Correio da Cidadania

Lasciati ogni speranza, voi ch’entrate

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A foto dos dois principais políticos da Nova República brasileira selando um pacto para derrotar o até agora principal político do pós-Nova República viralizou nas redes internéticas recentemente. Tirada por Ricardo Stuckert, conhecido por ter sido fotógrafo oficial do ex-presidente Lula (2003-2010), por fotografar os índios Yanomâmi e pela direção de fotografia e de imagens do documentário Democracia em vertigem (dir. Petra Costa, Brasil, 2019), a foto é de uma qualidade técnica inegável. O foco preciso no olhar, a iluminação perfeitamente posicionada, o fundo desfocado, dentre outros elementos, não deixam dúvidas quanto ao profissionalismo e a natureza dirigida da cena.

Assim como viralizou, a tendência é que a imagem caia no esquecimento tão rapidamente quanto apareceu. Não devemos supor que isso acontecerá apenas por causa do veloz fluxo do espetáculo imagético em tempos de pós-verdade. Pois a imagem não é apenas ensaiada e planejada, ela é tediosamente ensaiada e planejada, além de ser desanimadora. Das cores ao posicionamento dos protagonistas, tudo é absolutamente encenado e murcho. A absoluta falta de espontaneidade não passa despercebida a um olhar menos relapso, ou menos prosélito, e traduz-se na falta de vigor do gesto e no aspecto descorado da imagem, quase desbotada.


Figura 1: Meme do encontro entre os ex-presidentes Lula e FHC. Fonte da imagem: perfil "Lula neoliberal”, Facebook, 22/05/2021, 10h04.

A inversão das cores tradicionalmente ligadas aos candidatos – FHC vestindo as cores de Lula e vice-versa – é o que primeiro se nota. E pela combinação do tom terroso avermelhado do colete, o branco das máscaras e o azul acinzentado do paletó, a imagem também pode ser lida como uma emulação das cores da bandeira da França, ou também da bandeira dos EUA, já que as cores de ambos os pavilhões são similares, se não as mesmas.

É comum pensar que a tricolor francesa representa os ideais da Revolução Francesa: para a liberdade, o azul, para a igualdade, o branco e para a fraternidade, o vermelho. É esse o simbolismo retomado na famosa trilogia cinematográfica de Krzysztof Kieślowski, cujo sucesso nos anos de 1990 é proporcional ao seu teor crítico à nova globalização então incipiente, bem como a então nascente União Europeia. Pois para questionar a universalidade desses ideais, o diretor polonês enfatiza o simbolismo das cores à revelia do processo histórico que deu origem à bandeira da França moderna.

Historicamente, a bandeira francesa nasceu na reunião das cores tradicionais de Paris, o azul de Saint Martin (São Martinho de Tours) e o vermelho de Saint Denis (São Dinis de Paris), aos quais uniu-se o tradicional branco da nação francesa. Nos dias revolucionários da Queda da Bastilha, a milícia de Paris usava fitas vermelhas e azuis em seus chapéus; o branco foi acrescentado a essas cores para “nacionalizar” o adereço. Enquanto os monarquistas, defensores do Antigo Regime, usavam o branco, os jacobinos e socialistas usavam o vermelho. A insígnia tricolor passou, então, a ser vista como sinal de moderação nacionalista acima dos partidarismos polarizados, como hoje em dia se costuma falar. Nasceu, assim, a insígnia da França, com a simbologia das cores ressignificada para representar os três estados da sociedade francesa: o azul, tomado emprestado dos Estados Unidos da América, representaria a liberdade burguesa e a democracia; o branco representaria a nação; e o vermelho representaria o terceiro estado, composto pela classe trabalhadora, encarnada no proletariado. Mas a simbologia oficialmente adotada em 1792 é um pouco diferente: o azul representa o clero, o branco, a nobreza e o vermelho, os trabalhadores. Essa simbologia mantém, de certa forma, a memória do Antigo Regime, no qual o branco estava pelo clero, o vermelho representava a nobreza e o azul, a burguesia.

Com esse histórico, a disposição das cores na bandeira fica mais fácil de entender: de cada lado do branco, representativo de uma ordem abstrata e superior, estão as cores vivas das classes que dividem o poder no mundo concreto, em três largas faixas verticais, perfeitamente simétricas. Se comparada às antigas bandeiras nobiliárquicas da Europa, a bandeira da França é, ela mesma, uma lição de universalidade abstrata cuja concretude é determinável a posteriori. É ainda notável que, oficialmente, a bandeira francesa pode vir em cores mais escuras ou mais claras, sendo essas últimas usadas em pronunciamentos oficiais pela televisão e alguns edifícios públicos, por serem mais vistosas. A imagem nítida da nação, com isso, estaria assegurada.


