Correio da Cidadania

As terras indígenas e a ultradireita fascista no poder

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Depois de quatro anos distante da Terra Indígena Kayapó, Sul do Pará, onde estive pela primeira vez em 1997, tive neste final de ano a oportunidade de revisitar aquele “paraíso na terra”, defendido por bravos guerreiros e guerreiras, os verdadeiros brasileiros, como bem diz o povo por aí. Apesar de distante, nunca deixei de pensar naquela e em outras terras indígenas, tão ameaçadas na conjuntura política atual.

Quando me dei conta de que a tragédia da eleição de Jair Bolsonaro era uma realidade provável, foram nessas terras e nesse povo que pensei primeiro. O então candidato da extrema-direita sempre externou ódio contra os povos indígenas. Naquela mesma palestra em que se referiu aos afrodescendentes com termos usados para falar de gado (“o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”), na Hebraica do Rio, também disse: “pode ter certeza que se eu chegar lá... Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena...”. Ainda antes das eleições questionou: “por que manter índios em reservas como se fossem animais em zoológicos?”.

Recentemente, já eleito presidente, foi mais além, dizendo que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós", como se alguma vez não tivessem sido. Ou seja, o presidente não somente despreza o modo de vida indígena, como os desumaniza enquanto mantiverem seu modo de vida tradicional. Os apoiadores do governo protestam quando o acusamos de fascista, mas é inevitável a analogia das declarações do presidente sobre os índios e sua cultura com o que os alemães diziam quando comparavam os judeus e sua cultura a animais não-humanos em sua campanha difamatória que precedeu a sua tentativa de extermínio.

Apenas o discurso do candidato a presidente Jair Bolsonaro já serviu de combustível para incentivar o aumento no número de invasões a terras indígenas (111 em 2018, de acordo com o CIMI, 15% a mais que no ano anterior) e o número de assassinatos de lideranças (135 em 2018, 25% a mais que no ano anterior). Infelizmente, os índios estão sozinhos nessa luta.

Quando a mortandade de lideranças indígenas Guajajara chegou a um nível internacionalmente escandaloso ao longo de 2019, o ministro da justiça, Sérgio Moro, enviou a Força Nacional ao Maranhão, mas injustificavelmente deixou desprotegida a Terra Indígena Araribóia, com 413 mil hectares, aquela que sofria com o maior número de invasões.

Certamente, não queria desagradar os fazendeiros, posseiros e madeireiros invasores, que são a base de apoio do presidente. Presidente que, quando questionado sobre a recente subida do preço da carne, defendeu a criação de gado nas Terras Indígenas (ele não perde uma oportunidade de ameaçar a floresta e o modo de vida indígena tradicional). Devido a este sinal verde para os criminosos, o padrão histórico de maior desmatamento fora que dentro das Áreas Protegidas (Terras Indígenas e Unidades de Conservação) já se inverteu.

Segundo o SIRADX (Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento na Bacia do Xingu), entre julho e agosto de 2019, no corredor de áreas protegidas do Xingu, o desmatamento total foi de 43 mil hectares (crescimento de 37% comparado ao mesmo período do ano anterior), sendo que 27 mil foram dentro de áreas protegidas: 11 mil dentro das Terras Indígenas (crescimento de 158% em relação ao ano anterior) e 16 mil dentro das Unidades de Conservação (crescimento de 196% em relação ao ano anterior).

Alguém ainda poderia dizer que o presidente é “espontâneo”, popular ou pouco cuidadoso com as palavras, mas que as ações diretas dele não refletem este discurso. Nada mais falso. O pior ataque aos povos indígenas e às suas terras foi o projeto de lei assinado recentemente, nos primeiros dias de fevereiro, para legalizar uma série de atividades econômicas destrutivas dentro das terras indígenas: mineração, criação de gado, a monocultura agrícola em larga escala, a exploração de gás e petróleo e a construção de hidrelétricas e linhas de transmissão. Segundo o projeto, que depende ainda de aprovação do congresso, as comunidades indígenas teriam poder de veto para atividades de garimpo, mas seriam apenas consultadas no caso de construção de hidrelétricas.

