Correio da Cidadania

Brasil: já estivemos no inferno

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Talvez essa nova geração não conheça a história, mas já estivemos no inferno. Muitas vezes. E só para lembrar dos tempos de agora, podemos falar da ditadura militar. Dias duros, de mortes, torturas e desaparições. Também passamos por um longo período de “distensão”, saindo do regime dos milicos para novamente passar às mãos da boa e velha elite civil. Não foi fácil cruzar o umbral da ditadura. As lutas foram grandiosas e massivas: batalha pela anistia, batalha pelas diretas. Quantas lágrimas de frustração e ódio vivemos depois dos gigantescos comícios e atos que mobilizaram multidões, e que se esfumaçaram numa decisão de cúpula, para uma eleição indireta? Depois de tantos anos de dor, a tal democracia vinha tutelada, pelas mãos de um congresso infame. E nos tocou Tancredo Neves como presidente, um velhinho simpático, mas de passado claro sobre quem e o que defendia. Mas, o diabo ainda queria mais, e o Tancredo morreu, ou foi morrido. E quem assumiu a presidência? Nada menos do que o príncipe do Maranhão, José Sarney, e nós tivemos de aguentar seus marimbondos de fogo por cinco anos inteiros.

Com Sarney nós passamos pelo Plano Cruzado, de mudança de moeda, num contexto de inflação gigante. Ele congelou o preço das coisas e aumentou os salários em 15%. A euforia era grande entre a população, mas logo depois veio a paulada, e o Plano Cruzado II reajustou a gasolina em 60%, a luz em 120% e as demais mercadorias em mais de 100%. A inflação disparou outra vez, chegando a 1973% no final do mandato. É, dá pra crer? 1973%. Quatro dígitos.

Ainda no meio desse turbilhão, Sarney chamou a tão sonhada Constituinte, que acabou sendo mais um balde de água fria, pois ela não foi exclusiva como queria a maioria. Nova derrota para o movimento social. Ainda assim a Carta que brotou do congresso acabou sendo bastante progressista, em comparação com o inferno da ditadura militar. E foi essa aparente “vitória” que preparou o país para seu momento mais esperado: a eleição direta para presidente.

Era o ano de 1989. Havia mobilização em todo o país. A Central Única dos Trabalhadores estava no auge, organizando os trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores parecia amalgamar todos os desejos das gentes. Lula era o candidato e tudo indicava que o sol vermelho iria iluminar a nação. Quem viveu aqueles dias, lembra. A profusão de militantes, o avanço das bandeiras, a petezada nas ruas, fazendo bazar, distribuindo panfletos. Uma esperança se agigantava. Então, da distante Alagoas, das profundezas da casa grande e do engenho, assoma um jovenzinho que iria aparecer como o novo herói nacional: um caçador de marajás. Fernando Collor de Mello.

Os marajás, é claro, eram os inimigos de sempre da elite selvagem, os funcionários públicos. Foi criada uma campanha nacional de denúncias contra os trabalhadores que eram acusados de salários altíssimos, vivendo como marajás. Globo, Veja e Isto É cavoucavam histórias de trabalhadores públicos milionários e forjavam o ódio da população contra os “privilegiados”. E havia? Sim, havia, como há até hoje. Alguns poucos, muito poucos. Mas a já conhecida manipulação midiática agiu com todas as fichas. Não iria deixar um barbudo comunista (?) tomar o poder.

Collor, empunhando a espada da justiça, virou o candidato da classe dominante e a primeira eleição direta, depois de mais de duas décadas de ditadura e um governo de transição, foi vencida pelo valente governador alagoano, que iria varrer do país a corrupção. Sim, essa história da carochinha existe faz tempo. Não é uma pauta nova.

Naqueles dias nós como nação atravessamos mais um umbral do inferno. Com Collor na presidência veio o famoso ajuste neoliberal. O Brasil seria como o Chile, o México e outros tantos países da América Latina que estavam se livrando do “peso” de tudo o que era público. A privatização salvaria o país. E, de novo, a máquina de ideologia midiática agiu com força. E, assim, como hoje, havia o cercadinho em Brasília onde os admiradores do novo presidente jovial e atlético, iam vê-lo correr, todas as manhãs. Era o seu ritual. Saía de manhã, sempre com uma camiseta com dizeres motivacionais, e fazia sua corrida. Atrás dele corria a imprensa babosa, e no trajeto, as pessoas gritavam e sonhavam com uma foto com o herdeiro da coroa. Quando a corrida acabava, ele abria a boca para os microfones e vociferava contra o serviço público, contra os trabalhadores, contra as empresas públicas e atacava o Congresso Nacional. Sim, esse roteiro já vivemos.

