Correio da Cidadania

Índio brabo

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Uma notícia surpreendente, vinda das terras dos kayapó (que se estende pelo norte do Mato Grosso e sul do Pará), vem ganhando espaço na mídia nos últimos dias. Um grupo de índios desta etnia, que vivia sem contato com o restante da sociedade brasileira, deixou o isolamento em que estavam ao se aproximar da aldeia Kapôt (também kayapó). As notícias são de que falam o idioma mebengokré, assim como faziam os antigos kayapó; que são altos e fortes, usam cabelos longos e o botoque (um disco de madeira preso no lábio inferior); pintam-se de vermelho e preto e portam arcos e flechas.

Segundo a fotógrafa Sue Cunningham, membro da Royal Geographical Society de Londres, que nos últimos vinte anos tem documentado a história dos povos indígenas na área do Xingu e está em Colíder (MT), a cidade mais próxima, o clima é de muita emoção entre todos os índios. Os índios isolados foram recebidos com muita alegria, com cantos e danças. O interessante é que os recém-contatados lembravam-se de outras danças que os índios da aldeia Kapôt já haviam esquecido, o que provocou extrema comoção.

O jornal O Estado de São Paulo informou que “índios desconhecidos” vinham emitindo sons e sinais, percebidos pelos habitantes da aldeia Kapôt, mas sem fazer contato visual. Porém, no dia 24 de maio último, jovens desta aldeia avistaram na mata dois índios desconhecidos que, apesar de assustados, fizeram contato em sua língua. Trata-se de kayapó do tronco Metuktire, até então desconhecidos do Estado brasileiro e dos próprios kayapó, que abandonaram a terra onde moravam no sul do Pará, próxima de onde caiu o Boeing 737-800 da Gol no ano passado.

Aparentemente, os índios isolados foram atacados por garimpeiros e/ou madeireiros e caminharam cinco dias por cerca de 100 quilômetros pela mata em busca de proteção. Os kayapó “civilizados” pensavam que este grupo recém-contatado, hoje composto por quase noventa pessoas, tinha sido dizimado há quase seis décadas, quando parte dos índios da etnia passou a desenvolver relações pacíficas com a sociedade envolvente - na verdade, desde então as relações foram tanto pacíficas quanto não-pacíficas e até belicosas. Naquele processo de contato, o grupo recusou a aproximação e fugiu. Imagina-se que, além dos possíveis ataques de garimpeiros ou madeireiros invasores da terra indígena, o acidente aéreo e os trabalhos de busca também possam ter assustado os índios, influindo em sua decisão de deixar o isolamento.

O grupo recém-contatado acampou a cerca de um quilômetro da aldeia Kapôt. O local está isolado e ainda não há registros de imagens destes índios. Mas cantos da tribo foram gravados, imediatamente transmitidos por meio de aparelhos de radioamador pelas aldeias kayapó e agora pelo mundo, através da Internet (www.estadao.com.br/ext/som/2007/jun/01/audio_wma.wma). O principal interlocutor deles tem sido o cacique Megaron Txucarramãe, administrador regional da Funai, na cidade de Colíder. Para facilitar a aproximação, e como mostra de boa receptividade, Megaron solicitou à Funai que enviasse como presente aos índios miçangas coloridas, facões e machados. Miçangas, produzidas na República Tcheca, foram usadas como presentes por missionários que trabalharam na pacificação dos kayapó nos anos 1950 e ainda hoje são consideradas por eles matéria-prima para a produção de ornamentos de prestígio, tal como o ouro para nós.

Sobre o encontro dos índios aparentados vivendo separados por tantos anos, o presidente da Funai, Márcio Meira, em uma declaração à Folha de São Paulo, comparou: “É como se uma família de judeus que sobreviveu ao Holocausto 30 ou 40 anos depois descobrisse que boa parte de seus parentes sobreviveu”. Eu acho que é bem mais. É mais até do que se uma família de judeus descobrisse que parentes seus sobreviveram ao ataque do exército romano que devastou a fortaleza de Massada, no ano 73 d. C., e tivessem vivido desde então como viviam os judeus há quase dois mil anos. Isto porque este povo já conhecia o dinheiro, transformador das relações sociais, desde aqueles tempos bíblicos. Os kayapó, por outro lado, que estão saindo de um estágio pré-histórico de civilização, em breve ganharão miçangas de presente, mas mal sabem que farão de tudo, no futuro, para conseguir mais contas coloridas. Até trabalhar para ganhar dinheiro para comprá-las.

