Correio da Cidadania

2020: o ano que passou a boiada

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O ano de 2019 já havia sido terrível para os que se preocupam com o meio ambiente. Com a posse de Jair Bolsonaro, concretizou-se nosso maior pesadelo. Subiu ao poder um bando de delinquentes, psicopatas, fundamentalistas religiosos, bandidos que buscam derrubar qualquer estrutura governamental voltada à preservação ambiental, mesmo que isso venha a inviabilizar o país, arruinando o clima e o regime de chuvas, acabando com o patrimônio da biodiversidade nacional, envenenando o ar, a água, nosso alimento, destruindo a imagem do Brasil no exterior e, às vezes, até nossa vontade de viver. A expectativa era a de que em 2020 testemunhássemos a continuação desse processo devastador, mas também que o novo ano marcasse o início de uma reação popular contra isso tudo, com grandes manifestações em defesa do país, pelo impeachment do psicopata que nos governa. Mas não. Desde os primeiros dias do ano surgiram notícias de uma pneumonia de origem desconhecida na cidade de Wuhan, na China, que viria a mudar tudo o que se esperava para este ano. Ou quase tudo.

Ao final de janeiro, já se sabia que a doença era provocada por um novo tipo de coronavírus, que de alguma forma conseguira “saltar” para a espécie humana, e já tinha se espalhado por 18 países em quase todos os continentes, com a exceção da África e América do Sul. Logo ficou claro que se tratava de uma doença altamente transmissível, pelo ar ou por superfícies, mortal para uma parcela significativa dos infectados (1% a 3%) e permanentemente debilitante para outros tantos, para qual não havia cura ou tratamento eficiente, restando-nos apenas o uso de máscaras e o isolamento social para sua contenção.

Semanas depois, a epidemia, ao finalmente se espalhar por todos os continentes, tornava-se pandemia, e o número de mortos, que atingiu a casa de centenas por dia em vários países da Europa, não parava de subir, forçando vários países a impor confinamentos a suas populações e limitações de toda ordem a deslocamentos, praticamente fechando suas economias. A recessão no período foi a maior em várias décadas e foi comparada a eventos extremos como a crise de 1929 ou, no caso da Inglaterra, a episódios de congelamento do rio Tâmisa, no século 17, que fecharam Londres ao comércio exterior.

As implicações ambientais da crise do novo coronavírus são inúmeras, tanto em suas causas quanto nas consequências. Está claro que este vírus passou de uma espécie silvestre, com a qual convivia em relativa harmonia, para os seres humanos porque o animal silvestre, seja ele um morcego, pangolim ou outro, foi capturado na natureza, maltratado, morto e consumido sob condições sanitárias precárias. Também sabemos que o contínuo avanço sobre as últimas florestas tropicais, com sua consequente degradação, junto com as mudanças climáticas e o comércio e trânsito global de pessoas, plantas e animais, tornam o aparecimento e alastramento de novas pandemias cada vez mais provável.

Por outro lado, a pandemia, com o confinamento de boa parte das pessoas e redução nos transportes e atividades industriais, trouxe mudanças ambientais perceptíveis em várias partes do globo. Por algum tempo, a imensa mancha vermelha no nordeste da China, que se observa nos mapas globais de emissões de carbono, perdeu intensidade. Cordilheiras, que há muito haviam desaparecido do horizonte de várias cidades, reapareceram, junto com animais de todo tipo que haviam gradativamente retraído suas áreas de uso, intimidados pela presença humana. Pesquisadores perceberam, inclusive, mudanças nos padrões de canto de pássaros que, de repente, não precisavam mais disputar decibéis tão intensamente com a parafernália de carros e outras máquinas que normalmente circundam os humanos.