Mas, no campo da economia, o atleta logo disse a que veio. Lançou o Plano Collor, congelando os preços outra vez. E enquanto a mídia festejava suas corridas, ele confiscou a poupança da população. Sim. A poupança. Toda a gente que tinha dinheiro guardado na poupança ficou sem ele. Não podia sacar. Não confiscou investimentos na bolsa ou em outras operações que envolviam mais dinheiro. Não. Roubou a grana dos pobres. E, não satisfeito, ainda confiscou valores que estavam nas contas-correntes. Então imaginem o que foi o desespero das pessoas, no geral classe média baixa, tendo perdido todos os seus recursos.
Foi um choque.

Naqueles dias o Paulo Guedes era uma mulher: a ministra Zélia Cardoso de Mello. Ela justificava o confisco como necessário para equilibrar as contas. Vamos salvar o país, e que seja o povo mais pobre a pagar a conta. Óbvio. Nunca antes a população tinha pago um preço tão alto e o caçador de marajás mostrava que os marajás eram os únicos que não seriam caçados. Aqueles foram tempos tenebrosos. Gente se matou, famílias inteiras foram à bancarrota, negócios se esfumaçaram.

No terceiro ano de governo de Collor, a própria elite dominante, cansada das ditas “loucuras” do presidente, decidiu que tinha de derrubá-lo. Assim, aproveitando o desespero da população que já se levantava em rebeldia, passou a apoiar as manifestações dos “caras pintadas”, movimento da juventude que pintava o rosto de verde e amarelo nos protestos contra Collor. Sim, nós da esquerda já usamos as cores da nossa bandeira para protestos massivos e foi bonito. Até a Rede Globo entrou na luta, mostrando as grandes manifestações e incentivando a participação. Por fim, Collor foi denunciado ao Congresso por ter usado dinheiro público para fazer um jardim na casa da mãe e o congresso, acossado pelas ruas, decidiu pelo impeachment. Sim, não foi por 200 mil mortes, mas por conta de um jardim e de um Fiat Elba.

A partir daí o que se seguiu foi uma sequência de presidentes bem comportados e alinhados com os desejos da classe dominante. Fazendo tudo pelos mais ricos e tirando tudo o que podiam dos mais pobres. Passamos também por governos petistas que, apesar de terem atuado com mais eficácia na redução de danos para os mais empobrecidos, nunca avançaram numa pauta de mudanças estruturais. Pois é, temos vivido o inferno, nós, os trabalhadores, parece que desde sempre.

Assim o que estamos passando agora, com o novo dirigente da nação, não é novidade. A história se repete, como farsa, em decibéis mais elevados. De novo as bravatas, de novo os inimigos internos, de novo o que vai nos salvar da corrupção, de novo o que (aparentemente) briga com os deputados, de novo o presidente atleta que faz flexões, corre, anda a cavalo e resfolega. De novo, a imprensa baba-ovo correndo atrás. De novo o cercadinho. De novo, um povo apático, porque tinha esperanças.

E bueno, o certo é que a história não é um terminal de ponto final. Ela caminha sempre para frente. Nós já conhecemos bem as instâncias do inferno, nós já nos enfrentamos com o diabo centenas de vezes e ainda que a custo alto, temos vencido. O belzebu dos nossos dias já é conhecido e as veredas da resistência se perfilam. Não há mal que sempre dure. Uma greve aqui, outra ali, uma pequena manifestação acolá, a coisa vai crescendo porque é a vida material que define o rumo. A vida encontra o caminho para viver. A maioria escolhe não aceitar um governo que traz a morte. Isso a história da humanidade nos mostra, está tudo aí, nos livros. Todos os tiranos caem, os maus governos se acabam e a luta dos povos não tem fim.

Portanto, não há que desesperar. Há que fazer o que sempre fizemos. Resistir, organizar e lutar. Como diz o poeta mineiro: “a canção sabemos de cor. Só nos resta aprender”.

Aguarda aí, diabo da vez. Estamos em caminhada.

Elaine Tavares

Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC

Elaine Tavares
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