Há muito que ouço falar de “índio brabo”, em relatos dos kayapó da aldeia A´Ukre que freqüentavam a base de pesquisas do Pinkaití, a cerca de 300 km em linha reta do local de onde se acredita que vieram estes índios recém-contatados. De acordo com os kayapó, seriam membros de seu grupo original que recusaram o contato e seguiam vivendo como o “pessoal de antigo”. Eu nunca soube ao certo o quanto estes relatos eram lenda – como tantas outras histórias que são contadas como verdade pelos índios mais velhos – que funcionaria, neste caso, como uma reserva idealizada do estado primordial da cultura indígena.

Segundo contam, em raras ocasiões esses índios aproximam-se das aldeias, sorrateiramente, em busca de algum objeto de interesse que estivesse dando sopa. Mas esta também poderia ser uma estória conveniente para justificar vários pequenos delitos internos, e não há como saber o quanto disto seria real. É verdade que eu e um colega já vimos o que parecia uma pegada fresca descalça em uma trilha distante da base (os índios kayapó que conheço sempre andam na mata calçados), e outros pesquisadores dizem já ter ouvido na mata conversas que não eram dos índios que trabalham conosco. No Pinkaití, estamos tão distantes daqueles Metuktire recém-contatados, que dificilmente estes seriam os “nossos índios brabos”, de modo que a dúvida e a lenda persistem.

O fato é que os kayapó recém-contatados estão servindo efetivamente como uma reserva de conhecimentos tradicionais, como observado por Sue Cunningham, ao relembrarem cantos e danças que haviam sido esquecidos. Sem dúvida, esta comunidade tem muito mais a ensinar. E não só aos kayapó, mas a nós brasileiros de modo geral. Sobre como não depender da Funai para nada, ou da “ajuda” de madeireiros e mineradoras ou de concessões de garimpos ilegais; acima de tudo, sobre como viver harmônica e discretamente com os recursos da floresta. Certamente já há muita gente ávida por ganhar com a comercialização das suas primeiras imagens.

Infelizmente, pelo tratamento que a grande imprensa, especialmente a televisiva, de maior penetração, dá aos índios, é provável que chamarão mais a atenção pelo gosto barato e descartável do bizarro do que por questões morais ligadas às possíveis contribuições de seu modo de vida. Por outro lado, as crianças recém-contatadas aprenderão a apreciar “caramelos”, como todas as outras crianças kayapó, viciando-se em açúcar; os adultos, como os outros índios, além das miçangas coloridas, rapidamente se acostumarão com cigarros, pão, manteiga, café e macarrão; sapatos, relógios, roupas de marca, mochilas; barracas de camping, motores de popa, gasolina, molinetes e iscas-artificiais; futebol, rádio e televisão.

Segundo o Estadão, Elias Bigio, da Coordenação de Grupos de Índios Isolados da Funai, ainda teria dito que este é um fato “completamente inusitado”, por ser o “primeiro registro que se tem de uma migração em massa de índios que viviam isolados na selva e que por iniciativa própria buscaram a aproximação com regiões urbanizadas”, e os índios da aldeia Kapôt seriam considerados um risco para os novatos “devido aos hábitos, costumes e até mesmo às doenças que adquiriram após a aproximação com as áreas urbanas”. É bom que se corrija que, apesar de relativamente integrada, a aldeia Kapôt está longe do que pode ser chamado de uma “região urbanizada” e o que há de inédito é a capacidade de articulação e comunicação dos kayapó, que permite à sociedade envolvente acompanhar à distância estes movimentos internos do povo kayapó. Para os puristas, os “hábitos e costumes” dos kayapó podem representar riscos para estes novos brasileiros. Mas é neles, seus parentes, que os recém-contatados decidiram confiar e serão eles que se encarregarão da sua integração.

