cidadania. Ou uma constituição é redigida por um grupo de especialistas trancados num escritório? Ou os convencionais devem estar sempre calados?

O El Mercurio também afirma que essas condições, plurinacionalidade e direitos da natureza, não podem ficar no que qualifica como ‘interpretações de tribunais’ ou ‘leis de quorum simples’. Esse é outro extremo inaudito, já que desde os mandatos constitucionais inevitavelmente se derivarão leis, as quais deverão ser votadas em um futuro poder legislativo, e o poder judicial deverá atender reclames e demandas sobre essas leis. Então pareceria que este jornal está dizendo que se essas condições finalmente chegam à futura Constituição, então não deveriam ser aprovadas leis que assegurassem sua aplicação, e se alguns legisladores tentarem fazê-lo, é porque deveriam estar condicionados pelas maiorias especiais. Não só isso, senão que está apostando por impor condições para que não existe uma ‘interpretação’ dos tribunais.

O jornal chileno rechaça a plurinacionalidade e adianta suas preferências por um modelo multicultural como o da Austrália, Canadá, Noruega e Nova Zelândia. Contudo, a aposta multicultural está repleta de problemas, especialmente por folclorizar e guetizar os povos indígenas, enquanto que a experiência sulamericana, que sem dúvida tem seus claros-escuros, aspira a outras metas já que a plurinacionalidade é a via para uma interculturalidade superadora desses limites.

De toda forma, é evidente que o time editorial do El Mercurio não está muito informado porque justamente um dos seus exemplos, a Nova Zelândia, aprovou faz pouco tempo os direitos de um rio e seu leito, ou seja, os direitos da natureza. Se uma legislação como a neozelandesa é implantada no Chile, todo o debate sobre a propriedade e manejo da água mudaria radicalmente.

Entretanto, na Convenção Constitucional chilena foram dados os primeiros passos para poder debater essas questões. Entre as novas comissões temáticas que se conformaram está a de Direitos Humanos e Verdade Histórica, que por certo é uma questão fundamental em seus entendidos tradicionais, mas que ademais explicitamente indica que abordará os direitos ambientais e da natureza.

Nesse breve editorial estão contidos explicitamente todos os medos dos setores conservadores. Conclui confessando que pareceria que a consideração da plurinacionalidade e os direitos da natureza “parecem estar sendo apresentados” e por isso reclamam “minimizá-los”. Como apenas estão exibindo, já devem ser detidos – essa é a mensagem. Assim se exibe a reação de setores conservadores, como muitas vezes ocorreu no passado com outros temas. Mas é muito mais do que isso.

Confessa que as questões de plurinacionalidade e a abertura da categoria de direitos da natureza são elementos centrais de suas preocupações e que avançaram tanto que chama a enfrentá-los desde já. Isto aconteceu apenas um mês após iniciada a convenção constitucional e com argumentos pífios, facilmente rebatíveis.

Em tudo isso há uma leitura de que as organizações cidadãs não devem deixar passar. É que para elas, e em especial para os que tem batalhado por anos para lidar com a problemática dos povos originários e do meio ambiente, onde as vitórias sempre são poucas e o cansaço muitas vezes golpeia, o que está dizendo o El Mercurio é que se avançou tanto, que estão temerosos e se veem obrigados a responder.


Notas:

1. Convención: avances con dudas. El Mercurio, Santiago, 8 de agosto de 2021.

2. Convención Constitucional establece comisiones transitorias para definir su funcionamiento interno. VH Moreno S, Uchile Constituyente, 27 de julho de 2021.


Eduardo Gudynas é analista do CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social) em Montevidéu.

Publicado em espanhol no portal Radio Universitaria de Chile, no Observatorio de Conflictos Ambientales de America Latina e no blog do autor.

Tradução de Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

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