Correio da Cidadania

Bacurau e o mito do cangaço

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Afirma Gilberto Freyre: nunca houve cangaço, mas cangaços; honras, e não apenas honra; crimes, e não crime. Mas nunca variou a solução adotada a qualquer que fosse o problema. A aplicação rigorosa da mesma lei de vingança — a morte, o sangue — unifica com notável coerência as múltiplas e irregulares razões do cangaço.

O cangaço de Bacurau (dir. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Brasil, 2019) não foge à regra, ainda que exiba em tela, novamente, o mito do cangaço como reação dos oprimidos. O filme pretende que a história do lugarejo com nome de ave seja uma metonímia da história de todos nós hoje, habitantes desse imenso sertão brasileiro, participantes de um terrível cangaço nacional, uns mais propensos a um banditismo justiceiro, outros como forasteiros num território que jamais reconhecerão como sua terra. Estes personificam todo o mal, todo o preconceito, o total retrocesso; aqueles, o lado bom, porém marginalizado, da história.

Na composição desse cenário, o filme retoma dos cangaceiros reais algumas características eminentes, como, por exemplo, a ostentação e os ornamentos nos trajes, que reaparecem, pós-modernizados, nos adereços e na androginia de Lunga (Silvero Pereira); mostra também os sudestinos arrogantes como os soldados rasos de uma milícia-volante, paus-mandados de estrangeiros invasores ainda mais arrogantes, mais próximos do que se acham dos cangaceiros; a caatinga como território dúbio, ao mesmo tempo condição de isolamento e de sobrevivência, ainda que precária; a ligação entre erotismo e morte; o banditismo como reverso do messianismo. Com esses elementos, Bacurau reativa uma ideia do cangaço, condizente, é verdade, com a história da recusa da regra do colonizador estrangeiro que transformou o sertão nordestino no nosso velho Oeste. Mas condizente com o que mais?

Pois bem. Sabemos que narrativa alguma precisa da verdade factual para ter legitimidade. E sabemos também que nenhuma idealização, mito algum resiste ao confronto com os fatos. Se o mito é o nada que é tudo, isso não significa desimportância da outra metade do nada. De fato, o declínio da cultura canavieira possibilitou a cultura do sol e do couro que forjou, a ferro e sangue, um novo tipo social no Nordeste brasileiro. Na luta de vida e morte com os indígenas, encouraçado contra o espinho da caatinga, mais independente das origens e dos recursos da civilização europeia, nascido mais do isolamento e do desenvolvimento interrompido do que de um projeto em movimento, surge, nas palavras de Gilberto Freire, um “autocolonizador”, um tipo “pré-brasileiro” próprio de uma sociedade e uma cultura outras, das quais o cangaço é parte proeminente.

Morta a metade do nada, nasce o mito a fecundá-la. O cinema nacional sempre gostou de ver no cangaço a vida primordial e absoluta que
o colonizador busca por todos os meios extirpar. No sertão longínquo e esquecido, cada um vive sem lei nem rei e feliz, abandonado à própria sorte, à margem ou mesmo totalmente fora de qualquer domínio de civilização, em franca liberdade. Território aberto onde gado e vaqueiros não conhecem cercas, o sertão é o nosso estado de natureza. Sua lei é o olho por olho, dente por dente. A esse mítico sertão, Bacurau acrescenta que, se as pessoas vivem ao léu, ainda assim são felizes em comunidade, o que faz toda diferença.

Em Bacurau, os colonizadores malvados são invasores contra os quais lutam habitantes bonzinhos do lugarejo — párias sociais, excluídos, esquecidos, marginalizados. Para derrotar os terroristas estranhos, resgatam suas origens, revivendo o cangaço e salvando a comunidade. O cangaço promove a revolução dialética da história: os donos do poder são punidos como criminosos que são, os bandidos alçam-se a senhores da verdadeira justiça. Sem restar pedra sobre pedra, os injustiçados são redimidos, os irredentos da história mostram quem é que manda de verdade ali e, ao final, numa catarse memorável, invertem o eixo do terror: em vez de perpetrar uma rapina fácil, os terroristas são surpreendidos e terminam aterrorizados dentro do território das vítimas, pelas próprias vítimas.