Se este é um assunto interno dos kayapó, o que o leitor deste artigo tem a ver com esta notícia? Muito, pois ela revela como na bacia do Xingu, nas áreas sob a influência de rodovias como a BR-163 e a PA-150 ainda há povos e florestas vulneráveis e intocados. Então que se proteste contra a paralisia do governo federal que permite que, um ano depois de lançado, o Plano BR-163 Sustentável continue no papel, conforme denunciou recentemente o site Amazônia (www.amazonia.org.br); e que se apóie e ajude os kayapó e outros povos indígenas (conforme conclamação divulgada abaixo) na organização do novo grande encontro na cidade de Altamira contra os projetos de hidrelétricas neste rio.

 

Em defesa da vida e do rio Xingu

Nós, Povos Indígenas: Xikrin, Pykajakà, Potikro, Bacajá, Mrotidjam; Kayapó: Kikretum, Kokraimoro, Pukararankre, Kendjam, Moikarakô, Aukre, Kôkôkuedajà, Kararaô; Araweté do Igarapé Ipixuna; Parakanã - Apyterewa; Assurini do Xingu; Juruna (Pakisamba e Km 17); Xipaya, Kuruaya; Arara do Pará (do Maia, Laranjal e Cachoeira Seca); índios da cidade de Altamira; Apinajé do Estado do Tocantins; Tembé; Gavião de Rondônia; e Karitiana; juntos com os movimentos sociais e Organizações Não Governamentais, institutos de pesquisas e Universidade Federal do Pará e a convite do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Prelazia do Xingu e MDTX (Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu) e IIEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, reunidos na Cidade de Altamira no Estado do Pará, no Centro de Formação Bethânia, entre os dias 1 a 3 de junho de 2007, queremos externar nossa preocupação quando a possível construção do Complexo Hidroelétrico do Xingu, que anuncia a construção de barragens na Volta Grande do Xingu que caso sejam construídas irão atingir os povos indígenas, as comunidades de agricultores, a floresta e afetar a biodiversidade prejudicando a VIDA na Bacia do Rio Xingu. Somos totalmente contra Belo Monte, pois o Rio Xingu representa nossa vida e sua morte ameaça nossas vidas, nosso futuro, nossos parentes: filhos e netos. Qualquer intervenção no Xingu provoca a extinção da caça, do peixe e afeta profundamente nossas terras e nossa saúde. Nós, povos indígenas, queremos viver e respirar no Xingu, suas águas são fonte de vida e nós não queremos morrer, não vamos desistir da vida, não abandonaremos a luta, nosso canto de guerra estão na garganta para nos contrapor ao inimigo. Queremos convocar os povos indígenas do Xingu, os Kayapó do Alto Xingu, os parentes do Parque Nacional do Xingu, da Amazônia e do Brasil e convidar nossos aliados para um grande Encontro na Cidade de Altamira, no qual mostraremos ao Governo Brasileiro nossa indignação e nossa posição contrária aos grandes projetos que estão implementados e que só destroem a Amazônia. Solicitamos apoio e ajuda das instituições nacionais e internacionais para garantir às comunidades ampla participação neste grande Encontro.

Altamira, 03 de junho de 2007

Assinam:

Povo Xikrin das Aldeias: Pykajakà, Potikro, Bacajá, Mrotidjam; Povo Kayapó das Aldeias: Kikretum, Kokraimoro, Pukararankre, Kendjam, Moikarakô, Kôkôkuedjà, Kararaô; Povo Araweté do Igarapé Ipixuna; Povo Parakanã - Apyterewa; Povo Asurini do Xingu; Povo Juruna das Aldeias Pakisamba e do Km 17, Povo Xipaya, Povo Kuruaya, Povo Arara do Pará das Aldeias Volta Grande, Laranjal e Cachoeira Seca; Povo Apinajé; Povo Tembé; Povo Gavião de Rondônia; e Povo Karitiana; junto com os movimentos sociais e Organizações Não Governamentais: Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), Fundo Dema, Internaciotional Rivers Network (IRN); Entidades Eclesiais: Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Prelazia do Xingu, Congregação do Verbo Divino, Preciosíssimos Sangue (CPPS) e Missionários Xaverianos; Movimento Pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), Movimento de Mulheres Campo e Cidade da Região da Transamazônica, Instituto Humanitas, Instituto Internacional de Educação do Brasil (IIEB), Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequeno Agricultores, Via Campesina e pesquisadores/as Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e Universidade Federal do Pará (UFPA).

 

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.
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