Correio da Cidadania

O America First de Joe Biden

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Democracy Now! on Twitter: "Joe Biden for President? Media Ignores How Veep  Worsened Student Debt on Big Banks' Behalf https://t.co/SPFQevLcZr  https://t.co/UhrVsnIpl6"
Foto: Divulgação

Em 2016, a França firmou um contrato com a Austrália para lhe vender 12 submarinos pelo preço de 60 bilhões de libras.

Nos anos seguintes, o projeto foi minuciosamente detalhado, tendo sido completadas várias etapas preparatórias da sua execução.

Em 2021, cinco anos depois de o contrato ser aprovado pelas duas partes, o governo de Canberra o cancelou.

E, surpreendentemente, anunciou um novo contrato. Iria comprar submarinos, sim, mas seriam dos EUA: 6 submarinos de propulsão nuclear, dentro de um acordo de defesa e transferência de tecnologia entre esse país, o Reino Unido e a Austrália.

As negociações correram em segredo. Mesmo durante diversos contatos entre os chefes de Estado e os ministros do Exterior das nações envolvidas na compra original, a França ficou por fora, seguiu trabalhando num projeto que lhe renderia muito bem-vindas 60 bilhões de libras, nunca imaginando que estavam prestes a voarem para o outro lado do Atlântico.

Tudo foi cuidadosamente mantido em sigilo absoluto, o próprio presidente Biden participou da conspiração, sem revelar ao primeiro-ministro Macron o que estava sendo tramado contra a terra de Joana d’Arc e Zinedine Zidane, num encontro diante do cenário poético das selvagens ondas da belíssima costa da Cornualha, um dos hits do turismo inglês.

A reação dos franceses a esse autêntico passa-moleque, aplicado por seus bons aliados, EUA e Austrália, só podia ser furiosa. Houve uma indignação generalizada, mesclada com profunda decepção, gerando protestos por todo o país.

O ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian declarou que se tratava de uma “facada nas costas”, recheada de “duplicidades, menosprezo e mentiras”, praticada por países aliados de longa data, que traíram friamente a França.

Le Drian completou: “Foi um desrespeito e as coisas não vão bem entre nós (EUA-Austrália e França), de modo algum”.

E apressou-se em chamar de volta para consultas os embaixadores em Washington e Camberra. Em termos de diplomacia, essa medida é da maior gravidade, o que demonstra a seriedade da crise, exacerbada por ser a primeira vez que é aplicada entre a França e os EUA.

Em outro momento, Le Drian e a ministra das Forças Armadas, Florence Parly, voltaram suas baterias contra a Austrália, coapresentando uma manifestação, na qual afirmaram ser “a decisão (dos australianos) contrária à carta e ao espírito de cooperação que prevalecia entre a França e a Austrália”.

Dois fatos causaram o alto nível da indignação dos franceses:

1) Os EUA e a Austrália os enganaram, negociando nas sombras, parecendo conscientes de estarem fazendo algo sujo, talvez com receio de os franceses sacarem a traição antes de consumada, podendo, assim, agir de modo a atrapalhar e até melar a nova transação;

2) a França era considerada o aliado número 2 dos EUA na Europa.

“Não dá para aceitar, mas a triste realidade é que os governos dos EUA e da Austrália montaram uma verdadeira operação secreta para manter Paris no escuro e lhe tomar o seu maior contrato de Defesa (New York Times, 17/09/2021)”.

Isso não se faz com amigos íntimos.

Foi inevitável que os franceses fizessem comparações altamente indesejadas pelo, até mais recentemente, 100% correto Joe Biden.

“Esta decisão brutal, unilateral e imprevisível lembra-me muito o que Mr. Trump costumava fazer”, afirmou em entrevista à rádio francesa o ministro do Exterior francês.

Seria isso o “A América voltou”, que Biden anunciou como uma mudança radical na política externa de Washington em relação à do seu antecessor?

Os fatos têm demonstrado que, por enquanto, a política externa continua praticamente imutável. Biden tem se mostrado um fiel seguidor do America, first, de Donald Trump.

Pode não ser tão grosseiro e autoritário quanto The Donald, que tratava outros países como vassalos, ameaçando, mandando assassinar inimigos e até ofendendo chefes de Estado aliados, mas, assim como o ex-presidente republicano, Biden busca impor os interesses estadunidenses aos países amigos, ainda que sejam prejudiciais a essas nações.

O affair dos submarinos australianos é um bom exemplo.

Como disse à BBC, Carl Bildt, ex-primeiro ministro da Suécia: “As esperanças eram muito grandes quando Joe Biden chegou - provavelmente grandes demais, elas não foram realistas. O seu ‘A América voltou’ seria uma era dourada em nossas relações. Mas isso não aconteceu e houve uma alteração na promessa de Biden em um espaço de tempo muito curto. A completa falta de consultas sobre o cancelamento (do negócio dos submarinos) deixou uma cicatriz”.

Não foi a primeira vez que o atual presidente imitou o morador anterior da Casa Branca.