A diminuição nas taxas de emissões de carbono globais foi perceptível, apesar de quase insignificante em seus efeitos de longo prazo. Para os ambientalistas, ficou a lição de que é possível mudar o ritmo da economia diante de uma ameaça global, mas que mudanças muito mais radicais e profundas serão necessárias se quisermos amenizar os efeitos da crise climática, muito mais mortal, permanente e devastadora que esta pandemia que vivemos em 2020, crise climática na qual nos aprofundamos mais e mais a cada ano.

Enquanto em todo o mundo houve uma leve diminuição nas emissões de carbono, no Brasil aconteceu justamente o contrário. Mesmo com a economia em recessão, com boa parte das pessoas presas em casa, sem viajar, consumindo menos, tivemos um aumento de cerca de 10% nas nossas taxas de emissão de carbono. Isso porque neste ano queimamos loucamente todos os nossos ecossistemas. Todo o sul da Floresta Amazônica queimou, não pelas bordas como acontece faz tempo, mas em seu interior, ao longo de estradas cortadas no coração de grandes áreas de floresta preservada. Para quem entende o significado desses padrões de queimadas, essa visão é extremamente preocupante, é o fim da floresta tal como a conhecemos.

Mesmo que impuséssemos imediatamente um regime rigoroso de controle, com essas entradas e destruição inicial será, para sempre, muito mais difícil manter a floresta. As imagens que recebemos diariamente do Pantanal, ao longo de quase todo o segundo semestre, foram desesperadoras. Famílias de macacos, onças, cobras, jacarés, todos mortos chamuscados. O fogo invadindo pequenas propriedades rurais e aldeias indígenas, destruindo fazendas e até plantações.

Não pretendemos fazer nesse texto uma recapitulação dos inúmeros absurdos ambientais cometidos por este governo em 2020, que incluíram desde a punição a servidores públicos que cumpriram competentemente suas funções de fiscalização (e foram repreendidos justamente por isso) até o desmonte legal e institucional de todos os órgãos fiscalizadores e da legislação ambiental. Já foram produzidos outros textos com essa finalidade, por gente que está diretamente envolvida no dia a dia dessa luta, como a “Retrospectiva Socioambiental 2020” da ASCEMA (Associação Nacional de Servidores da Carreira de Especialista de Meio Ambiente), ou a retrospectiva “Meio ambiente brasileiro: com um triste balanço em 2020, como resgatar 2021?”, da Coalizão Ciência e Sociedade, que reúne cientistas de instituições de ensino e pesquisa em todas as regiões do Brasil.

Mais sintético e ilustrativo é citar a fala do delinquente, condenado pela Justiça por adulteração de mapas ambientais para favorecer empreiteiras no estado de São Paulo, escolhido justamente por ser bandido, ministro do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na reunião ministerial de 22 de abril (tornada pública por decisão do ministro do STF, Celso de Mello). Ele disse: “Nós temos a possibilidade neste momento, que a atenção da imprensa está voltada quase que exclusivamente para a covid-19, de passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação,…, porque só se fala de covid-19, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.

É difícil de acreditar, mas o psicopata propôs que se aproveitasse da crise sanitária que matou quase duzentas mil pessoas este ano para facilitar o desmonte ambiental que vem causando e causará muito mais destruição e morte! Esse foi apenas um dos vários absurdos proferidos naquele encontro, de nível mais baixo que uma reunião da máfia, do PCC.

O mais revoltante é que mesmo sendo denunciado em rede nacional, o condenado seguiu adiante com seu plano, e de fato segue “passando a boiada”, diante de todos nós. E ele chegou até a receber o apoio público de ruralistas, por causa dessas manifestações! As consequências econômicas desse vandalismo ambiental já se fazem sentir. Inviabilizou, por exemplo, o acordo do Mercosul com a União Europeia, que não está disposta a enfrentar as críticas internas consequentes de uma associação com o Brasil, jogando fora mais de uma década de negociações.

