Correio da Cidadania

Os pashtuns sobreviveram a todos os impérios, mas conseguirão manter coeso o âmago do Afeganistão?

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Estava prestes a acontecer: o momento Saigon remix no aeroporto de Cabul e a impressionante volta do Emirado Islâmico do Afeganistão, liderado por pashtuns, desencadeou no Ocidente uma avalanche de orientalismo barato.

Todo o Afeganistão está agora ‘ameaçado’ pelo regresso dos ‘bárbaros’.

Mais uma vez, as mulheres afegãs ‘precisam ser protegidas’, todos os afegãos ‘precisam ser resgatados’, ‘os terroristas vão se reconstruir’, e o Afeganistão pode até precisar ser reinventado, em prol da ‘civilização’. Tudo por causa daqueles bárbaros tribais pashtuns selvagens.

As patologias imperialistas nunca morrem. “Bárbaros” vem do original grego barbaros – onomatopeia do ba-ba-ba-ba que ‘falariam’ os que não falavam grego, ou falavam errado.

Confrontado aos sofisticados persas, o conceito de “bárbaro” evoluiu. E então os romanos deram-lhe contornos finais, para abranger todos que não falassem grego ou latim, que mostrassem capacidades militares, que fossem cruéis ou ferozes contra os inimigos, ou que viessem de cultura não greco-romana.

Tudo isso eventualmente se fundiu num tóxico constructo cultural ocidental usado ao longo de séculos, a denominação definitiva e pejorativa de um Outro guerreiro: rude, incivilizado, rural, não urbano, predisposto à violência e à crueldade, talvez não total selvagem, mas próximo disso.

Em contraste, a China Imperial sempre se referiu a várias tribos e povos da Eurásia Central como guerreiros, civilizados, urbanos, nômades, agrários – nunca como bárbaros.

O Afeganistão pashtun é universo muito mais sofisticado do que o pinta o reducionismo predominante, que evoca a economia de subsistência rural, a arquitetura de tijolos de barro, caravanas de nômades, burcas e homens barbudos em sandálias, brandindo Kalashnikovs.

Assim sendo, como tributo ao falecido grande antropólogo social norueguês Fredrik Barth, subvertamos o Orientalismo, partindo num tapete mágico – Orientalista! – pelas voltas e reviravoltas do mundo pashtun.

Tudo tem a ver com a Turco-Pérsia

O Afeganistão pode ser considerado como sul da Ásia Central, oeste do Sul da Ásia ou leste da Ásia Ocidental.

Fato é que o Afeganistão, historicamente, é nodo crucial da Turco-Pérsia – tanto em cultura e idioma quanto em geografia. A Turco-Pérsia estende-se a leste da Anatólia e das montanhas Zagros, ao longo do planalto iraniano, até as planícies indianas. Esse tem sido nada menos que o coração dos impérios persas.

Os pashtuns têm etnogênese imensamente complexa. Há historiadores que identificam tribos pashtuns no Afeganistão desde o império Aquemênida no ano 500 a.C.

Os pashtuns podem ser descendentes dos Heftalitas, os quais, a propósito, não são os Hunos Brancos da Ásia Central, como demonstrou Etienne de la Vaissiere. Os Heftalitas derrotaram o império Sassânida no século 5º e ocuparam vastas extensões da Báctria e da Transoxiana.

Mas os pashtuns também podem ser descendentes dos Sakas – povos nômades iranianos da estepe da Eurásia. E isso, notoriamente, os colocaria como descendentes dos sogdianos e citas.

Heródoto escreveu que os persas chamavam os citas de Saka, e mais tarde Oswald Szemerenyi em seu clássico de 1980, Four Old Iranian Ethnic Names: Scythian-Skudra-Sogdian-Saka (Quatro antigos nomes étnicos iranianos: citas-skudra-sogdianos-saka) mostrou que saka era o nome persa de todos os citas. Uma forma anterior, Sakla, sugere historicamente que os iranianos do norte – literalmente citas –tenham conquistado toda a estepe.

O que é certo é que os pashtuns têm origens múltiplas; afinal, são uma confederação tribal.

Os pashtuns têm o dom de ligar várias linhagens (zai, em idioma pashto, traduz-se como ‘filho de’) de dezenas de milhões de pessoas, numa única genealogia, diretamente ao – indiscutivelmente mítico – ancestral comum: Qais, contemporâneo do profeta Maomé.

