Correio da Cidadania

O potencial dos trabalhadores da saúde para propor transformações

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Foto: Ministério da Saúde.

Constantemente eu tenho escrito e denunciado sobre o esgotamento no qual os trabalhadores da saúde estão sendo submetidos a cada ano, com pouco reconhecimento efetivo. E não me refiro somente aos salários congelados e em defasagem, mas ao contexto no qual, independente do modelo de gestão, o trabalhador sofre enormes pressões e não recebe valorização da carreira e estímulos para inovações ou qualificações.

Com a pandemia a missão ética do cuidado em saúde se sobrepôs ao cotidiano de medo e os trabalhadores continuaram a realizar com excelência os mais diversos e indispensáveis cuidados com a população. As ações no começo da pandemia de aplausos aos trabalhadores da saúde por parte da população foram interpretadas como incentivo a necessária coragem no enfrentamento da pandemia, entretanto, atualmente, a sensação coletiva entre os trabalhadores da saúde que é a de que não estão sendo valorizados.

Quando escrevo “trabalhadores da saúde” não estou fazendo referência apenas aos médicos. Estou falando de milhares de pessoas que mantém hospitais e serviços de saúde andando, principalmente, mulheres da categoria da enfermagem que são a maioria, mas também profissionais de dezenas de outras categorias técnicas, administrativas e operacionais. Sim, deveria ser óbvio, mas infelizmente não é: pessoas que trabalham na limpeza, na cozinha, na manutenção de um equipamento de saúde são também trabalhadoras da saúde. E muitos destes trabalhadores estão sofrendo as consequências físicas e mentais do trabalho na pandemia, com pouco reconhecimento efetivo. A realidade é de que os governos praticam uma relação abusiva com os trabalhadores da saúde.

Mas este espaço pretende ir além da denúncia do nosso esgotamento, ou sobre a nossa não valorização. Este texto é uma proposição de uma nova convergência em 2022. É sobre o potencial dos trabalhadores da saúde, e do SUS, para formular partes de um programa de mudança. Formular compromissos que exigem o entendimento dos trabalhadores da saúde como classe agente de uma solidariedade transformadora e que podem ser assumidos por setores e atores disponíveis ao diálogo. Porque a despeito de uma estrutura política e governamental responsável por milhares de mortes de brasileiros temos um sistema de saúde que efetivamente salvou pessoas e demonstrou a força de uma política pública de estado, que já atravessou governos, crises e polarizações, sendo a maior expressão política de “Solidariedade Transversal” brasileira. Tenho convicção de que os valores e princípios do SUS vivenciado cotidianamente pelos trabalhadores da saúde apontam caminhos concretos para uma efetiva mudança – não apenas nas políticas setoriais da saúde – mas, também, no desenvolvimento social e econômico brasileiro.

Importante ressaltar que a “Solidariedade Transversal” (*1) nomeia um conjunto de ações que vão muito além de ajudas pontuais, mas significam forças de cooperação, desenvolvimento, reciprocidade e democratização que atravessam diferentes realidades sem nenhuma pré-condição para sua realização. Como trabalhador do SUS, tenho consciência de que faço parte de uma longa caminhada em conjunto com muitos trabalhadores e usuários que vivenciaram e praticaram um projeto no qual o cuidado e a assistência são viabilizados como direitos sociais, sem desprezar ninguém. A formação teórica e, principalmente, prática do trabalho em saúde rompe e atravessa polarizações. As diferenças só são importantes para atender com equidade o mais necessitado. Aqueles que sonham e lutam por mudanças estruturais precisam reconhecer no SUS um exemplo de política fundamental, no qual as diferenças deixam de ser importantes, porque ninguém fica para trás. Mas o que o ato cotidiano de solidariedade transversal dos trabalhadores da saúde pode significar para outro projeto de Brasil?

Há o argumento de que não foi por falta de frentes amplas que chegamos nesta situação (*2). Argumento também que não foi por falta de polarizações que o caos político, econômico, sanitário e social instalou-se por aqui. A divisão política entre posições supostamente conservadoras e progressistas existe desde ao menos o confronto político abolicionista no século XIX. Proclamar supostas rupturas, mantendo polarizações, é manter viva uma continuidade de segregações e um poder social que influi no meio institucional e não institucional. Romper é, justamente, interromper uma continuidade. É – como disse Plínio de Arruda Sampaio (*3) – uma batalha para derrubar o muro que separa você das suas aspirações, você dos seus direitos.

