Gaza é o fim da humanidade: “Existe um projeto para exterminar as pessoas problemáticas"
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- Berta Camprubí
- 29/07/2024
Raul Zibechi (Montevidéu, 1952) começa a ser o que algumas comunidades chamam de ancião, um pensador com visão global, localizado na América Latina, com experiência e um longo caminho a percorrer. Uma pessoa idosa que, além disso, dá cada vez mais importância à espiritualidade e ao cuidado. Ele gosta de voltar a lugares - Chiapas, Wallmapu, Cauca... – de vez em quando, para ver como os processos de luta, as comunidades organizadas, os povos resilientes e os territórios vivos avançam, regridem ou se transformam. Ele é um daqueles que traz à tona o patriarcado e o machismo em qualquer resposta, sem precisar nomeá-los de propósito, algo raro em homens brancos relativamente privilegiados.
Zibechi esteve em Barcelona apenas alguns dias, para apresentar o livro Veus per una transició ecosocial (Pol·len Edicions, 2024) no qual colaborou com um artigo sobre a descolonização da transição ecossocial, basicamente um apelo a não fingir que esta transição é liderada pelos Estados, mas pelas pessoas e pelos processos.
Conversamos em Ona Llibres em uma grata tarde chuvosa. Eis a entrevista.
Raúl Zibechi (Foto: El Salto Diário)
Você gosta de ler o mundo a partir de seus processos de resistência, em termos de construção comunitária, de construção de autonomia. Como vê o mundo a partir desses termos no atual momento?
Vejo-o à beira do precipício, vejo-o a um fio da destruição da humanidade e, nesse sentido, toda a visão assenta em dois pés: num só maspé, as guerras que estão aumentando, a Ucrânia, Israel contra a Palestina, mas também o Iêmen, o Afeganistão, a Síria... e guerras não declaradas como a do México – 350.000 mortos! – ou da Colômbia. Por outro lado, este caos climático e um futuro que não sabemos como será, porque o caos não é só climático, é social, é geopolítico, é um caos cultural.
Os valores que existiam antes, nos períodos dos estados de bem-estar ou dos estados que ordenavam um pouco as sociedades, hoje estão totalmente fora de controle e é aí que é mais difícil interpretarmos o que está acontecendo. Hoje temos um problema com as bússolas, os instrumentos para saber onde estamos e como se movem os ventos, e as ondas estão a falhar, mesmo na meteorologia, que é uma ciência crítica.
Os territórios que você conhece melhor são os de Abya Yala (Américas). Como vê os processos de resistência como o zapatismo ou as lutas indígenas na Colômbia diante do aumento da violência das drogas?
Não sei se poderíamos dizer que estão em crise, mas enfrentam sérios obstáculos. Não só por causa do tráfico de drogas, mas também por causa do progressismo. López Obrador militarizou o México, Boric enviou mais soldados para Wallmapu do que Pinochet, o progressismo muitas vezes encerra processos de resistência. Em Cauca, com Gustavo Petro e Francia Márquez, conseguiu-se a entrega de terras ancestrais, mas nem sempre para a construção. Esses processos também estão enfrentando muita divisão interna. E agora entrando na violência do tráfico de drogas: tráfico de drogas também é extrativismo, é capitalismo, é patriarcado.
A cocaína também é colonial, consumida principalmente no norte global, enquanto a folha de coca é cultivada apenas na Colômbia, Peru e Bolívia.
Sim, sem dúvida, o tráfico de drogas é colonial: o colonialismo e o patriarcado trabalham juntos porque são inseparáveis. María Galindo diz frequentemente que “não se pode ser antipatriarcal sem ser anticolonial e vice-versa”. Atualmente, o colonialismo, agora um neocolonialismo, de mãos dadas com o extrativismo, a acumulação por desapropriação, está mudando as geografias. No caso do tráfico de drogas, as principais rotas já não vão para o norte, explica Petro, e nisso ele tem razão: com o aumento do consumo de fentanil nos Estados Unidos, a cocaína é menos consumida e as rotas vão mais para a Ásia e para a Europa, passando pelo Brasil e também pela Argentina e Uruguai. Sim, a poluição e a violência permanecem nos territórios do sul e as drogas vão embora. Mesmo assim, é importante destacar que, ao mesmo tempo, novos processos de autonomia surgem em diferentes lugares, na Amazônia peruana: nos Wampis e nos Achuares nove governos autônomos já foram estabelecidos em poucos anos (ver matéria do Correio sobre a experiência dos governos territoriais autônomos aqui).
