Correio da Cidadania

Militares no Brasil: o golpe permanente

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“Bolsonaro quer fazer uso político das forças armadas”, “as Forças Armadas são uma instituição de Estado”, “militares defendem a Constituição” etc. Uma lista infindável de frases de autoengano como estas poderia ser colocada acima, mas vamos aos fatos e à história.

No início deste mês testemunhamos uma convulsão de notícias em torno da dança das cadeiras ministeriais em Brasília, às vésperas da intolerável comemoração, feita por militares e “cidadãos de bem”, do golpe de 1964. Urge que nós, pessoas comuns e vistas como cidadãs de segunda categoria, firmemos uma compreensão: as Forças Armadas brasileiras sempre estiveram envolvidas na política nacional e quase sempre no comando. Fundaram a República e, a partir de 1930, tocaram um projeto de Segurança Nacional que lhes atribuía uma “missão civilizatória” e o dever de intervir em todos os aspectos da vida pública brasileira, da segurança à educação. Os militares formam uma organização com interesses políticos, é preciso repetir esse truísmo.

É constitutivo do ethos profissional militar identificar-se como a instituição mais capaz de construir e comandar a nação brasileira, pois todas as outras instituições civis, segundo eles, seriam moralmente fracas, segregadas e não interessadas no bem comum do país. Trata-se de um Partido Militar, não no sentido de um partido político que disputa eleições, mas de um partido político programático que busca impor seus interesses na arena pública e, no caso das Forças Armadas, impor os interesses fisiológicos da corporação e disputar orçamento para suas pautas e objetivos.

Afinal, quem acredita, no Brasil de hoje, que os militares não estão envolvidos na política quando há mais de 6 mil de seus integrantes em cargos da burocracia pública civil? Além disso, chefiam cada vez mais Ministérios, desde 2016, quando o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) foi restituído – por pressão militar após sua extinção no governo Dilma – e chefiado pelo General Etchegoyen. O atual vice-presidente, General Mourão, quando era da ativa e comandava tropas no sul defendia uma “luta patriótica” pela mudança do governo em 2015, em meio ao crescente movimento pró-impeachment.

Em 2018, por meio do então Comandante do Exército, General Villas-Boas, militares pressionaram o Supremo Tribunal Federal a manter o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva condenado e inelegível. Em 2019, mantiveram-se fora da Reforma da Previdência e adquiriram vantagens de carreira. Se isso não é se envolver na política em nome de interesses corporativos, não sabemos mais o que seria.

Na retórica militar, sempre grassa a “defesa da democracia”, mas eles se recusam a admitir as violações de direitos humanos e torturas cometidas em suas instalações durante a ditadura civil-militar (1964-1985), e sempre condenaram a Comissão Nacional da Verdade (CNV), trabalhando contra a sua realização e a divulgação de seus relatórios. Em 2009, houve, inclusive, ameaça dos comandantes das três armas de deixarem seus cargos caso a Comissão Nacional da Verdade desse a entender que poderia haver responsabilização de militares pelo comando do regime ditatorial. Entre 2011 e 2014, Dilma Rousseff – e outras mulheres do governo, como Maria do Rosário e Eleonora Menicucci, que também foi militante e torturada na ditadura – foram abertamente atacadas por militares devido à CNV.

Os militares dizem defender o povo brasileiro. Enquanto isso, veem a demarcação de terras indígenas como ameaça à soberania, sendo a pacificação – fundamento da colonização que oscila entre o genocídio e o etnocídio – dessas populações e integração à “civilização” uma de suas principais preocupações. Nas intervenções, chamam as periferias e favelas das cidades de um “terreno humano” cujos moradores são propícios a serem violentos e menos colaboradores com o Estado, ao mesmo tempo em que concentram vantagens de carreira e repasses orçamentários.

Desde 1996, não houve um ano sem que uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) não fosse decretada – ação militar cujos alvos são os próprios cidadãos brasileiros*. Realizam ações cívico-sociais para socializar a população segundo seus moldes, sempre seguindo sua vocação pacificadora e mantenedora da ordem social.

As forças armadas dizem muita coisa, sempre em benefício próprio. Assim, é preciso distinguir o que dizem do que fazem, e não reproduzir o press release que vem sendo feito na imprensa atualmente como objetivo de “limpar” a imagem dos militares envolvidos com o governo de morte de Bolsonaro. Apesar das possíveis diferenças entre si, o alto oficialato tem um interesse em comum: garantir a sobrevivência da corporação e se autopreservar. Os militares brasileiros se pretendem os titulares da Razão de Estado. É sob essa lógica que devemos enxergar as mudanças ministeriais e dos comandos das três forças. Mais interessante do que observar uma maior proximidade do General Braga Netto com o presidente Jair Bolsonaro, ou os pontos de desgaste com outros oficiais, é refletir sobre como ele beneficia, no macro, a estabilidade da organização militar, preservando seu papel imaculado de guia e norte da nação.