Essas linhagens fundem-se em clãs maiores (khel , em pashto) e levam a confederações tribais, as mais importantes das quais são os Durranis, os Ghilzais e os Karlanri, que os britânicos chamavam de Pathans. Pathans são os habitantes indígenas das montanhas que se estendem pelo que agora é uma fronteira artificial Afeganistão-Paquistão; eles só se tornaram pashtuns muito mais tarde, adotando sua língua e cultura.

A capital do século 11 dos Gasnávidas turcos ficava no que mais tarde se tornaria território controlado pelas tribos Ghilzai. Essa mistura é explicável, porque o Afeganistão sempre foi a fronteira oriental dos impérios persa e turco-mongol.

As grandes confederações tribais nômades só surgiram no início do século 13, em oásis no deserto do sudoeste do Afeganistão, ou congregando camponeses nas montanhas do leste. É um conjunto de grupos heterogêneos interligados pelo Pashtunwali, código e sistema de valores que estabelecem as relações sociais entre diferentes grupos.

Regras do Pashtunwali

O Pashtunwali integrou alguns elementos da moral muçulmana, mas está em contradição com a lei da Xaria em muitos aspectos. O erudito francês Xavier de Planhol descreveu-o sucintamente como “um conjunto de regras que modelam os costumes (adat), o caráter (khoui) em relação à exigência social (raouadj) e, assim, definem a identidade étnica (khouyouna)”. Pashtunwali regula a honra individual e também regula um conjunto de sanções, com a morte posta em destaque.

No mundo pashtun, tudo deve ser decidido por uma assembleia (jirga). Essas assembleias acontecem em todos os níveis – casa, aldeia, clã, tribo, sempre que necessário. O número de participantes varia de uma dúzia a milhares. Presenciei algumas jirga. É exercício fascinante de democracia direta.

Não há ‘condutor’. Os resultados não são obtidos por votação, mas por um consenso que deve evoluir naturalmente, uma vez que não há oposição a decisão tomada por aquele consenso. Os idosos são muito mais influentes do que os jovens. Foi assim que os Talibã decidiram seu novo governo provisório.

Por mais que o código pashtun seja um dos mais meticulosos do planeta, o Islã trouxe à tona algumas questões morais, às vezes em contradição com o pashtunwali. Para aumentar a complexidade, há normas jurídicas impostas por uma nobreza hereditária, vinda dos turco-mongóis.

A partir do século 11, o Afeganistão recebeu um influxo de nômades turcos, antes das conquistas mongóis do século 13. Na época, praticamente toda a Báctria era turquicizada – exceto quanto aos pashtuns.

Balkh, a lendária capital da Báctria, que surpreendeu os invasores árabes descrita como a Mãe das Cidades, a satrápia mais rica do império persa, foi a cidade dominante nas planícies do norte do Afeganistão por milênios, localizada ao norte do Hindu Kush. Essas ondas de nômades de língua turca transbordavam do Turquestão, que incluía os canatos de Bukhara e Samarcanda: eles se fundiram com a população persa local, e o dari – que é a língua farsi (persa) com um sotaque diferente – permaneceu como a língua predominante.

Peshawar é história completamente diferente. Historicamente, Peshawar estava intimamente ligada a Cabul, porque foi sua capital de inverno durante séculos (Cabul ainda era reino hindu, em tempos bem avançados do século 11). Os afegãos perderam Peshawar quando foi tomada pelos sikhs em 1834; mais tarde, tornou-se parte do Raj (Índia britânica) quando os sikhs foram derrotados.

Peshawar é a Meca pashtun. As tribos pashtun que vivem nos vales das montanhas acima de Peshawar nunca responderam a nenhum governo, em toda a história. Para eles, não há fronteira ou documentos de identidade: só seus rifles.

Característica chave dos pashtuns é que sempre viveram essencialmente à margem de grandes impérios. Os pashtuns evoluíram com base em suas próprias normas e tiveram a liberdade de construir o próprio sistema de referência. E isso explica por que são tão independentes.

Os pashtuns identificam dois tipos de terra: Yaghestan (a terra dos rebeldes) e Hokumat (a terra do governo). Pode haver sérias diferenciações sociais internas, mas todo o corpo social pashtun reúne-se, quando se trata de enfrentar as condições externas. É o que explica o espírito de luta feroz contra qualquer invasor estrangeiro, seja ele britânico, soviético ou norte-americano.