O governo Bolsonaro, desta forma, prejudica os grandes capitalistas do agronegócio nacional para favorecer grileiros desmatadores, milicianos garimpeiros, alucinados. E fanatizados por agrotóxicos que de tanto envenenar suas terras (e consequentemente as terras adjacentes) contaminaram a produção vinícola gaúcha. A Anvisa liberou mais de 500 agrotóxicos novos para serem utilizados em território nacional nos dois anos de governo Bolsonaro, que podem causar câncer, paralisia, lesões comportamentais, aborto e más formações congênitas em bebês.

É bem verdade que a grande imprensa liberal vem criticando o ministro do Meio Ambiente. Não faltaram matérias no Jornal Nacional e editoriais na Folha e Estado de S. Paulo criticando os números do desmatamento. Mas criticar um louco criminoso como o Salles, que deveria estar preso, não é mérito nenhum, não é mais do que a obrigação de qualquer veículo de imprensa civilizado. E apesar dos desmatamentos, do agrotóxico, do trabalho análogo à escravidão, a Globo continua anunciando em seus intervalos que “Agro é Pop”, com propagandas enganosas que misturam atividades inofensivas ao meio ambiente, socialmente aceitáveis como aquelas típicas da agricultura familiar com o agronegócio predatório, para melhorar sua imagem.

Esse financiamento não acontece sem custo nenhum à qualidade dos noticiários. Enquanto ficou claro que os incêndios no Pantanal foram causados por um punhado de grandes proprietários rurais, não se viu a cara desses criminosos nem seus nomes foram expostos na grande mídia. Mesmo diante dos maiores descalabros, que inviabilizarão o país climaticamente para todo o sempre, os pedidos de impeachment foram tímidos ou inexistentes. É evidente que a expectativa desses órgãos de imprensa quanto às reformas liberais e privatizações (um capítulo à parte de nossa tragédia nacional que deixamos para os colunistas da área econômica, mas que não podemos ignorar por aqui) que esse governo genocida possa passar é maior que qualquer preocupação com as questões ambientais.

Essa acusação de genocídio foi um dos grandes temas de debate nesse ano que se encerra. E acreditamos que ela não é leviana nem injustificada. Quando o exército foi intimado pelo judiciário a remover os vários milhares de garimpeiros que estão invadindo as terras Yanomami de Roraima, o vice-presidente, Hamilton Mourão, limitou-se a dizer que seria uma operação “complexa” e não a levou a cabo. O Munduruku e os Kayapó do Pará também estão com suas terras invadidas por garimpeiros que, além de envenenar seus rios com mercúrio, ainda aumentam o risco de espalhamento do coronavírus nessas comunidades.

Em meio à pandemia, o governo favoreceu a entrada de pastores evangélicos em áreas de povos isolados, também pondo em risco sua sobrevivência. Bolsonaro é hoje oficialmente investigado no Tribunal de Haia por “incitação ao genocídio de povos indígenas”. O crime de genocídio aplica-se bem ao caso dos povos indígenas que sofrem o risco de extermínio físico absoluto pela invasão de suas terras e infecção pelo coronavírus. Mas pode-se dizer que o presidente é diretamente responsável por uma parcela substancial dos quase 200 mil mortos deste pandemia em 2020, por conta de suas diversas declarações com o objetivo de reduzir na população a ideia de gravidade da pandemia, chamada por ele de “gripezinha”, taxando aqueles preocupados com a doença de covardes, incitando seus seguidores a romper o isolamento social, fazendo aparições públicas sem usar máscara, beijando, apertando mãos e abraçando apoiadores, recomendando repetidamente a cloroquina como tratamento, enquanto se sabe que este remédio não tem qualquer efeito positivo para evitar ou tratar as infecções pelo novo coronavírus.

A Presidência da República poderia facilmente ter colaborado para a contenção da pandemia ao facilitar a distribuição do auxílio emergencial de forma desburocratizada, o que permitiria às pessoas permanecerem em casa, transformando rapidamente a estrutura das comunidades mais carentes instalando sistemas distribuição de água e pias para higiene pessoal, testando, testando e testando. Não fez nada disso. Preferiu tratar a doença como natural e inevitável. Hoje, quando a possibilidade de uma vacina que tenha passado por todas as fases de teste tem o potencial de nos tirar desta condição em algum ponto no ano que vem, o governo não está preparado sequer com um estoque suficiente de seringas e agulhas ou um plano de acesso às populações mais distantes.