Defendo que – através dos princípios do SUS e com compromissos concretos ligados a saúde e a solidariedade transversal – é possível atravessar a polarização política brasileira. O significado de atravessar traz dois conteúdos mobilizados aqui: criar uma abertura e passar para o interior de algo. O verdadeiro rompimento das continuidades é abrir uma passagem pelo interior das polarizações, não como mediação entre elas, mas como um reordenamento das coordenadas que colocam outras formulações e valores em circulação. O reconhecimento do SUS como força política transformadora, neste contexto de pandemia, pode, realmente, contribuir para interrompermos a manutenção das opressões e desigualdades. Um deslocamento das forças em jogo para além do pensamento político em linha reta, colocando divergências e confrontos políticos numa encruzilhada com outras possibilidades geométricas para outro projeto de Brasil.

Primeiro Compromisso – UNIVERSALIDADE e INTEGRALIDADE

Fortalecimento do SUS como política de bem viver para todos.

O princípio de universalidade do SUS – que significa atender todos àqueles que procuram cuidados independentemente de qualquer pré condição – promove a dimensão e o sentido de solidariedade transversal no sistema e pode ser potencializado e ampliado para outras áreas. Aqui a proposição é o compromisso de investir recursos no SUS e nos trabalhadores do sistema, potencializando a universalização da saúde de qualidade, convertendo o que hoje é ainda mercadoria em um efetivo direito social. É colocar em prática na política a consciência de que as vidas das pessoas são valiosas igualmente. Já defendeu Drauzio Varella (*4) que o SUS, com apenas 33 anos de vida, é o maior programa brasileiro de distribuição de renda. Esse compromisso vai também em direção a dois dos três pactos propostos por Juarez Guimarães (*5):

- pacto com todos os brasileiros que irão receber serviços de saúde melhor qualidade;
- pacto com trabalhadores da saúde que serão efetivamente valorizados.

A crise brasileira não é só política, sanitária e econômica. Vivemos também uma crise de saúde mental derivada de uma combinação de opressões. E é no princípio de integralidade do SUS que podemos mudar a lógica competitiva na qual estamos imersos. A integralidade busca garantir uma assistência que vai além da prática curativa de doenças, contemplando a pessoa em todos os níveis de atenção, considerando o sujeito inserido em um contexto mais amplo e modificando determinantes sociais que levam ao adoecimento. Atuar através de um amplo programa de fortalecimento do SUS significa necessariamente, por exemplo, expandir o saneamento básico da população brasileira.  

Melhores condições de saúde são melhores condições para as pessoas buscarem seus desejos seja estudando, trabalhando ou nos momentos de lazer. Pensar a integralidade é cuidar da saúde mental das pessoas de forma ampla, como a possibilidade de colocar desejos em movimento. Se os resultados no bem viver da população podem ser mais facilmente visualizados o impacto econômico precisa ser evidenciado.
 
Carlos Gadelha (*6) chama atenção para o considerável impacto social, econômico, produtivo, tecnológico e científico da área da saúde representando 9% do PIB, 9% dos empregos formais, um terço das pesquisas do país e com potencial para superar a desconexão do padrão de desenvolvimento das demandas das áreas sociais e ambientais e ser efetivamente uma economia a serviço de direitos sociais. Desta forma, a saúde através do SUS, pode ser um poderoso polo de modernização tecnológica com impacto significativo no bem estar, nas pesquisas e nas mudanças estruturais.

As propostas em torno desse compromisso envolvem necessariamente mobilizar diversos poderes para garantir mais recursos para o SUS. Valorização efetiva dos trabalhadores do SUS através da aprovação de projetos de lei (*7) que garantam piso para as categorias, valorizações para os trabalhadores da saúde, inclusive de salários, e que institua projeto de carreira no SUS. Será também necessária a realização de concursos para fortalecer a extensão da Estratégia Saúde da Família, a ampliação do cuidado em saúde mental e a saúde do trabalhador. Políticas e recursos efetivos para municípios e estados diminuírem os gargalos existentes no acesso à saúde que vão de filas para procedimentos a expansão da atenção integral.