Portanto, estamos falando de uma coesão social extraordinária – com reação coordenada a eventos externos. Não é de admirar que os pashtuns acreditem que as estruturas políticas que desenvolvem sejam superiores. A história mostra que, uma vez que as estruturas imperiais vizinhas começaram a enfraquecer, os pashtuns acabaram forjando o “seu” Estado.

E não se esqueçam dos turco-mongóis

Entre os séculos 16 e 17, o Afeganistão viveu apertado entre três impérios: os uzbeques da baixa Ásia Central, os mongóis na Índia e os safávidas iranianos. Os mongóis e os safávidas lutavam por Herat e Kandahar. Os pashtuns privilegiavam os safávidas xiitas, apesar de xiitas. O território afegão, extensão natural das montanhas e planaltos iranianos, facilitou a influência dos safávidas.

Isso continuou até o início do século 18, quando as tribos afegãs rebelaram-se contra o declínio do poder dos safávidas. Uma entidade política independente surgiu em torno da tribo Durrani em 1747, e Ahmad Shah foi coroado rei dos afegãos em Kandahar, mediante uma loya jirga (grande assembleia).

Esse primeiro Estado afegão ao sul do Hindu Kush era bastante homogêneo. A estrutura era basicamente turco-persa, na verdade turco-mongol, muito mais do que baseada na tradição tribal pashtun.

Desde o final do século 10, todos os grandes impérios, desde as fronteiras do norte da Índia até a região trans-Oxiana, Irã e Anatólia, foram fundados por turcos ou mongóis. Alguns durariam séculos – como os turcos otomanos. O Afeganistão foi de fato governado por turco-mongóis por nada menos que 750 anos, até que os pashtuns formaram um Estado, em meados do século 18.

No entanto, um Estado afegão só foi definitivamente estabelecido após o Grande Jogo entre os impérios russo e britânico. Era o Afeganistão no final do século 19, configurado como Estado-tampão entre a Ásia Central russa e o Raj. Os britânicos precisavam disso para bloquear o acesso dos russos para a Índia e o mar de Omã; isso quando os russos estavam cada vez mais próximos, depois que estabeleceram um protetorado em Bukhara em 1873.

Traçar as fronteiras russo-afegãs e sino-afegãs não era problema. O verdadeiro problema era a fronteira com o Raj ao longo da linha Durand de 1893, dividindo o território de numerosas tribos pashtun, apenas para que a Grã-Bretanha imperial pudesse controlar os principais pontos de acesso ao subcontinente indiano: a passagem de Khyber e o corredor de Quetta. A linha Durand só foi definitivamente traçada em 1921. Ela divide as terras pashtuns em duas – e nunca foi e nunca será reconhecida no Afeganistão como fronteira real.

Portanto, se tivéssemos o primeiro Estado afegão com forte maioria pashtun, o segundo seria invenção colonial com complexo mosaico étnico. Antes da incursão soviética de 1979 e da jihad dos anos 1980, eram 40 a 55% dos pashtuns, 35 a 45% dos grupos étnicos de língua persa e 10 a 15%dos grupos étnicos de língua turca. Desde então, pouco mudou.

O criador do Afeganistão moderno, o ‘Emir de Ferro’ Abd-ur-Rahman, na verdade ‘pashtunizou’ o norte do Turquestão, transplantando populações sedentárias de pashtuns do sul das confederações tribais Durrani e Ghilzai, e então encorajando nômades a migrar.

E essa é uma das razões pelas quais a composição étnica do Afeganistão é extremamente complicada, especialmente no oeste e no norte. Todos estão em perpétuo movimento– alianças incluídas (os Talibã lucraram com isso, para seu rápido levante relâmpago, antes de chegarem a Cabul em 15 de agosto).

Imutável, só, é que, em nação estruturalmente instável, os pashtuns consideram-se o ponto mais alto da colina – e ‘donos’ do Estado afegão. E, no entanto, sua luta intraétnica perpétua sempre se impõe acima da solidariedade comunitária. Sempre há um grande confronto entre os Durrani – que de fato assumiram o controle do Estado desde meados do século 18 – e outros grupos pashtuns, especialmente os Ghilzai. Os Ghilzais são mais igualitários em espírito e não aceitam a hegemonia de Durrani: eles apenas os consideram mais manipuladores.

O mulá Omar, por exemplo, é Ghilzai. Mas o ex-presidente afegão Hamid Karzai é descendente de Sadozai Durrani, linhagem impecável, e mais tarde herdou a liderança do subclã Popalzai.