No nível da política institucional na América Latina, a alternância entre progressismo e conservadorismo – mais ou menos ultra – aprofundou-se. A instabilidade reina. Vou citar algumas situações e você nos diz como você as vê do seu ponto de vista. A primeira, a volta de Lula ao Palácio do Planalto após quatro anos de Bolsonaro.
Horrível. Quer dizer, o Lula não é pior que o Bolsonaro, mas o Lula atual comparado aos primeiros governos Lula está vários degraus abaixo, não está fazendo nada de interessante.
Criou o Ministério dos Povos Indígenas. Para domesticá-los, com Sonia Guajajara. Porque os povos indígenas foram a principal resistência a Bolsonaro. Mas com Lula o extrativismo e o capitalismo continuam avançando e até João Pedro Stédile, líder do MST, que sempre foi lulista, disse outro dia que não houve avanço na reforma agrária, o que é uma pena.
Depois, no Peru, temos um presidente eleito em prisão preventiva desde dezembro de 2022.
Primeiro, devemos considerar que Pedro Castillo nunca foi de esquerda, nunca foi progressista, foi stalinista, aliado da pior esquerda do Peru, dirigiu um governo corrupto, instável, oscilando de um lado para o outro. E quem o derrota é a velha oligarquia tradicional peruana, com um número de mortos de pelo menos 60. Dina Boluarte é um monstro, sem dúvida, mas Castillo talvez não tenha tomado as melhores decisões.
Nayib Bukele foi recentemente reeleito em El Salvador, com prisões cheias de jovens num país que é hoje proclamado como o mais seguro da América. A custo de quê?
À custa da libertação de territórios para o extrativismo. Está fazendo acordos com empresas mineiras e outras para encorajar a expropriação. Ele não está tão preocupado com a segurança das pessoas, mas sim com os interesses econômicos e financeiros com as empresas que extraem recursos. Só porque a pessoa é jovem e tem tatuagens vai para a cadeia. E agora, mesmo sendo proibido pela Constituição, Bukele é reeleito presidente por mais cinco anos. É um regime militar.
Milei na Argentina: como isso pôde acontecer?
Milei é filho de um longo período de governos progressistas ruins. E é o resultado de um período de deterioração das condições de vida dos setores populares, de inflação de 100% e de 50% da população na pobreza. Por um lado existe esse empobrecimento, falta de horizontes. E, por outro lado, a forte base social de Milei são homens com menos de 25 anos que reagiram ao empoderamento das mulheres da sua idade. A sua proposta é profundamente patriarcal, violentamente sexista e é também uma reação de um setor da classe média que está farto dos pobres e do Estado apoiar os pobres com subsídios.
Dada a tanta instabilidade na América Latina, projetos como a Unasul foram deixados para trás. Existe alguma iniciativa de integração latino-americana que esteja funcionando e que possa desempenhar um papel em nível global face a uma possível transição ecossocial?
Na América Latina, um projeto de integração não funcionou em grande parte devido à lógica colonial, porque cada nação tem de competir com as outras pelos seus interesses, pelas suas exportações. Hoje os Estados sobrevivem com o extrativismo, com a acumulação por desapropriação. Os únicos sujeitos capazes de liderar uma transição ecossocial, ou nos quais poderíamos focar, são os povos indígenas, os camponeses, os negros e algumas periferias urbanas. São claramente os que têm a menor pegada ambiental.
Os Estados não têm propostas, então?
Não, de maneira nenhuma. Note-se que o projeto Petro é uma aliança com o Pentágono para proteger a Amazônia, o que é outra ilusão porque o Pentágono é a instituição com a maior pegada ambiental do mundo. Há um enorme déficit dos Estados que também continuam a vender petróleo. Agora há um debate muito forte no Brasil porque Lula quer permitir a exploração de petróleo na Amazônia e isso prejudica o povo. O Estado-nação é um grande consumidor, um grande predador, necessita necessariamente do extrativismo para implementar o seu próprio sustento. A matriz colonial do Estado na América Latina levou-o a ser o protetor da mineração e das monoculturas.