Braga Netto, com um perfil mais discreto, não prejudica as relações públicas com declarações ou rompantes na mídia, mas garante a continuidade militar do governo e, ainda, possui experiência no gerenciamento das forças policiais. Um dos pontos centrais da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, em 2018, comandada por ele, era o controle militar sobre as forças policiais do estado para compreender, reestruturar e coordenar suas funções e, em tese, melhorar a segurança pública.

Nenhuma operação de Garantia da Lei e da Ordem, de Pacificação e tampouco a Intervenção Federal, melhoraram consideravelmente os índices de violência. Isso para nos atermos aos fatos e nos guiarmos pelos números oficiais, sem entrarmos nos efeitos dessas intervenções no longo prazo e na formatação da vida pública em terreno militarizado, ocupado como zona de guerra. Assim, mesmo só a partir disso, constata-se que aumentaram os números de mortes por agentes do Estado, e, diante disso, as reduções pontuais nos roubos de cargas não podem ser vistas como um ganho sob nenhuma hipótese – a vida deveria vir sempre antes da propriedade, mas não é assim para o direito moderno, tampouco para as políticas de segurança pública. Nesse sentido, cabe apontar que a justificativa do emprego militar sob o signo da logística e eficácia é outra falácia propagada por fardados e especialistas como uma espécie de fetiche por fardas, coturnos e pistolas.

No Haiti, por exemplo, onde as Forças Armadas brasileiras atuaram na operação de paz da ONU (MINUSTAH),o chamado case de sucesso revelou-se anos depois como um case de violações aos direitos humanos, estupros e denúncias de interferência no processo eleitoral do país por parte das forças brasileiras. Na atuação na pandemia de COVID-19, marcada pela presença desastrosa de um general da ativa como ministro da Saúde, o General Pazuello, as forças armadas demonstraram apoio a um presidente que nega a ciência e as respostas comprovadamente eficientes para a contenção do vírus, como a vacinação em massa, em prol de seu projeto de poder que vê os cidadãos como inimigos da sua ordem e de seus interesses orçamentários.

Portanto, não há dúvidas de que as Forças Armadas atuam politicamente e tem cometido uma série de ataques contra a população a qual afirmam defender. Comportando-se como uma corporação, militares defendem somente a si mesmos, suas versões dos fatos, suas agendas e buscam impô-las sobre todas as pessoas que habitam o território comandado por eles. É o caso do 31 de março, o qual insistem em qualificar como uma data celebratória de um “movimento”(sic) necessário para a segurança do país contra o inimigo comunista, subservientes à estratégia militar de defesa do governo dos EUA durante a chamada Guerra Fria, que em suas intervenções e atos de guerras das duas potências em competição foi bem quente para os povos do chamado Sul Global.

Na sua construção da narrativa, os militares e os “cidadãos de bem” comemoram nesta data, e não no 1º de abril, quando de fato o golpe aconteceu, para não serem associados ao Dia da Mentira. Não há nada mais apropriado do que essa proximidade, pois as Forças Armadas brasileiras mentem, e muito. Por isso, é preciso a coragem da verdade diante da soberania dos militares e afirmar a memória das lutas, a coragem daquelas e daqueles que entraram em choque com os poderes mesmo sob uma violenta e sanguinária ditadura capitaneada pelos militares e financiada por empresários, banqueiros e grande mídia. Não saudar essa coragem é perpetuar a conivência dos que colaboraram também por omissão com as prisões, torturas e mortes que seguiram sendo praticadas mesmo após o reestabelecimento da democracia em delegacias, quartéis, prisões, quebradas, guetos e vielas por militares, policiais e policiais militares.

Querendo manter-se vitoriosos na história, os militares, em sua narrativa, atacam novamente a memória daquelas e daqueles que foram alvo do terror de Estado, físico e psicológicos. A violência estatal que segue empilhando corpos em todo território nacional não cessará sem que se afirme essa coragem de verdade. Do contrário, como triunfo da narrativa dos fardados e dos “cidadãos de bem” e seu fetiche por fardas, coturnos e pistolas, realmente nem os mortos estão livres.

*Nota: As GLOs são realizadas exclusivamente por ordem expressa da Presidência da República para convocar a intervenção das Forças Armadas em situações nas quais se avalia que houve esgotamento da capacidade das forças de segurança pública em garantir a ordem política e social. Juridicamente, a GLO é disciplinada pelo artigo 142 da Constituição Federal de 1988 e regulada pela Lei Complementar nº97/1999 e pelo Decreto nº3.897/2001, que “fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, e dá outras providências”. No início de 2014, assessores civis e militares, atendendo a uma solicitação do Ministério da Defesa, produziram um “Manual de GLO” que padroniza a rotina e serve de orientação doutrinária para as forças destacadas para este tipo de atividade exclusiva das Forças Armadas.

Lasintec é o Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (EPPEN/UNIFESP), e este texto foi publicado no seu boletim em primeiro de abril de 2021.

Conheça o site do laboratório: https://lasintec.milharal.org/

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