Tal como a ave homônima do vilarejo, a população surpreende o inimigo, literalmente pulando do chão à sua frente. Quando menos esperam, de ocultos, os inimigos passam a descobertos, de espreitadores a espreitados, perdendo, assim, o controle do jogo de luz e sombras. Em sua estratégia, eles precisam controlar, à distância como os espectadores, protegidos pela tecnologia, a movimentação dos bacuraus. Mas nenhuma tecnologia funcionará contra a guerrilha letal dos bacuraus. Em vez de tentar defender o território, os bacuraus trazem os invasores para dentro dele: — “entrem, conheçam, é interessante”, diz Domingas (Sônia Braga), olhando para nós, espectadores, como se fôssemos os invasores.

De fato, não estamos fora do campo do filme. O cinema ensina que o conforto do olhar distanciado é mais uma ilusão por ele mesmo criada para sabotar as convicções do espectador. O convite de Domingas à aproximação traz à luz a ineficácia do rifle e da mira à distância. Aos bacuraus (como aos cangaceiros, seus ancestrais) interessa o corpo a corpo, a luta e a degola à faca. Quem os vê de longe pode se enganar. Quem adentra sua terra, está à mercê de seu domínio. Nada aparece como é, tudo pode ser diferente, e todos podemos estar sob o efeito de fortes psicotrópicos. O filme lança, assim, um repto de meta-reflexão aos espectadores. Mas consegue sustentar esse desafio? Que convicções o filme sabota? De quem?

É uma verdade histórica: o cangaço nunca foi uma forma de organização popular e coletiva, como o filme quer fazer pensar. Lampião nunca foi o paladino da justiça popular que a cultura de cordel gravou, mas, sob as bênçãos de Padre Cícero, tornou-se capitão de uma milícia
paramilitar de caça à Coluna Prestes. Se, de fato, a maioria dos cangaceiros capturados se recusava a colaborar com seus algozes, é verdade também que vários o fizeram e passaram a trabalhar nas forças volantes de caça aos ex-companheiros. Capitães do mato, mercenários, jamais redentores de todos nós.

A opção pelo mito autoriza ver Bacurau como intervenção pontual no presente. No entanto, mesmo que o filme se preste a isso, essa interpretação termina por reduzi-lo a mero panfleto. É um fato: o cangaço não está, hoje, onde o filme o representa (quem quiser, pergunte às milícias aonde se mudou). Além disso, mesmo a mitologia escolhida por Bacurau já foi duramente criticada. A derrocada do cangaço já no Cinema Novo apontava ao surgimento de uma nova ordem, uma superação ou esgotamento das próprias condições de possibilidade do cangaço.

Em Bacurau, diferentemente, apesar de ganha a batalha, a continuação da ameaça do terror aparece como condição de legitimidade do cangaço, pois sem isso o mito do cangaço-guerrilha resta esvaziado. É como se o filme prestasse homenagem ao mais comum dos cordéis do senso-comum, revelando aí seu calcanhar de Aquiles: sem as palavras de Michael (Udo Kier) quando consumada sua derrota, o sentido da vitória dos desterrados em sua própria terra seria o mesmo? Toda a potência da reação contra o opressor depende, então, da palavra do próprio opressor, o que, reconheçamos, é tudo o que o filme gostaria de evitar.

Ora, não é verdade que a força catártica do filme depende justamente da aceitação, pelos espectadores, da inversão mencionada do eixo do terror e do olhar? Em outras palavras, não é verdade que a catarse final depende da confirmação de algumas expectativas por parte do público relativas ao mito do cangaço exibido na tela? Ao fim e ao cabo, tudo acaba apenas por reafirmar os termos em que certo público já concebe esse mito. Se essa é sua força, é também sua fraqueza.