A elite de Durrani apoiou Karzai no final de 2001, porque o identificou como retorno da própria elite ao poder, após o Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA), a guerra civil e o interregno dos Talibã. Outras tribos eram profundamente desorganizadas e não conseguiam chegar a acordo algum. A única alternativa teria sido Massoud, o tadjique, verdadeiro nacionalista e respeitado até pelos pashtuns. Mas Massoud foi assassinado em 9 de setembro de 2001.

Abaixo o Estado-nação

Os pashtuns têm aversão natural à noção vestfaliana de Estado-nação. Afinal, eles se veem como um império dentro do império. O poder centralizado geralmente tenta neutralizá-los pelo suborno construído como sistema de governo (esse foi o modus operandi durante os anos Karzai).

A vida política afegã, na prática, é movida por facções: subtribos, coalizões islâmicas (o que os Talibã de fato forjaram para voltar ao poder) e grupos regionais, geralmente liderados por senhores da guerra desde a jihad dos anos 1980. Some-se a isso o conflito religioso, com o sunismo hegemônico, o xiismo dos hazaras e o ismaelismo dos tadjiques Pamiri sempre em confronto.

No Afeganistão, o Islã é tanto ideologia (a constituição de 2004 reconhece uma República Islâmica do Afeganistão) quanto religião. É o trampolim da identidade afegã, pashtun ou não. Cada membro da tribo adere de todo o coração ao Islã, mesmo quando há diferenças gritantes entre a Xaria e o Pashtunwali. Os afegãos como um todo podem ser definidos como os muçulmanos natos por excelência.

O ‘histórico’ Talibã da década de 1990 – que agora compõe a maioria do governo interino – são pashtuns tribais que falam pashto e, portanto, afirmam a própria identidade, muito mais do que enfatizar o aspecto de ser membro de uma tribo específica. Inabalável, para esses homens oriundos do conservadorismo rural, é sua desconfiança em relação à cidade – especialmente Cabul e seus modernistas – e o complexo de superioridade pashtun em relação a outros grupos étnicos.

Por mais que os anos de ocupação da OTAN no governo de Karzai tenham sido um desastre, os Talibã também estavam em crise e em desordem interna, na maior parte do tempo. A ideologia deles poderia ser acusada de ser mais paquistanesa do que afegã: afinal, o Talibã como movimento nasceu nas madrassas do Paquistão, e a liderança durante todos aqueles anos foi baseada no Baloquistão.

O Talibã 2.0 pode sugerir que eles estejam aventurando-se para além da identidade tribal, e o confronto perene entre Durrani e Ghilzai está sendo deixado de lado. Mas as amargas negociações para o governo interino parecem significar o contrário, opondo-se aos ‘moderados’ de Doha, alguns deles Durrani, outros Ghilzai, aos ‘guerreiros’ Haqqanis, que são Karlanri.

No Afeganistão, antes das últimas quatro terríveis décadas de guerra, o centro da ordem política rural girava em torno dos clãs proprietários de terras. Via de regra, eram aliados do Estado. Mas, então, começando com a jihad da década de 1980, essa velha elite foi esmagada por jovens comandantes militares que se fizeram sozinhos, que rapidamente construíram suas próprias bases políticas. A nova geração, que combateu a OTAN em campo, agora também espera ter um futuro no novo acordo de Cabul. No que diz respeito à construção do Estado, será assunto extremamente difícil de negociar.

Portanto, a grande questão agora é como a velha raça pashtun, tendo aprendido as lições de sua sombria experiência de governo em 1996-2001, conseguirá contornar a fraqueza inerente de todo governo central afegão. O sistema tribal da periferia está fadado a permanecer muito forte, com territórios quase autônomos controlados por senhores da guerra que não são chefes tribais, mas na verdade competidores pelo poder regional e pelas fontes de renda que deveriam estar alimentando os cofres do Estado.

E aqui está o desafio final para esses guerreiros pashtuns: forjar um sistema islâmico cujo âmago consiga manter-se. Será isso, ou, parafraseando Yeats, será só a anarquia espalhada sobre o mundo afegão.

Pepe Escobar é jornalista; vive, trabalha e cobre a Ásia há mais de 20 anos.
Este trabalho foi publicado originalmente em 30 de setembro de 2021, em inglês, no The Cradle: https://thecradle.co/Article/columns/2260 
Traduzido pelo coletivo de tradutores Vila Mandinga e autorizado por autor e tradutores para publicação no Correio da Cidadania.

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