Segundo Compromisso – EQUIDADE

Expansão da equidade para outras áreas, com impacto na diminuição do custo de vida e na preservação ambiental.

Equidade é uma palavra pouco usada no vocabulário político brasileiro, mas em um país de desigualdades cortantes, deveria ganhar ênfase. Equidade no SUS está ligada ao reconhecimento de diferenças e, portanto, intimamente ligado ao conceito de solidariedade transversal. É o atendimento aos indivíduos de acordo com suas necessidades, oferecendo mais a quem mais precisa.

Afirmo categoricamente que este princípio deveria ser expandido para outras áreas da administração pública e reforçar a universalização de direitos sociais. Mas é preciso estar nítido que a equidade numa política de solidariedade transversal vai questionar o poder social que prevalece atualmente e drena recursos do estado para benefícios de interesses de grupos que justamente necessitam menos. Um exemplo são as inúmeras desonerações de setores econômicos (*8) que retiram recursos exorbitantes de diferentes níveis administrativos, mas não causam manchetes jornalísticas críticas. Todavia, somente colocar o slogan de impostos sobre grandes fortunas ainda é pouco para o problema de um poder social que cresce conforme o poder econômico e atua como um mecanismo de desdemocratização brasileira. Imposto sobre grandes fortunas é um dos mecanismos de equidade completamente necessário, mas que precisa ser acompanhado de uma reforma tributaria equânime, ou seja, justa e progressiva, acompanhada do fim das desonerações e da reversão de mercadorias em direitos sociais.

Uma política de equidade baseada na solidariedade transversal está relacionada com o compromisso de universalização de uma saúde de qualidade, porque as pessoas e os grupos de trabalhadores poderão gradativamente abandonar com segurança os convênios. Atualmente a imensa classe média e parte da população de baixa renda paga duplamente pelos serviços de saúde através de impostos e gastos com a saúde privada, com impacto enorme no orçamento familiar. Com uma saúde de qualidade, os aposentados seriam beneficiados enormemente e poderiam parar de destinar seus poucos recursos para custear a manutenção da saúde, estabelecendo dessa maneira o terceiro pacto proposto por Guimarães, relacionado ao fortalecimento do SUS:

- pactos com a imensa classe média que diminuíram seus custos com saúde privada.

Tal proposição desvela um ponto importante sobre a solidariedade transversal. Ao contrário do que alguns pensam, não existe solidariedade sem conflito. O ato de colocar-se com proposições em direção ao outro é permeado por contradições e oposições de interesses que precisam ser enfrentados. Uma política baseada nos princípios de universalidade e equidade coloca-se imediatamente em oposição ao desenvolvimento da saúde como mercadoria. É uma mudança gradativa no qual o fortalecimento da saúde pública com valorização dos trabalhadores, planos de carreira e diversificação de serviços a serem oferecidos possam absorver mais trabalhadores.

A ideia de expandir o princípio de equidade para outras áreas reforça a necessidade de pensar a questão ambiental e o impacto das desigualdades nas pessoas mais vulneráveis, e, portanto, também na saúde, sendo indispensável traçar caminhos para uma transição econômica a partir do paradigma de preservação ambiental e enfrentamento da emergência climática.

Terceiro Compromisso – DESCENTRALIZAÇÃO e PARTICIPAÇÃO POPULAR

Desenvolvimento comunitário com formas de gestão inovadoras

Cada serviço do SUS é uma experiência prática de solidariedade transversal interconectada e aberta que combina princípios de governo, organização de trabalhadores, participação popular aberta ao diferente e ao conflito. Tais experiências que contém assembleias, diferentes formas de coletivos, conselhos participativos locais, conferências, entre outras, precisam ser aprimoradas e colocadas como uma camada comunitária de poder na estrutura política, como um vetor de democratização e transparência na gestão de outros serviços.

A descentralização das decisões e participações políticas pode ir além do nível municipal, avançando para uma dinâmica local no qual os conselhos, assembleias e coletivos adquirem um papel importante, com ampla participação de usuários da saúde em decisões que cotidianamente superam dinâmicas de clientelismo e tornam-se núcleos autônomos de fiscalização, participação comunitária, vigilância republicana contra interesses privados. O desenvolvimento comunitário democrático, livre tanto de interesses políticos partidários clientelistas quanto de interesses exclusivamente privados, com mecanismos de transparências aprimoradas pela tecnologia disponível, pode potencializar formatos de gestão local e impacto social.