Formalmente bastante convencional, o filme é recheado de citações, bem ao gosto pós-moderno. Coerentemente, nenhuma fantasia de liberdade ou rebeldia é ressignificada, nenhuma superação das contradições é imaginada. Bem escolhidas, as alusões metalinguísticas apenas compõem um pastiche que dificilmente aceitará sua própria natureza. É claro que a “crítica” midiática vai escarafunchar cada uma das referências, de Peckinpah a John Carpenter, de Kurosawa a Mazzaropi (esse, talvez não) e deste a Glauber Rocha. Mas todo esse name-dropping, no qual boa parte dos escritos sobre o filme chafurda, é banal, uma vez que Bacurau oferece a catarse apenas a quem quer a catarse que o filme tem a oferecer. A quem duvida de que o cangaço seja uma saída, Bacurau pouco ou quase nada tem a dizer, pois, sem levar às últimas consequências a violência desencadeada na tela, o próprio filme acaba levando-se a sério demais.

Por exemplo, a morte da mãe preta, carregada de simbolismo, não consegue ser simbólica o bastante. Pois que morte é essa que não indica o nascimento de uma diferença, mas apenas sinaliza a manutenção da mesmidade? Ora, todo esse poder místico do feminino não é capaz de subverter (ou superverter) a ordem estabelecida? Estamos condenados a sempre reafirmar o cangaço sem nunca deixar de precisar dele? É como se o cangaço reafirmasse às mulheres seu lugar natural: o sertão é uma boa terra, continuem parindo e morrendo para alimentar a sua sede e a sua fome de sangue e carcaças. Faz todo sentido dentro da narrativa, é claro, mas é curioso que a população, ao fim, não transcenda o isolamento geográfico (um fator histórico imprescindível ao cangaço) e permaneça no lugarejo depauperado. É claro, não há problema em lutar para ser quem se é em sua própria terra. Mas há problema se essa luta e essa identidade são cristalizadas em imagens de autocomiseração, sem avistar qualquer transformação ou mesmo suspeição das próprias perspectivas. Se há um lugar oferecido aos vitimados da história, que lugar é esse? É o mesmo que eles próprios almejam? A resposta de cada espectador a essas perguntas provavelmente definirá seu juízo de valor sobre o filme. Isso mostra que, no fim das contas, o filme é bem condizente a certa ideologia contemporânea: aparentemente revoltoso (para falar como os antigos), mas essencialmente conformado. Em vez de brigar, esperneia.

Não é possível negar que o filme sugere algumas perguntas ao senso-comum. Que forças socialmente explosivas a violência do cangaço por fim libera? Que experiências libertadoras podem ser desenterradas da cultura popular pela via do cangaço? Infelizmente, em momento algum a narrativa sequer ousa dirigir uma olhadela – sua mesma ou dos espectadores – às razões que, antes de tudo, possibilitam a polarização entre as vítimas e os algozes, bons e maus, colonizados e colonizadores, ocupados e ocupantes. Antes, essas oposições são um pressuposto inquestionado do filme, o qual coerentemente dirige o olhar tão só às consequências, já que as toma como fato consumado. É inequívoco, no filme, o lugar reservado aos bacuraus.

Obviamente, o de vítimas de um “sistema” que em grande medida ignoram e contra o qual, ao conhecê-lo, é justo que se rebelem. Em momento algum o filme supõe representar os oprimidos como colaboradores da própria opressão (ou seja, nenhuma dialética, apenas senhores e escravos). A mera suspeita de que tais oposições possam resultar de uma grotesca comédia de erros de nós mesmos sequer é sugerida. Mas nós, os bem intencionados, nós, os espectadores distantes, nós, os que somos os outros dos outros, nós suspeitamos de tudo... Menos de nós mesmos.

Afinal, nós nos julgamos capazes de representar os “infensos a serem redimidos de suposta selvageria pelo caminho da comunhão com os valores coloniais” (Guerreiros do sol, p. 18) — né não?

É dura a vida dos que têm fome de pão, diz um evangelho apócrifo de cujo autor não me lembro, pois espírito algum jamais lhes saciará. O mesmo apócrifo poderia complementar: nem espírito, tampouco vingança alguma, pois o cangaço não é e nunca foi solução. Seu retorno, com força, a aterrorizar os incautos e os alheios, mostra quão profundas são suas raízes na vida nacional, bem como o quanto a realidade que supomos absurda e paralela pode nos surpreender a qualquer momento, quando menos esperamos.

Referência

Frederico Pernambucano de Mello. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5a ed. revista e atualizada. São Paulo: A Girafa, 2011.

Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia e gostaria que em 2020 o cangaço se restringisse aos filmes de Mazzaropi.

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