Correio da Cidadania

Belo Monte: miséria e degradação na Volta Grande do rio Xingu

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Estive recentemente na Volta Grande do Xingu, onde pude testemunhar o estado abandono e desalento do povo que vivia das outrora ricas águas que passavam por este trecho maravilhoso do rio devastado por Belo Monte. Para quem não sabe, trata-se de uma porção de aproximadamente de 100 km do Xingu, em que o rio percorre um trajeto em forma de ferradura, ao longo do qual sofre um declive de 100 m, o que lhe confere um aspecto singular riquíssimo em corredeiras, cachoeiras e espécies endêmicas adaptadas a esta condição rara.

Para entender os impactos da hidrelétrica de Belo Monte sobre a Volta Grande do Xingu é importante compreender sua anatomia, que se difere um bocado das hidrelétricas tradicionais, compostas simplesmente por um barramento que cria uma diferença de potencial gravitacional entre os seus trechos a montante e jusante e turbinas por onde essa água passa, gerando eletricidade.

Por motivos que não são totalmente claros, mas certamente envolvem a necessidade de evitar duas Terras Indígenas (Paquiçamba e Arara da Volta Grande), optou-se por um esquema em que a maior parte da água do rio Xingu é desviada por canais para um lago artificial onde outrora havia terra firme. De lá, a água passa pela casa de força principal e então é devolvida novamente para o rio Xingu, abaixo da Volta Grande. Com isso, as Terras Indígenas não foram alagadas, o que facilitou em muito a expedição das licenças de construção, pois supostamente não seriam impactadas pela obra. Nada mais falso.

A água desviada da Volta Grande tem feito muita falta a esta porção do rio Xingu. Apenas metade dos 1550 m3/segundo de água que passam neste exato momento na frente da cidade de Altamira está passando pela Volta Grande, uns 40 km mais à frente. Esse imenso segmento do rio está privado da maior parte da água que receberia naturalmente e foi chamado de Trecho de Vazão Reduzida (VTR) no contexto do projeto Belo Monte.

Na Volta Grande, a água do Xingu corria, além de seu canal principal, por uma série de leitos paralelos cravados nas rochas, e entre ilhas, quando os braços do rio são chamados de “furos” e se assemelham a rios menores, mas que na verdade são todos parte do grandioso Xingu. Com o desvio de parte substancial de suas águas pelos canais para o reservatório intermediário, não há mais água para gerar correnteza nesses furos, e muitas das corredeiras e cachoeiras secaram.

Não há mais água para promover o alagamento das margens do rio, necessário para que os frutos das matas ciliares caiam sobre a água e possam engordar os peixes. A água parada nos furos apodrece e, além de não ter peixes, muitas vezes também não serve para o banho ou consumo humano. Tragicamente, esta mesma falta de água faz os poços, último recurso para os moradores da região, secarem.


Trecho da Volta Grande do rio Xingu com pouquíssima água devido ao seu desvio para geração de energia pela hidrelétrica de Belo Monte.
Foto: Cristiane Carneiro

Enquanto isso, a Norte Energia, a empresa que construiu e administra a hidrelétrica de Belo Monte, diz que a barragem não afetou a pesca ou a qualidade da água. Enfim, afirmam que está tudo bem. Claramente não é o caso. Por isso que me juntei ao grupo de pesquisadores, a convite da bióloga Cristiane Carneiro, que está fazendo um monitoramento independente das condições de vida dos moradores da Volta Grande. Daí a viagem que fizemos recentemente.

A região da Volta Grande tem o relevo extremamente acidentado. Viajamos por horas por um emaranhado de estradinhas estreitas num sobe e desce sem fim. Talvez o relevo extremamente irregular, que dificulta a implementação de técnicas agropecuárias modernas de grande escala, explique a sobrevivência de uma infinidade de pequenas propriedades na área, que fica no município de Anapú (PA), que ficou famoso com o assassinato, em 2005, da missionaria Dorothy Stang a mando de um consórcio financiado por grandes fazendeiros da região.

Ao longo das estradinhas, tão estreitas que o carro que nos levava muitas vezes ia praticamente abrindo caminho entre a vegetação, fragmentos de florestas se misturam com roças de cacau e principalmente pastos em formação ainda cheios de restos de imensas árvores mortas, frequentemente ainda esfumaçantes, denunciado a devastação recente.

Os desmatamentos alastraram-se tão rapidamente na região por dois motivos fundamentais ligados à construção de Belo Monte. Moradores, que vivem na região às vezes por mais de 40 anos e que se deslocavam de suas casas na beira do rio até as cidades mais próximas de barco pelo rio Xingu, não podem mais fazê-lo na maior parte do ano porque o rio, agora seco, não permite mais a navegação. Assim, tiveram de formar a rede de estradas, que também abriu caminho para mais desmatamentos.

Esses mesmos moradores que vivam em grande parte da comercialização do produto da pesca, não podem mais fazê-lo, pois os peixes que conseguem pegar agora praticamente não são suficientes nem mesmo para o seu consumo doméstico. Vivem quase que só de aposentadorias dos idosos. Daí a necessidade de buscar algum sustento a todo custo, avançando sobre a floresta para substituí-la por pastagens ou o cultivo de cacau ou mandioca para produção de farinha.

Perguntamos aos moradores quais foram os benefícios deixados por Belo Monte. “Nenhum”, foi a resposta geral. Nem sequer energia elétrica boa parte deles eles têm, a poucos quilômetros da maior hidrelétrica totalmente brasileira! Só tiveram seu rio, de onde tiravam quase todo o seu sustento, destruído. Impressionante como conseguiram convencer esse povo a aceitar a obra que devastou suas vidas.