Biden manteve as sanções de Trump contra as empresas europeias que participavam da construção do gasoduto Nord Stream 2. Este gigantesco empreendimento russo era vital para os países europeus, pois visava lhes garantir o gás de que necessitam, especialmente no inverno.

De olho na conquista deste substancioso mercado para as empresas norte-americanas de gás liquefeito - por sinal, mais caro que o gás natural russo - o marido da maravilhosa Melania apelou para o jogo bruto: paralisar as obras do Nord Stream2, forçando as empresas europeias a abandonar a obra, que estava sendo tocada por elas, através da aplicação de pesadas sanções contra as que não obedecessem a seu ukase.

Não deu certo. Os líderes europeus, liderados pelos alemães, protestaram contra a interferência na sua soberania.

O gasoduto continuou sendo construído. Biden acabou retirando as sanções. E o Nord Stream2 foi concluído, recentemente. As nações do Velho Mundo esperam que sua operação comece logo, o inverno está chegando.

Na sua guerra fria contra a China, Biden, dando continuidade às ações de Trump, está empenhado em brecar a expansão da tecnologia 5G, da chinesa Huawei, mais barata e eficiente do que o 5G das empresas ocidentais.

Sob pressão do governo de Washington, quase todas as nações europeias cederam e estão proibindo o uso da 5G da Huawei. O que é antieconômico.

Como a maioria delas já tem instalada a 4G da Huawei, seria fácil, rápido e sem custo passar para a 5G da empresa chinesa. Mudar para uma 5G da Erikson, da Nokia ou talvez dos EUA (que ainda não detém a tecnologia 5G) custará muito mais caro e consumirá vários anos na instalação das infraestruturas necessárias.

Quando a Turquia, desdenhando o sistema antimíssil norte-americano Patriot, preferiu adquirir o antimísseis russo S-400, o mais avançado que existe, Trump desrespeitou a soberania do país aliado, lançando sanções contra Ankara.

Biden acompanhou seu adversário eleitoral. E foi além: quando os turcos disseram que comprariam mais unidades do S-400, ameaçou novas e demolidoras sanções (Middle East Eye, 27/09/2021).

Voltando ao negócio dos submarinos australianos, os franceses, humilhados pelo tapa na cara, se sentiram estimulados a uma retaliação à altura.

Sugeriu-se que a França, em protesto, deveria se recusar a integrar a estrutura do comando da OTAN, como De Gaulle fez, quando chefe do governo, em 1966, abstenção que durou 43 anos. Para ele, a OTAN seria controlada pelos EUA e o general queria uma França independente. O que considerava inaceitável.

Essa ideia foi abandonada pelo governo atual por ser considerada excessivamente radical, Macron não tem um milionésimo da coragem do general De Gaulle (21/09/2021).

Exigir que a União Europeia se dissociasse das políticas norte-americanas não seria factível pois essa decisão teria de ser aprovada por todos os países-membros e jamais contaria com o apoio das nações bálticas, que vem nas forças armadas dos EUA um escudo contra possíveis intervenções militares do sempre perigoso Vladmir Putin.

Haveria mais chances de conseguir o apoio da União Europeia para adiar o planejado acordo comercial União Europeia-Austrália. Seria uma punição que os australianos mereciam por sua cumplicidade na armação subterrânea americana (The Guardian, 20/09/2021).

Esta ideia ainda não foi descartada.

Evidentemente o Naval Group, a empresa francesa designada para fabricar os 12 submarinos, vai exigir o pagamento de suas despesas no trabalho já desenvolvido (estimadas em 10 bilhões de euros). Fala-se também em indenização por danos morais.

Sessenta e dois por cento da participação acionária do Naval Group pertencem ao Estado francês. O que agrava o ressentimento, enganar o governo parece mais duro de engolir do que fazerem o mesmo com uma empresa privada. Afinal, seria como se todo o povo francês se visse afrontado.

O maior dano que o governo Biden, e por extensão os EUA, sofrerão neste lamentável episódio é sem dúvida a perda da confiança do seu aliado número 2 na Europa, além de ver sua liderança olhada com suspeitas pelos demais países que tendem a aceitá-la, especialmente os europeus.

De fato, o que se espera de um líder democrático é que organize e comande a ação internacional dos países sob sua influência, respeitando os justos interesses de cada um. Jamais que os obrigue a alavancar o interesse do país hegemônico, ainda que seja adverso ao dos liderados, como postulava imperialmente o America, first de Trump.

E até agora também de Biden.

O atual presidente dos EUA deve estar preocupado com as repercussões dessa sua virtual adesão à política externa trumpiana, que certamente enfraquece a sua política externa.

A estas alturas, o Champs Elysées está avaliando se vale mesmo a pena continuar sancionando a Rússia e limitar as relações com a China, como o presidente norte-americano não se cansa de pregar.

Sentindo que fez besteira, Biden apressou-se a telefonar para Macron, a fim de tentar se justificar.

Macron concordou em tentar silenciar os clamores contra os EUA, cuja ação secreta estava tirando os franceses do sério. Por agora, a ordem será esquecer. Vão deixar para analisar a questão mais tarde.

Biden espera que “mais tarde” signifique nunca.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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