Correio da Cidadania

Guantánamo: 20 anos manchando a bandeira dos EUA

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Foto: Manifestantes vestidos como presos da base estadunidense protestam pelo fechamento de Guantánamo em 2009. Créditos: Manuel/MC from Nantes, França. Link para a licença creative commons

Em janeiro de 2002, os EUA inauguraram a prisão de Guantánamo, em Cuba, com o objetivo de interrogar suspeitos de terrorismo, sem as restrições impostas pelas leis americanas.

Para Dick Cheney, então vice-presidente dos EUA (gestão de George W. Bush) os presos seriam “os piores entre os piores”.

Entre os primeiros a serem levados para Guantánamo, Jumah Al-Dossari, considerado membro ativo da al Jazeera, passou 3 anos e meio em cela solitária, impedido de dormir por fortes luzes sempre acesas.

Cinco anos depois e uma tentativa de suicídio (22 outros detentos o imitaram um total de 39 vezes), sem provas contra ele, Dossari acabou libertado.

A maioria dos “piores entre os piores” revelou-se inocente no que viria a ser uma das maiores vergonhas na história dos EUA.

O furor e o medo despertados no povo americano pelo atentado da Torres Gêmeas, em 2001, estimularam o presidente George W. Bush a decretar a guerra ao terror, que ignorou os princípios básicos da sociedade americana em nome da eficácia do contraterrorismo.

Foi nesse clima angustiante que o governo criou a prisão de Guantánamo, operada por militares, onde os suspeitos de terrorismo eram interrogados e processados, arbitrariamente, sem a proteção das leis e da Justiça americana.

Posteriormente, a Suprema Corte se colocou contra o “modo de agir” dos militares em Guantánamo, dizendo que os presos estrangeiros tinham direito de pedir à justiça a revisão de suas sentenças, como qualquer cidadão americano.

Poucos pediram.

Em desrespeito as leis internacionais e às dos EUA, os presos permaneciam encarcerados por tempo indeterminado, nas mãos dos interrogadores, que tinham carta branca para agir como quisessem, não raro usando e abusando de variadas técnicas de violência.

Segundo Baher Azmy, diretor do Center for Constitutional Rights), os oficiais de Guantánamo foram submetidos ao SERE. Um rigoroso programa de treinamento, criado durante a Guerra da Coreia, com o objetivo de preparar os soldados americanos para, no caso de serem aprisionados, resistirem à tortura, que poderia vir a ser praticada pelos norte-coreanos.

O SERE foi usado em Guantánamo, não para treinar a resistência dos investigadores, mas sim para torturar os detentos.

No programa, aprendia-se práticas para provocar sensações de debilidade, desespero e medo, levando os prisioneiros a se sentirem impotentes diante dos interrogadores; induzindo-os, assim, a confissões, muitas vezes falsas (Democracy Now, 22-01-2020).

Dezenas de prisioneiros- os chamados prisioneiros perpétuos- foram condenados a permanecer na prisão para sempre, por serem considerados de alta periculosidade.

Posteriormente, em um julgamento nos Estados Unidos , a corte não aceitou as provas e muito menos a forma como elas foram coletadas. Em geral, através de violência.

Trata-se de um bizarro procedimento, não acolhido por qualquer código, pois viola um princípio da Magna Carta imposta pelo rei inglês João Sem Terra, na Idade Média, que preceitua: “todo homem tem direito a um julgamento formal.”

Detido em 2002, como sendo líder da al Qaeda, o palestino Abu Zubaydah foi entregue à CIA, em 2006, que o submeteu a interrogatórios, com direito a tortura (inclusive o waterboarding, 83 vezes) em “casas secretas” na Tailândia, Polônia, Marrocos, Lituânia, Afeganistão e, finalmente em Guantánamo.

Abu passou 19 anos sofrendo os dissabores dessa fantasmagórica estada, até que os militares que administravam a prisão descobriram que ele não era sequer um simples membro da al Qaeda.