Enquanto isso, uma multidão de negacionistas da pandemia se acumulou. Gente que questiona a importância das máscaras e do isolamento social. Há quem pense que toda a pandemia foi uma criação chinesa no contexto de um plano global de dominação comunista. São os mesmos que acreditam que as intenções dos europeus na preservação da Amazônia escondem interesses em seus recursos minerais. Creem também que a vacina produzida em cooperação com a China incluiria um chip para nos monitorar, alteraria o nosso DNA, tornando-nos gayzistas, comunistas, globalistas etc. O pior burro é aquele que se acha superinteligente.

É difícil precisar qual parcela da população acredita em qual versão deste delírio coletivo, mas uma questão é inevitável: se é difícil convencer a população sobre a gravidade de uma doença que está matando quase mil pessoas por dia diante dos nossos olhos, como tratar de processos ecológicos relevantes como o aquecimento global, a crise de perda de biodiversidade, a crise climática gerada pelos desmatamentos da Amazônia, cujos sintomas são muito menos óbvios, mais complexos e de longo prazo?

Não vamos cair na tentação de forçar a apresentação de pontos positivos, como entendemos que aconteceu em boa parte da live da ASCEMA que recomendamos mais acima, em que a mediadora “celebrou” que a questão ambiental esteve nas notícias mesmo que pelo aumento da devastação. O cenário geral é dramático e depressivo. Por outro lado, se não houver qualquer motivo para esperança, não temos nem porque redigir estas linhas. Na discussão sobre o clima, no primeiro debate pelas eleições norte-americanas o então candidato, o hoje presidente eleito, Joe Biden, explicitamente declarou sua intenção de encaminhar os Estados Unidos em transição para uma economia verde, e prometeu que, assumindo a presidência, logo no primeiro dia tomará as providências para trazer o país de volta para o Acordo do Clima de Paris.

Sobre a devastação da Amazônia brasileira ele disse: “As florestas tropicais do Brasil estão sendo demolidas, estão sendo devastadas… mais carbono está retido nessa floresta que todo carbono emitido pelos Estados Unidos, eu estarei reunindo os países do mundo para oferecer, aqui estão 20 bilhões de dólares, parem de destruir a floresta e se não fizerem terão sérias consequências econômicas”. Se podemos contar com a maior potência capitalista e um dos maiores poluidores do mundo para parar a devastação da Amazônia eu não sei. Mas os bolsonaristas entraram em pânico e dobraram a aposta em Donald Trump. E se eles (que estão fechados com grileiros, madeireiros, garimpeiros e desmatadores) estão nervosos, nós estamos felizes.

A apatia infinita do povo brasileiro que vê seu país sendo literalmente queimado, saqueado, destruído em todos os aspectos e não faz nada? Será resultado de uma popularidade do presidente mantida às custas de um auxílio emergencial que tem injetado dinheiro como nunca nas mãos das camadas desfavorecidas da população? Auxílio, cuja criação, nunca é demais lembrar, não teve nada a ver com o governo federal, e foi, ao invés disso, obra da oposição no Congresso (coisa que o povo não consegue entender).

Estaremos todos paralisados pelo medo do vírus e assim impossibilitados de sair de casa e nos manifestar fora do espaço limitado das redes sociais? Esperamos que uma vacina segura nos liberte dessa prisão para que, junto com parte da comunidade internacional preocupada com o futuro da maior floresta tropical do planeta, possamos canalizar nossa ira acumulada contra os fascistas antiecológicos que estão tacando fogo em nosso país.

Da­nilo Di Gi­orgi é jor­na­lista e tra­dutor.

Rodolfo Salm e Danilo Di Giorgi

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Rodolfo Salm
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