Correio da Cidadania

Amazônia cortada ao meio

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Dando continuidade à minha parceria com a APA, Associação para os Povos Ameaçados, que tem sedes na Suíça e na Alemanha, em complemento ao Relatório Vozes do Tapajós, fiz uma apresentação, em 5 de outubro de 2021, para a diretoria do Deutsche Bank, na Alemanha. Entre os presentes estava Stephan Wilken, o novo presidente do Deutsche Bank no Brasil e líder regional para a América Latina, que pretende ampliar e fortalecer ações focadas em ESG, sigla em inglês para compromissos sociais, ambientais e de governança. Ninguém melhor que o novo presidente do Deutsche Bank no Brasil para se inteirar do tema da minha apresentação: Ferrogrão EF-170 – Cortando a Amazônia ao Meio. A Ferrogrão, atualmente, está no radar de investidores, bancos e empresas internacionais.

O projeto da Ferrogrão atrai interesses internacionais de investidores, empresas e bancos que buscam agilizar o escoamento das commodities brasileiras. No entanto, eles ignoram a extensão dos impactos desse projeto que corta a Amazônia em duas, afeta povos indígenas e a biodiversidade. O objetivo da APA, ao convidar a diretoria da Deutsche Bank para a conferência, foi o de aprofundar o tema das questões ambientais, sociais e jurídicas que envolvem a ferrovia. Minha missão foi de mostrar os meandros de um projeto que caminha na contramão da preocupação mundial com a integridade da Amazônia e de seus povos originários.

Fiz uma apresentação ampla em que mostrei à diretoria do Banco, com tradução simultânea para o alemão (por Christian Russau), todos os fatores que definem que a Ferrogrão não poderá ser construída. Ela causará impactos inimagináveis sobre terras indígenas e unidades de conservação, federais e estaduais. Mostrei mapas que comprovam que o projeto da ferrovia de 1006 quilômetros, se sair do papel, produzirá impactos irreversíveis.

MPF e STF

O Congresso brasileiro aprovou, em 2017, a MP 758 que virou a Lei 13.452/17 para demarcar a faixa de domínio da Ferrogrão que atravessa o Parque Nacional do Jamanxim no sentido sul/norte. Essa desafetação de uma Unidade de Conservação (UC) federal é hoje objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) que concedeu uma liminar para suspender o processo da ferrovia.

Em março deste ano (março de 2021) o Ministério Público Federal (MPF) recebeu uma representação de organizações da sociedade civil que lista irregularidades, no processo da Ferrogrão, praticadas pela União, pelo Ministério da Infraestrutura e pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). A denúncia diz respeito, principalmente, às violações dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.

O projeto da Ferrogrão formatado em 2017, no governo de Michel Temer, e que está sendo priorizado agora no governo de Jair Bolsonaro, desconsidera impactos sobre povos indígenas. Embora reconhecidos em levantamentos iniciais do processo, esses impactos constam em convenções internacionais de direitos humanos das quais o Brasil é signatário. Os indígenas têm o direito à consulta, para consentimento ou não, na implantação da ferrovia ainda na fase de planejamento do projeto.

Todos esses aspectos e outros mais, abordei na minha exposição ao Deutsche Bank, mencionando, inclusive, que 48 territórios de povos indígenas estariam sob potencial impacto. Essa informação consta da manifestação que o MPF fez ao Ministério Público do TCU. Apesar de oito pedidos de associações indígenas, duas recomendações do MPF, e a obrigação de respeitar o direito de consulta prévia, livre e informada, conforme determinação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o governo brasileiro se recusou a cumprir sua obrigação.

Os potenciais impactos da Ferrogrão abrangem as terras do povo Munduruku que estão no médio e alto Tapajós, as terras do povo Panará, Kayapó e Mekragnotire no sudoeste do Pará, além de mais seis terras indígenas no Mato Grosso que incluem povos isolados e o Parque Indígena do Xingu. A ANTT havia assumido, em 2017, em documento por escrito, durante uma audiência pública, o compromisso de fazer a consulta pública antes que o processo da ferrovia fosse analisado pelo TCU para emissão de parecer. Até o momento os procedimentos para as consultas não aconteceram.

Greenwashing

O ministério da Infraestrutura assinou, em 2019, com a Climate Bonds Iniciative (CBI), um protocolo de intenções que visa à certificação da Ferrogrão como um projeto com características financeiras “verdes”. O ministro da Infraestrutura defende a certificação do projeto que diz ser importante para a segurança dos investidores, para não haver riscos de imagem. Menciona temas em que o projeto da Ferrogrão é, justamente, carente como: estruturação verde, governança ambiental, monitoramento e recuperação de áreas degradadas e travessia de fauna.