Como ele, muitos confinados tiveram de esperar anos e anos para provar que sua prisão arbitrária tinha sido inútil e injusta.

Em 24 de abril de 2011, a WikiLeaks publicou documentos dos arquivos militares americanos, revelando que a prisão de Guantánamo manteve presos, durante anos, mais de 150 inocentes.

Enquanto não se decidia sobre suas culpas, os prisioneiros ficavam sujeitos a duras condições.

Relatórios de Instituições como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a World Medical Association, a Cruz Vermelha, o FBI (em 2017) e o comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas – cuja alta comissária, Navi Pillay pediu o fechamento imediato de Guantánamo – revelam denúncias de torturas, maus-tratos, violências sexuais e religiosas.

Bem que o presidente Barack Obama tentou acabar com Guantánamo.

Dois dias após tomar posse, em 2008, emitiu uma ordem executiva para fechar a prisão em um ano. Mas, em 2011, ela foi revogada pela Câmara dos Representantes, por 212 a 206 votos, numa vitória do Partido Republicano, com apoio de parte dos democratas de direita.

Obama foi obrigado a limitar sua ação à transferência para o exterior de presos contra os quais nada de grave havia sido apresentado. Vários deles, aliás, já estavam liberados pelas comissões militares, mas permaneciam presos devido a pressões dos membros do war party no Congresso, especialmente republicanos, e do Pentágono. Argumentavam que, uma vez livres, os ex-pensionistas de Guantánamo aderiam em massa ao terror, matando americanos. Porém, pesquisas mostraram que apenas uma parcela mínima destes indivíduos assumia essa condenável opção, quando se viam livres. A maioria absoluta procurava reconstruir suas vidas, seriamente abalada pelos anos perdidos em Guantánamo.

No entanto, o pessoal do war party não se comoveu com esse fato. Para eles, os muitos inocentes deviam pagar pelos poucos pecadores; quando vidas americanas, ainda que raras, estavam em jogo.

No seu primeiro mandato, Obama alimentava o sonho impossível de governar com todos os americanos. Não quis brigar com os republicanos, usando seu poder de veto às iniciativas dos oposicionistas contra as transferências de detentos para o exterior.

Nos últimos meses no poder, Obama caiu na real, ao perceber que do lado republicano só vinham antagonismo feroz e ideias retrógradas.

O presidente democrata acusou parlamentares que se opunham ao fechamento da prisão de colocar “a política acima dos custos para os contribuintes, do nosso relacionamento com aliados; e da ameaça que representa deixar aberta uma prisão condenada por governos ao redor do mundo; que prejudica mais do que ajuda nossa luta contra o terrorismo”.

Seu sucessor, Donald Trump, tinha outras ideias, sintetizadas numa das suas pitorescas tiradas: “Vou encher Guantánamo de gente ruim.”

No início de 2018, Trump assinou uma ordem executiva estabelecendo que viver alguns anos em Guantánamo não seria mais privilégio de estrangeiros suspeitos de terrorismo. Também cidadãos americanos teriam direito à vergonhosa prisão e ao tratamento especial ali prodigalizado aos confinados.

Joe Biden, o atual inquilino da Casa Branca, prometeu fechar Guantánamo na sua campanha eleitoral, imitando a promessa não cumprida de Barack Obama.

Espera-se que dessa vez seja para valer, embora haja dúvidas, dada sua dificuldade em enfrentar pressões dos republicanos e do Pentágono, como está acontecendo agora, durante a discussão do Acordo Nuclear com o Irã.

Nos 20 anos da prisão de Guantánamo, 780 presos já passaram lá boa parte das suas vidas. Atualmente, são 39 — apenas dois condenados formalmente.

Entre os outros 37, alguns dependem de julgamento, outros são presos perpétuos, pessoas que não podem ser julgadas por tribunais civis pois as provas foram obtidas através de tortura.

Talvez mais grave seja um presidente que prometeu defender os direitos humanos no mundo ter Guantánamo no seu quintal.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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