Figura 2: representação da bandeira da França nos dois padrões, o claro e o escuro. Fonte da imagem: Wikipedia.

A bandeira dos Estados Unidos da América do Norte também nasceu de uma Revolução, a de independência, de 1776. Assim como a da França, ela é geometricamente abstrata, mas um pouco menos, pois no canto superior esquerdo das trezes listras vermelhas e brancas, representando as trezes colônias da Nova Inglaterra que declararam a independência do Reino Unido da Grã-Bretanha, está a “união”, um retângulo azul em que (atualmente) cinquenta estrelas de cinco pontas representam os cinquenta estados. Essa bandeira também é conhecida pelos nomes de “stars and stripes”, isto é, estrelas e listras, “old glory”, glória antiga, e, notoriamente, “star-spangled banner”, bandeira salpicada de estrelas, digamos assim. A bandeira estrelada americana também carrega a memória da velha Europa, já que é bastante similar à bandeira da Companhia das Índias Ocidentais, que traz as mesmas trezes listras vermelhas e brancas, mas com a bandeira do Reino Unido no canto superior esquerdo.

Porém, a Guerra de Secessão (1861-1865) criou o culto à bandeira que até hoje se mantém nos Estados Unidos e apagou da memória coletiva os vestígios das velhas simbologias. A bandeira estrelada, até aquele momento usada apenas como insígnia militar, passou a partir de então a ser vista como símbolo da unidade nacional. E quando foi aventada a retirada das estrelas dos estados secessionistas do sul, Abraham Lincoln vetou a proposta, alegando que isso conferiria aos estados confederados legitimidade como um corpo político à parte da nação unificada.

Diferentemente da tricolor francesa, a estrelada estadunidense não tem uma simbologia oficial convencionada para as cores. O branco é comumente associado à pureza e à inocência, o vermelho, à resistência ou o esforço valoroso, e o azul à perseverança, à justiça e à vigilância. Mas o nacionalismo ianque também associa o vermelho ao sangue dos soldados que morreram para proteger o país. E Ronald Reagan deu uma interpretação pessoal das cores da bandeira, associando-as às virtudes do povo dos Estados Unidos: o vermelho representa a coragem e a prontidão para o sacrifício, o branco está pelas intenções puras e os ideais elevados e o azul está para a vigilância e a justiça. Com toda essa carga de ufanismo, não admira que a bandeira estrelada tenha atraído a atenção de tantas manifestações.

Na representação artística de Jaspers Johns, um trabalho que combinou painéis, tinta e encáustica, isto é, uma mistura de pigmento e cera derretida que capturou as gotas, manchas e pinceladas da tinta, a quebra da universalidade abstrata chegou a ser entendida como uma ofensa ao nacionalismo quase religioso que a bandeira suscita nos EUA. Pois sob a transparência das listras da bandeira, distingue-se uma colagem de pedaços de jornal cujas datas localizam esse símbolo comum no tempo e no espaço, revelando a sua convencionalidade ou arbitrariedade. O culto à bandeira é tamanho nos EUA que até a profanação da bandeira é legalizada como um ato de liberdade de expressão, baseado na Primeira Emenda à Constituição. E até mesmo atear fogo na bandeira é um ato legítimo, positivado em lei.


Figura 3: Jaspers Johns, Bandeira, 1954.

Não admira que as cores das bandeiras sejam vívidas e marcantes. É preciso estar pronto, é preciso agir com força, é preciso ter orgulho de ser quem somos – é isso que as bandeiras devem insuflar nas pessoas. Nas bandeiras da França e dos Estados Unidos, é notável, ainda, o branco a representar a abstração maior em que convergem os ideais, a absorção das diferenças particulares na universalidade nacional. É contra esse contexto límpido que as contradições se deixam ver mais claramente e os contrastes ficam mais nítidos. A nação intermedia entre as diferentes facções, é na sua pureza que as máculas se apagam, é nela que as diferenças se evidenciam com mais força apenas para se tornarem invisíveis na composição da união superior, tendo em vista que o lugar de cada particularidade no todo é especificado pela comunidade, pela nação.

Voltando à fotografia dos dois ex-presidentes brasileiros, o que vemos é tudo, menos isso: esmaecidas, teriam as cores fortes de outrora envelhecido como as pessoas na imagem? Também não há bandeiras, mas há uns verdes desfocados ao fundo e uma difusa luz amarelada que poderia ser de sorrisos escondidos pelas máscaras, não? Assim como as cores das vestimentas remetem às bandeiras estrangeiras, há um aspecto ali que remete às cores da bandeira do Brasil, mas o verde, o amarelo, o branco e o anil não estão realmente ali. A alusão é vaga e a imagem pode ser vista como uma simulação de outras pátrias, outras glórias, outros tempos, outras pessoas.