Também perguntamos sobre isso aos moradores. Disseram que no período que antecedeu a construção, equipes da Norte Energia e empresas associadas vinham duas ou três vezes por dia conversar com eles sobre o que precisavam. Prometeram estradas pavimentadas, infraestrutura para criação de peixes, água, energia, tudo. Não cumpriram nada.

As soluções sugeridas pela Norte Energia para os problemas criados pelo desvio da água da Volta Grande do Xingu são absolutamente ridículas.
Os peixes estão magros porque, com o fim dos alagamentos sazonais, não têm mais acesso aos frutos das matas ciliares. Então eles sugerem a “realização de manejo de habitats com o plantio de vegetação nas margens do Trecho de Vazão Reduzida, em carácter experimental em um projeto piloto”.

Os pacus estão magros porque a água que passa para a Volta Grande não é suficiente para que certos trechos das matas ciliares onde crescem os frutos alague e os peixes possam ter acesso aos frutos. O plantio de espécies frutíferas para contornar nesse problema não é viável, pois para funcionar as novas árvores deveriam ser plantadas nas proximidades dos novos limites dos corpos d´água. Acontece que essas áreas são pedregosas e de solo arenoso inadequado para o crescimento da imensa maioria das arvores frutíferas.

As poucas espécies que poderiam crescer nessas áreas, como a saroba, são de crescimento extremamente lento. Assim, a única solução possível para este problema é permitir um fluxo de água pela Volta Grande compatível com os processos ecológicos necessários para a sobrevivência e bem-estar da fauna de peixes e das populações humanas que dela dependem.

Um outro exemplo grave: a Volta Grande do Xingu possui uma rica coleção de peixes ornamentais, muitos dos quais são encontrados apenas naquela região e que, devido a sua beleza singular, tem grande valor econômico e cuja exploração representava uma importante fonte de renda para as populações locais. Dentre eles se destaca o famoso acari-zebra, uma espécie de cascudo listado de preto e branco tal qual uma zebra, cujos exemplares são vendidos por várias centenas de dólares no mercado internacional.

Sobre o risco de extinção dessa espécie com a degradação ecológica causada pelo desvio das águas da Volta Grande, a Norte Energia respondeu que colaborou com a “conclusão da implantação e apoio à manutenção do Laboratório de Aquicultura de Peixes Ornamentais do Xingu (LAQUAX), sob gestão da UFPA, que já estabeleceu uma série de protocolos de reprodução em cativeiro de espécies relevantes, afastando a possibilidade de eliminação anteriormente prevista no Estudo de Impacto Ambiental”.

Por mais louvável que seja o esforço da equipe do laboratório de peixes, é absolutamente falso que este possa garantir a sobrevivência de longo prazo do acari-zebra se seu habitat natural for seriamente comprometido. O laboratório soma-se ao esforço de outros criadores de peixe amadores ou comerciais que já tiveram sucesso na reprodução dessa espécie em cativeiro.

Entretanto, isso não contribui para a sobrevivência da espécie na natureza nem garante a sobrevivência da espécie no longo prazo, pois as subpopulações isoladas em aquários tendem a perder variabilidade genética, acidentes operacionais como uma queda de energia podem sacrificar toda uma população e sua manutenção depende de esforços e financiamento contínuo. Assim sendo, a única alternativa viável para a preservação da espécie é a manutenção de seu ambiente natural, que exige a passagem de um fluxo de água pelo trecho de vazão reduzida na Volta Grande do Xingu compatível com suas necessidades ecológicas.

O abandono da Volta Grande do Xingu contrasta com os outdoors espalhados pela cidade de Altamira, que ligam Belo Monte à hashtag #EnergiaBoa, associando esse lixo da engenharia a imagens de pessoas pescando, coletando açaí, meditando etc. Essa é a imagem que se propaga por boa parte do Brasil e segue sendo defendida mesmo por importantes políticos de esquerda, como Ciro Gomes e Fernando Haddad. Até alguns ambientalistas, como Marina Silva, ainda não fizeram a devida crítica à construção desta hidrelétrica desastrosa.


Propaganda enganosa da barragem espalhada pelas ruas de Altamira
Foto: Angelino Pereira de Oliveira Junior

O novo drama para o povo e a ecologia da Volta Grande é que a administração da hidrelétrica de Belo Monte emitiu um alerta de que o nível do reservatório Xingu (que se situa sobre o leito natural do rio, logo acima do Trecho de Vazão Reduzida) não pode ficar abaixo de 95,2m ou a estrutura da barragem principal de Belo Monte no rio Xingu poderia ser comprometida.

Para tal, pediram permissão para eventualmente não deixar passar nem mesmo o mínimo de 700 m3/segundo que já sabemos estar causando a situação caótica que testemunhamos. Confirmando-se a inviabilidade dessa situação, é certo que os barrageiros irão propor a construção de novas usinas rio-acima no Xingu, conforme o projeto desenhado originalmente pelos governos militares, que armazenariam água na estação chuvosa e ajudariam a regular a vazão do rio na estação seca.

Isso não pode acontecer. Belo Monte já se revelou uma tragédia ecológica, econômica e social. Se ela não é viável técnica ou economicamente, isso não deveria ser novidade para ninguém. O alerta foi dado repetidas vezes por todos os críticos desse projeto irresponsável. Se o volume de água disponível não é suficiente para garantir a sobrevivência dos moradores, fauna e flora da Volta Grande, a preservação da estrutura dos barramentos e a geração de energia, a única solução sensata é desativá-la, esvaziando os lagos, recuperando a Volta Grande e reflorestando todas as áreas impactadas direta ou indiretamente por esse projeto alucinado.

Rodolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Rodolfo Salm
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