Sobre essa “consulta”, sabe-se bem que se trata apenas de uma formalidade. Participei em Altamira das manifestações contra a hidrelétrica de Belo Monte que aconteceram em função da consulta pública para a construção da usina. Não apenas protestamos, mas mostramos com dados concretos e projeções que essa obra seria um desastre social, ambiental e também econômico, como se verifica atualmente na prática. Nada disso teve efeito algum. Tratando-se de uma consulta sem poder de veto, a obra acontece de uma forma ou de outra se for do interesse do poder público. E depois dos desastres em Mariana e Brumadinho, causados pela maior mineradora do país, quem poderia afirmar que a mineração é segura o suficiente para ser realizada em Terras Indígenas?

A visita


Não me canso de descrever a emoção que é adentrar a Terra indígena Kayapó. O contraste entre a zona rural do Sul do Pará, com suas imensas pastagens a perder de vista, e a mata preservada no interior do território indígena é uma experiência chocante, e suficiente por si só para convencer qualquer um sobre a importância das Terras Indígenas para a preservação da floresta Amazônica e o potencial destruidor desse projeto de lei nefasto apresentado pelo governo Bolsonaro.

Entretanto, mesmo dentro da Terra Indígena, a cena não é de preservação absoluta. Entramos na Terra Indígena de barco pelo rio Fresco, um importante afluente da margem direita do Xingu, que se encontra em avançado estado de degradação devido a atividades de garimpo aurífero realizadas inclusive dentro da Terra Indígena, com a concordância de aldeias situadas ao longo do rio. Mais adiante entramos e subimos pelo Riozinho. As aldeias ao longo desse rio têm resistido bravamente (com o apoio fundamental de ONGs) à tentação de permitir que ele seja explorado, e sua água é maravilhosamente pura.

Mas fiquemos no rio Fresco, que é ilustrativo da tragédia que preciso denunciar. Sua água está barrenta, mas, pior que isso, contaminada pelo mercúrio que envenena quem se banhar no rio, beber de sua água ou consumir seus peixes. Os índios têm uma boa noção das consequências da mineração e da contaminação por mercúrio, metal que se acumula nos organismos e causa, em humanos, perda de inteligência, desordens motoras, perda de visão e doenças cardíacas.

Ainda assim não conseguem impedir suas lideranças de firmarem acordos com os garimpeiros. Digo isso para mostrar que apesar de dar às comunidades indígenas o poder de veto sobre as atividades dos garimpeiros, na prática não funciona. Entre os índios, como acontece em qualquer lugar, as famílias mais poderosas politicamente são aquelas que mais se beneficiam das atividades de garimpo. E muitas vezes são as menos prejudicadas pelos seus efeitos negativos, uma vez que muitas vezes nem mesmo vivem nas aldeias a maior parte do tempo.

Estudos recentes realizados pela Fiocruz indicam que quase toda a população de certas comunidades Yanomami está contaminada pelo mercúrio dos garimpos. Atualmente já há dezenas de milhares de garimpeiros atuando ilegalmente em suas terras. Ao sul do Amazonas, na bacia do Tapajós, os índios Mundurukus sofrem do mesmo mal, assim como muitos outros povos indígenas por toda a Amazônia. Quanto às obras de infraestrutura dentro das terras indígenas, além de seu impacto direto, muito mais graves são os impactos indiretos. Para compreendê-los é fundamental que se entenda a importância da integridade e inviolabilidade do território indígena. Os Kayapó já aceitaram madeireiros e hoje, como já mencionado, algumas comunidades aceitam garimpeiros atuando dentro do seu território. Mas em hipótese alguma tolerariam assentamentos permanentes de kubens (homens brancos) em suas terras.