Neste ponto, a convergência com setores que – assim como os trabalhadores da saúde – também trabalharam de forma ininterrupta nesta pandemia torna-se fundamental. Estou falando daqueles moradores de favelas que nunca puderam apenas ficar em casa e produziram experiências muito potentes que combinaram inovações organizativas de autogestão e apoio externo de pessoas e empresas com dinâmicas de solidariedade transversal, resultando num modelo de desenvolvimento comunitário que pode ser utilizado como política pública de incentivo a descentralização e participação popular com impacto em diversas áreas.  

Um dos modelos que produziram resultados impressionantes e podem ser estudados como possibilidade de inovações políticas é o caso do trabalho comunitário em Paraisópolis (*9) que ampliou as dimensões da solidariedade transversal. A necessidade urgente e coletiva de se defenderem contra o avanço do vírus não permitiu que esperassem pelas iniciativas estatais e a partir do trabalho comunitário, com ajuda de pessoas e empresas, colocaram em prática iniciativas como os centros de isolamento para as pessoas com sintomas e as ambulâncias geridas pela comunidade. Também criaram os presidentes de rua que são pessoas da própria favela que apoiam os moradores de diferentes maneiras articulando com o trabalho associativo, e por fim, se tornaram polo de inovações em projetos de negócios de impacto social.

As propostas deste compromisso envolvem mobilizar atualizações legislativas e executivas sobre as possibilidades de experiências associativas comunitárias no Brasil e sua interconexão com a gestão pública. Desenvolvimento de modelos de gestão de serviços que não seja o modelo de privatização mercadológica e que também supere problemas da administração direta estatal através da participação popular democrática. Descentralização de políticas públicas no qual grupos comunitários exerçam papel no desenvolvimento e no posicionamento de demandas locais, no acompanhamento dos gastos público em cada comunidade e com estruturas para abrigar iniciativas associativas de solidariedade transversal combinadas com ambiente para estimular inovadores negócios de impacto social.

O Trabalhador da saúde numa coalizão ampla pela solidariedade transversal

Estas proposições para um projeto político transformador da realidade inspirado nos princípios e práticas do SUS são ideias em movimento que somente irão avançar através do entendimento dos próprios trabalhadores da saúde como atores políticos fundamentais – não apenas nas questões sanitárias – mas também para mobilizar transformações políticas, econômicas e sociais. Estes compromissos são também demandas de lutas a serem disputadas nas instituições e nas ruas. Defendo que é momento para uma coalizão ampla dos trabalhadores da saúde para lutar por melhorias para o SUS e para a própria categoria e potencializar mudanças políticas amplas como agentes políticos da solidariedade transversal.

Notas:

1. Conceito este em que me aprofundo no livro escrito em 2020 publicado pela GLAC edições – Ofensivas: a potência do não retorno à normalidade.

2. SAFATLE, 2021, Como se constrói uma vitória, Folha de São Paulo.

3. Considerações finais debate Globo – setembro de 2010

4. Drauzio Varella; SUS revolucionou saúde brasileira, mesmo com má gestão e pouco dinheiro; 15 de dezembro de 2021, Folha de São Paulo.

5. Juarez Guimarães em debate com Sonia Fleury; Nós, que amamos tanto o SUS...; www.outraspalavras.net; 02 de agosto de 2021

6. Carlos Gadelha; Por uma economia a serviço da saúde; www.outraspalavras.net; 20 de dezembro de 2021

7. Está avançando articulações para uma proposição de projeto de lei dos trabalhadores da saúde para criar formas de homenagem e valorização em diferentes esferas legislativas.

8. Lei que prorroga a desoneração de 17 setores é sancionada no dia 31 de dezembro de 2021 sem necessidade de compensação, Tiago Resende/Mateus Vargas, Folha de São Paulo, 1 de janeiro de 2022.

9.   Em janeiro de 2020, acompanhei presencialmente inúmeros trabalhos de solidariedade e impacto social em Paraisópolis, coordenado pelo G10 favelas.



Paulo Spina é trabalhador do SUS há 16 anos, professor de educação física na saúde mental, e doutorando no programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades – FFLCH USP

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