Acredito que devemos olhar para as pessoas como sujeitos desta transição para um mundo sustentável, basicamente porque elas precisam de água limpa para viver, precisam dos seus territórios livres de mineração. E estão a ser feitos progressos neste sentido, por exemplo agora na Colômbia foram criados Territórios Agroecológicos por organizações camponesas ligadas ao Congresso Popular. Isto é muito importante porque o Estado não tem outra escolha a não ser sancioná-los no âmbito dos acordos de paz e, se forem implementados, daremos saltos em frente. Mas, insisto, os sujeitos são as pessoas, não os governos, não os Estados. Não podemos acreditar que as coisas possam ser mudadas através do poder estatal. Um dos problemas desta transição é que o Estado já não é uma ferramenta de transformação positiva.
A matriz colonial do Estado na América Latina levou-o a ser o protetor da mineração e das monoculturas.
Foi em algum momento?
Em algum momento ele atuou como árbitro entre as classes. Na Europa, sobretudo com estados de bem-estar social, na América Latina com estados de bem-estar social mais restritos, mas foi.
Concorda com os postulados do decrescimento?
Há mais de 30 anos que falamos em decrescimento, a princípio não discordo, o problema é outro: quando criamos uma proposta que é boa, quem é que faz?
Numa hipotética instalação de políticas públicas para lançar o decrescimento, você acha que todos os países deveriam diminuir da mesma forma ou na mesma velocidade? Existe uma visão anticolonial do decrescimento?
Os primeiros que têm de diminuir são as grandes empresas petrolíferas e mineiras, o 1% mais rico, que é o que tem a maior pegada, e os exércitos. Quem mede os impactos das bombas em Gaza no meio ambiente? Devemos estar conscientes de que o decrescimento, tal como toda a transição, é um processo de conflito social.
Deveríamos começar pelos setores sociais, países, nações que mais poluem. Se pedirmos a uma comunidade amazônica, que tem carro para 200 pessoas, que diminua o mesmo que Barcelona, estaremos cometendo uma injustiça ambiental brutal. Precisamos ser muito precisos. O decrescimento realizado a partir dessa lógica seria uma política anticapitalista e anticolonial.
Na Europa, a extrema-direita está em expansão. Disse que uma política de integração dificilmente poderá funcionar na América Latina. Está funcionando na União Europeia? Qual é o papel da UE do seu ponto de vista?
A União Europeia foi criada para exercer um poder que não estava subordinado aos Estados Unidos, esse foi o início do euro. Hoje esse projeto está perdido, a Europa está subordinada aos Estados Unidos, sem capacidade para ter uma política internacional minimamente autônoma e agora numa situação de crise, de falta de futuro, irrompe esta nova política que se chama extrema-direita, mas que eu discordo. Hoje, direita e esquerda são muito semelhantes. A energia deve ser aplicada noutra coisa e não em campanhas eleitorais.
Aqui na Espanha, os grupos organizados de migrantes sabem bem quais os partidos – efetivamente de esquerda e de direita – que votaram a favor do Pacto Europeu sobre Migração e Asilo e fizeram campanha para votar nas eleições europeias nessa chave.
Podem votar, não tem problema, mas se não nos organizarmos, se não houver força popular, não estaremos fazendo nada.
Finalmente, a situação em Gaza traz aos grupos organizados contra a guerra, o racismo e o fascismo um sério sentimento de desesperança. O que você vê em Gaza? Onde devemos procurar colocar em prática alguma esperança ativa?
Acho que Gaza é o fim da humanidade. Gaza deixa claro para nós que 1% da população está disposta a eliminar cidades inteiras para permanecer no poder. Não é que os israelenses sejam maus – o que em geral são – mas que existe um projeto para exterminar pessoas chatas. Que são palestinos, que são iemenitas, que são zapatistas, nasas, mapuches... Esse é o projeto, e é um projeto colonial. A maior esperança é que o povo seja tão poderoso, tão forte, que aqueles que estão acima precisem atacá-lo para destruí-lo e eliminá-lo da face da terra. Os que estão no topo têm um certo medo dos que estão na base, essa é a esperança.
Berta Camprubí é jornalista do Diário El Salto, onde esta entrevista foi originalmente publicada.
Tradução: IHU Online.
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