Mas seriam mesmo glórias? Parece mais fraqueza o que ali se vê.

Parece-me inegável que a falta de vivacidade se reflete no gesto ao qual falta vigor. Pois os braços direito e esquerdo de cada presidente, a simbolizar ainda os seus respectivos espectros políticos, não demonstram muito esforço ou resistência. Talvez se esforcem unicamente para se manter naquela posição. O toque de punhos fechados, com o braço de Lula ligeiramente mais esticado, está longe de parecer um soco de boxe, parece mais um toque a contragosto, um tanto constrangido, e claramente sem qualquer empolgação, vigor e muito menos fúria ou determinação. É difícil evitar a impressão de que a energia de outros tempos se dissipou, mas não é difícil perceber a inexpressividade das faces, pois, ainda que com máscaras, as sobrancelhas evidenciam a falta de constrição muscular. Que teria acontecido com as contradições? O pacto as resolveu ou sequer existiram, como outras narrativas e fotos conhecidas querem estabelecer? Tudo é possível, ou relativo, nesse país de tamanhas contradições. A única diretriz claramente definida é o olhar dos dois ex-presidentes, em linha reta a quem olha para eles – eles mesmos não se olham, dirigem o olhar a nós, que os olhamos. Mas quem realmente visam?

Difícil dizer, mesmo porque há muitas maneiras de ver essa imagem. Não resta dúvida, porém, de que a imagem foi muito bem planejada para mostrar mais o que aproxima os dois ex-presidentes do que qualquer elemento que os separe. Na falta da brancura límpida em que todas as cores se fundem, a falta de energia e de vivacidade parece estar ali para evidenciar ausência de radicalismo e negação de algum extremismo, pois as pessoas ali não estão cada qual de um lado bem definido, mas num mesmo ambiente cuidadosamente decorado e contingentemente desfocado.

Um cenário desfocado, aliás, pode bem ser uma metáfora. Nada de cores gritantes, nada de estilo histriônico na política. Nada de contrastes fortes, mas moderação, apaziguamento, distanciamento e enfrentamento controlados, dentro dos protocolos exigidos pelo contexto, sem grandes multidões, de forma a diminuir as resistências e trombadas. Os protagonistas preenchem a cena ao mesmo tempo em que se posicionam como foram dirigidos para se posicionar. Podem ficar tranquilos, não há perigo algum aqui, conflito algum – é a enunciação que previsivelmente condiz com o cenário burguês.

Nada mais explícito, então, do que o meme que escancara o elo que une os envolvidos na imagem com os aliviados pela imagem, os que estão fora da imagem. De um lado, ainda que tenha se pronunciado contra o atual presidente, FHC não fez replicar a foto em suas redes digitais e resguardou certo distanciamento eleitoral, como era de se esperar. Por outro, a foto foi divulgada pelo próprio fotógrafo, que a repetiu das redes digitais do ex-presidente Lula, com as legendas. Trata-se, evidentemente, de um ato de campanha, um sinal enviado a certo público. É por Lula que sabemos que o encontro foi arranjado por Nelson Jobim, em cuja residência a foto foi tirada.

Ex-ministro do STJ, ex-ministro da justiça de FHC e ex-ministro da defesa do mesmo Lula e de Dilma Rousseff, Jobim é presidente do conselho administrativo do Banco BTG Pactual, banco de investimentos fundado em 1983 por, dentre outros, Paulo Guedes, ministro da economia do Brasil. Se, então, analisarmos a imagem com o par conceitual campo-e-contracampo, veremos que o meme traz ao primeiro plano o contexto de fundo desfocado pelas reações que fizeram a imagem viralizar como sinal da moderação ansiada pela cultura média, seja ela arrependida de seu autoflagelo ou exasperada pelo bombardeamento da usina midiática do atual governismo. O contracampo que dá sentido ao enquadramento e aos olhares que emanam da foto, porém, não parece ser o mesmo dessa cultura média.

Nesta época, em que as cores do nacionalismo brasileiro estão mais saturadas e o verdeamarelismo berrante assume dimensões hiperbólicas, ou talvez, em certos casos, até mesmo paranoicas, essa fotografia de FHC e Lula mostra atores políticos mais inexpressivos, mais flácidos, mais pastéis como a paleta das cores escolhida. Resta saber se aqueles a quem a imagem se dirige não preferem luzes mais exageradas, cores mais gritantes, cenários menos controlados e, sobretudo, atores menos políticos ou, até mesmo, antipolíticos.


Cordiais saudações.

Nota: A frase “lasciati ogni speranza, voi ch’entrate”, que intitula o artigo, faz parte de Inferno, da trilogia A Divina Comédia, do poeta italiano Dante Alighieri. Significa “abandonem as esperanças, vocês que entraram aqui”.

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