Isso porque sabem que, uma vez ocupadas de forma permanente, é praticamente impossível reavê-las. Vide o caso da Terra Indígena Cachoeira Seca, também no Rio Xingu, mais próxima à cidade de Altamira, há muito tempo invadida por posseiros. Sua desintrusão era uma das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte. Nunca aconteceu. Nenhum político se dispõe a remover famílias inteiras dos territórios indígenas. Assim, aberto o acesso para a construção de hidrelétricas, termelétricas, linhas de transmissão, gasodutos, oleodutos etc., abrem-se portas para ocupações que inevitavelmente levarão à fragmentação e aniquilamento dos territórios indígenas.

Lendo esse relato, o defensor de Bolsonaro poderia ainda lembrar que a invasão das terras indígenas não começou no atual governo e que o presidente poderia estar tentando pôr ordem no caos gerado pela ilegalidade. Realmente, as terras dos índios Kayapó, que sofreram com um surto inicial e devastador de atividades garimpeiras nos anos 1980 e haviam conseguido se livrar deste mal, começaram a ser invadidas novamente por garimpeiros ainda durante o governo de Dilma Rousseff. Mas o problema vem se acentuando desde então e não há qualquer movimentação do governo para encerrar as atividades ilegais.

Muito pelo contrário, suas atitudes e palavras estimulam essas atividades ilegais. Da mesma forma que eu passei pelo rio Fresco dentro da reserva indígena e pude testemunhar sem qualquer dificuldade as balsas dos garimpeiros em funcionamento, qualquer pessoa do IBAMA ou Polícia Federal poderia fazê-lo. O certo seria prender os invasores e destruir seus equipamentos. Mas até esse procedimento, o único que realmente inibiria a atividade, foi proibido pelo governo federal. Assim, não há qualquer intenção de se deter a degradação ambiental.

Neste governo, busca-se apenas acabar com a ilegalidade por meio da legalização do ilegal. Sobre aspectos do projeto de lei, como a regulamentação do turismo, incluindo o da pesca esportiva, não é que essas atividades estejam totalmente proibidas. Estão, é verdade, cercadas de uma série de precauções, regulamentadas desde 2015 através de Instrução Normativa da FUNAI. Há trabalhos promissores sendo desenvolvidos em toda parte, inclusive entre os Kayapó, de aproveitamento econômico racional e organizado das potencialidades naturais de seu território.

Toda esta ameaça de um aumento sem precedentes da devastação das Terras Indígenas é feita em nome de supostos benefícios econômicos para o país. O que não poderia ser mais falso, pois, ao contribuírem em muito para a preservação da floresta Amazônica, além de ajudarem a preservar a imensa riqueza da nossa biodiversidade, as Terras indígenas ajudam a proteger o clima global e o regime de chuvas de boa parte do país. Ironicamente, quem pagará caro por essa irresponsabilidade são justamente os ruralistas, já que boa parte da produção de monoculturas no Brasil não é irrigada, e isso exigiria pesados investimentos.

A devastação da floresta também arrasa com a imagem do país, desvaloriza nossos produtos de exportação e pode até colocar em risco o acordo comercial Mercosul-União Europeia. Há quem afirme que esse projeto não tem chance de ser aprovado no Congresso e que o governo sabe bem disso. Espero que sim, mas não tenho tanta certeza. Segundo essa linha de raciocínio, a ideia seria, a partir da grande repercussão desse tipo de debate, fazer chegar aos garimpeiros e invasores o recado de que podem agir à vontade porque o estado fará vista grossa a toda e qualquer ilegalidade.

Por outro lado, esse projeto de lei já vem sendo construído faz tempo, e de forma mais incisiva desde o governo Temer. De uma forma ou de outra, trata-se de um projeto de extermínio físico e cultural da imensa diversidade humana que ainda possuímos nesse país. As semelhanças com a Alemanha nazista não param de se acumular.

Rodolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Rodolfo Salm
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