Com todas as lacunas no processo e incertezas quanto ao seu futuro, o ministro Tarcísio Gomes de Freitas ainda fala em acesso de finanças sustentáveis. Até o momento a CBI sequer avaliou o pedido. Para complementar seu discurso, Tarcísio promete que a ferrovia tiraria 1 milhão de toneladas de carbono da atmosfera, ao reduzir em 90% o fluxo de caminhões na rodovia BR-163, paralela ao traçado do projeto da Ferrogrão. Só não explicou como chegou a esses números.

Todos esses entraves se juntam às questões de divisão de trecho, uma briga interna, entre grupos brasileiros do Centro-Oeste que disputam a ferrovia. Tanto a Vale como a Rumo, do grupo Cosan, têm interesses em consolidar sua supremacia logística. Para completar o panorama, tramita no Congresso Nacional um PL que simplifica o processo de permissão para construir e operar ferrovias. Na verdade, o governo Bolsonaro pretende criar um novo marco legal do transporte ferroviário, sem necessidade de licitação, à semelhança do que já acontece nos setores de telecomunicações, portuário e aeroportuário.

Os riscos

O que mais chamou atenção dos integrantes na conferência do Deutsche Bank foi quando entrei num campo que investidores, grandes empresas e bancos não gostam: a análise dos riscos inerentes ao caso da Ferrogrão. Riscos financeiros, de reputação e legais não podem passar pelo radar desse conjunto de interessados em investir em grandes obras. A Ferrogrão, antes de representar risco para investidores, representa um perigo para a Amazônia, como é fácil prever, mesmo sendo o escoamento das commodities prioritárias num país a beira do abismo, como o Brasil. Porém, o futuro não perdoaria a destruição da Amazônia e dos povos que a preservam.

Mudanças climáticas decorrentes de projetos como a Ferrogrão também penalizariam grandes áreas de plantações de grãos do agronegócio, inviabilizando negócios. Os países europeus estão de olho nas consequências climáticas de práticas pouco ortodoxas que buscam enriquecimento em prejuízo do clima, da manutenção da floresta e de povos originários.

Na minha apresentação mencionei todos os riscos, como por exemplo, a possibilidade de prejuízos severos decorrentes da desertificação causada pelo desmatamento para dar lugar à expansão do agronegócio, ou do esgotamento de sub-bacias hidrográficas pelo uso abusivo da irrigação, e secas extremas causadas pelas alterações climáticas. Ou, ainda, o quanto isso poderia arrastar investidores, empresas e bancos nacionais e internacionais para um verdadeiro furacão de prejuízos financeiros.

Não poupei nenhum argumento, como falhas no dimensionamento dos riscos; ou fatores não considerados no planejamento; ou superestimar demandas e benefícios; ou incertezas nos custos de mitigação e compensação; aumentos imprevistos nos custos de implantação; riscos de mercado não avaliados ou de commodities superestimadas; custos sociais e ambientais, de consultas públicas.

Somam-se a isso tudo os riscos de imagem das empresas, investidores e bancos associados a projetos que induzam às queimadas na Amazônia, ao desmatamento acelerado, alterações do clima, aumento das emissões de Gases de Efeito Estufa, contaminação de rios, extinção de espécies, violação dos direitos humanos, ao genocídio, extração ilegal de madeira, mineração ilegal, deslocamento compulsório, migração descontrolada, ocupação desordenada, miséria.

Os riscos legais e de judicialização tampouco ficaram de fora, como ações de indenização e reparação, multas por degradação ambiental, responsabilização por e os bancos, além da violação dos direitos da Natureza.

Após a apresentação, fui perguntada pela diretora de sustentabilidade do Deutsche Bank, se a nossa recomendação seria a de mitigar os danos ambientais e sociais ou desistir definitivamente do projeto da Ferrogrão. Eu, prontamente, respondi que o projeto jamais deveria sair do papel, pois seria um desastre que colocaria em risco a maior floresta tropical do planeta, os povos indígenas e o clima. Não é exatamente a preservação da Amazônia que os governos europeus estão reivindicando, diante das mudanças climáticas, às vésperas da COP 26?

Links da Apresentação completa:

Ferrogrão EF-170 – Cortando a Amazônia ao Meio Parte 1
Ferrogrão EF-170 – Cortando a Amazônia ao Meio Parte 2

Telma Monteiro

Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora

Telma Monteiro
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